Violência policial: Ministério Público arquivou inquéritos sem investigar

Uma inspeção do Ministério Público revelou que havia problemas na investigação de casos de violência policial na zona, um ano antes do caso da Cova da Moura
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As palavras do procurador-geral ajunto são inequívocas: houve uma série de arquivamentos de processos contra agentes da PSP "pela prática de factos que, eventualmente, poderiam integrar crimes de abuso de poder". Alípio Ribeiro, magistrado e ex-diretor da PJ já jubilado, tinha sido encarregado de avaliar a atuação daquele órgão na Amadora, tendo em conta as repetidas queixas dos moradores sobre os arquivamentos "abusivos" de denúncias de violência policial. Investigou e concluiu: "Globalmente, a investigação não teve a exigência que aquele tipo de crimes exigiria, nomeadamente num contexto social etnicamente diversificado." A conclusão da inspeção do Ministério Público, em julho de 2014, quando Alípio Ribeiro era inspetor desta estrutura, indicava que havia uma certa desvalorização da atuação policial por parte da procuradora do Ministério Público da Amadora.

Em fevereiro de 2015 aconteceu o caso da esquadra de Alfragide, agora em julgamento. Na fase inicial deste processo, os seis jovens, que alegam ter sido violentamente agredidos e humilhados com injúrias e ameaças racistas, foram constituídos arguidos e o MP - acreditando na versão da PSP, segundo a qual o grupo tinha tentado invadir a esquadra - chegou a pedir a sua prisão preventiva.

Por essa altura, aliás, já tinha havido outras denúncias -​​​​ sobre racismo e violência, incluindo por parte de organizações internacionais de direitos humanos. Em 2012, por exemplo, uma avaliação das Nações Unidas, através do seu grupo trabalho de peritos sobre pessoas de ascendência africana, indicava que, na Cova da Moura, "a polícia toma por alvo imigrantes afrodescendentes e leva a cabo operações em larga escala nos bairros onde aqueles residem. Jovens de ascendência africana da comunidade foram vítimas frequentes de perfil racial por parte da polícia, que os manda parar nas ruas para os interrogar apenas devido à cor da sua pele".

Mas nem por isso a conclusão desta inspeção do Ministério Público (MP) foi divulgada, nem levou a que fossem tomadas medidas concretas nesta comarca em particular. Logo após ter sido conhecida, em julho de 2017, a acusação contra os agentes de Alfragide - 17 estão a ser julgados pelos crimes de tortura, sequestro e agressões qualificadas motivadas pelo racismo, contra seis jovens da Cova da Moura -, a PGR foi questionada sobre se alguma vez tinha sido realizada alguma auditoria às investigações naquela comarca. Nunca respondeu. Agora, a Procuradoria-Geral da República (PGR) respondeu, na véspera de Joana Marques Vidal ser substituída no cargo por Lucília Gago. O gabinete sublinha que se trata de "uma inspeção a uma magistrada que aí estava colocada" e que "não houve qualquer auditoria/inspeção aos serviços do MP da Amadora".

Não refere, porém, se houve consequências disciplinares para a magistrada, nem onde está colocada atualmente. Quanto à ocultação das conclusões, a PGR alega agora que "estas inspeções se destinam a recolher informações sobre o trabalho e mérito dos magistrados, os quais são classificados em conformidade. Pela sua própria natureza e atendendo a que contém dados pessoais nominativos, trata-se de uma matéria que não é passível de divulgação pública". Uma fonte oficial refere que "no que respeita a inquéritos contra órgãos de polícia criminal, este tipo de casos merece especial atenção da hierarquia, originando, por exemplo, a recomendação e a prática de os procuradores da República, com funções de coordenação nas secções, avocarem e tramitarem eles os processos, dada a delicadeza e complexidade que, em regra, subjazem a esses processos".

No caso concreto da Amadora esta "especial atenção" só começou a ser válida depois de o coordenador do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) daquela comarca ter assumido a titularidade do inquérito aos polícias de Alfragide, no início de 2017. O procurador Helder Cordeiro assinou a acusação contra os 18 polícias (um deles foi, entretanto, despronunciado na instrução do processo). E, tendo em conta a realidade de que se apercebeu nesta investigação, decidiu reavaliar alguns processos já arquivados, outros ainda abertos, e reencaminhá-los para a Unidade Nacional de Contraterrorismo (UNCT) da Polícia Judiciária (UNCT). A UNCT foi a responsável pela investigação de Alfragide que resultou na inédita acusação. Conforme o DN já noticiou, o DIAP da Amadora remeteu à PJ, no último ano, 15 inquéritos com suspeitas de violência policial, mas ainda não estão concluídos.

Justiça para brancos e justiça para negros

As conclusões da inspeção assinada por Alípio Dias vêm confirmar as do último relatório da Comissão Europeia contra o racismo e a intolerância. "São inúmeras as acusações graves de violência racista cometida por agentes da polícia", aponta o relatório. "Contudo, nenhuma autoridade reuniu sistematicamente estas acusações e procedeu a um inquérito eficaz para determinar se são ou não verdadeiras. Isto levou ao medo e à falta de confiança na polícia, particularmente entre as pessoas de origem africana." A própria PGR e o Ministério da Justiça já assumiram não ter dados organizados sobe violência policial.

Apesar das várias tentativas não foi possível contactar Alípio Ribeiro. Contudo, no livro da jornalista Joana Gorjão Henriques - Racismo no País dos Brancos Costumes -, o magistrado é citado a propósito do muito elevado número de cidadãos dos PALOP que estão presos, proporcionalmente a esta população residente em Portugal - na Amadora, por exemplo, uma em cada 49 pessoas dos PALOP estava encarcerada (dados de 2016), enquanto entre a comunidade portuguesa essa proporção era de um para 492. "Há uma justiça para portugueses e uma justiça para estrangeiros, uma justiça para brancos e uma justiça para negros", afirmou o procurador adjunto. Para Alípio Ribeiro "não se pode tirar destes números a conclusão de que os PALOP são mais criminosos. O que posso dizer é que o sistema permite isso" e que "há uma desconfiança inicial em relação ao negro que não há em relação ao branco". Assinala ainda que, em geral, a justiça "é mais dura em relação aos negros" e que há "faixas da população mais vulneráveis, mais "perseguidas" do ponto de vista policial e relativamente às quais é possível uma atuação de força que não será possível em relação a outras".

Casos arquivados

No seu relatório, Alípio Ribeiro destaca alguns casos que considerou flagrantes para as suas conclusões, todos com queixas de agressões. Um deles foi arquivado por "insuficiência de prova" quando o queixoso nem foi sujeito a um exame médico. As inquirições, é assinalado no relatório, "foram realizadas por uma técnica de justiça auxiliar". Noutra denúncia de agressões, a PSP alegou que o queixoso tinha ameaçado o agente e o inquérito foi arquivado de imediato. Noutra situação, denunciada em fevereiro de 2013, as testemunhas foram inquiridas por um "funcionário" e apenas o queixoso "foi constituído e interrogado como arguido".

Num inquérito em que um homem se queixou de ter sido ameaçado com uma arma por um agente da PSP, também foi ouvido por um "funcionário". O polícia participou contra o queixoso imputando-lhe "falsidade de declarações", tendo a magistrada do MP responsável solicitado à PSP "a inquirição da testemunha". Tal procedimento é considerado na inspeção do MP, "face aos factos a investigar, afigura-se manifestamente desadequado". Uma "idêntica falta de envolvimento e sistematização na investigação foi também constatada" noutros inquéritos, elencados no relatório de inspeção.

Um caso denunciado

A Associação Cultural Moinho da Juventude (ACMJ), da Cova da Moura, tem reunido alguns casos de alegada violência policial sobre moradores que não tiveram consequência na justiça. Um deles está descrito num dossiê que foi entregue ao tribunal pela defesa dos seis jovens alegadamente agredidos na esquadra da Alfragide - dois deles mediadores do Moinho da Juventude. Este caso tem duas particularidades: a primeira é que uma das alegadas vítimas é um dos seis jovens que levou os 17 polícias a julgamento. Outra é que um dos agressores será agora um dos polícias em julgamento.

Bruno Lopes, um rapper conhecido por Timor Young Smoke - estaria a gravar num estúdio de música, cedido nas instalações da ACMJ, com outros três jovens. Tiago R. veio à porta onde estavam quatro agentes do Corpo de Intervenção Rápida (CIR). "Para onde é que estás a olhar?", terá perguntado um dos polícias. "Porque é que não posso olhar?", terá respondido o jovem que acusa os polícias de terem começado a bater-lhe, à bastonada, provocando ferimentos que sangravam. Foi algemado e atirado para o chão da carrinha em que o transportaram para a esquadra. Diz que um agente lhe terá pegado com força na cabeça e batido com o joelho, agredindo-o na zona do nariz. Segundo o relatório do hospital, tinha ferimentos no nariz quando foi visto.

Alertados pelos "gritos" do amigo, os outros três jovens saíram do estúdio, tendo também sido apanhados pela polícia. Bruno Lopes foi "algemado" e também "atirado" para a carrinha. A então diretora da Associação, Lieve Meerschaert, foi alertada e contactou a esquadra da PSP da Amadora. "Todos afirmaram desconhecer o ocorrido", diz. Sugeriram-lhe que se deslocasse à esquadra de Alfragide.

"Ao chegar à esquadra do CIR, uma delegação do Moinho da Juventude encontrou Bruno Lopes já no exterior, muito impressionado e cheio de dores resultantes das bastonadas da polícia", diz o caso. De acordo ainda com a descrição "o jovem contou que à chegada à esquadra os agentes continuaram a bater-lhe e a dar pontapés nos três rapazes. Um dos agentes, de nome Nunes, encostou uma arma ao pescoço do Bruno Lopes, aterrorizando-o e virando o cano da arma de tal forma que lhe provocou um ferimento no pescoço. Um outro agente, que estava de piquete na esquadra, disse ao colega: "chega, chega de bater!"."

No memorando da Associação são assinaladas também as injúrias que os jovens terão ouvido na esquadra, muito semelhantes às que alegadamente foram ouvidas pelos seis jovens do caso agora em julgamento. "Vamos matar os pretos todos", terá afirmado o referido agente Nunes quando apontou a arma ao pescoço de Bruno; "Odeio os pretos! A Cova da Moura vai abaixo. São vocês que cantam? Vão cantar lá para o inferno. Já tenho sangue de macaco na mão".

Lieve Meerschaert contou ao DN que fez queixa "com a identificação dos agentes, mas foi arquivada". No dia em que foi conhecida a acusação contra os 18 polícias, esta belga que reside há mais de 20 anos no bairro, decidiu plantar girassóis junto à esquadra, como sinal de "esperança" na justiça. Ainda tem bem presentes as palavras de Vítor, um dos jovens agredidos naquele dia de julho de 2013. "Interpelou os agentes perguntando-lhes: "Porque é que fazem isto? Porque é que dizem estas coisas? Vocês acham que isto é certo? Vocês acham que com violência conseguem a paz?" e não encontrou mais que o sarcasmo dos agentes."

Lieve conta que no dia em que o processo foi arquivado, à entrada do bairro, quando passavam pelo emblemático graffiti de Martin Luther King, Vítor rasgou documentos que tinha trazido do CIR e desabafou: "Não há justiça para pretos!" Lieve apontou o defensor dos direitos dos negros nos EUA e disse-lhe "não desistas de lutar". Vítor retorquiu: "Vê como acabou. Deram-lhe um tiro!" Foi para casa e recusou-se a ir ao hospital.

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