"Irei dar água aos girassóis"
Finalmente! Estou de novo a acreditar que a justiça existe e que estou a viver num país democrático. Não faço parte dos corpos gerentes da Associação Cultural Moinho da Juventude desde 06/01/2015, mas continuo a ser sócia do Moinho e moradora no Bairro do Alto da Cova da Moura.
É neste sentido que pretendo contribuir para reflexão sobre a notícia no DN de 11/07/2017.
Vivo no bairro desde 1982. Tenho acompanhado muitas situações de racismo, discriminação, agressões da parte da PSP ao longo destes anos. Os corpos gerentes do Moinho denunciaram-nas.
Pelos finais de 2001 entrámos numa espiral de violência, depois da morte do Ângelo. Ângelo foi baleado nas costas pela polícia, em frente do local de formação do Moinho, ao meio-dia, e levado para o hospital na carrinha da polícia.
Em 2002 a direção do Moinho e os responsáveis da PSP sentaram-se à mesa para quebrar esta espiral.
Conseguimos durante muitos anos aprender uns com os outros, por causa do diálogo constante dos Peritos da Experiência/Direção do Moinho com os responsáveis da PSP de Amadora. Os conflitos eram postos na mesa, procurávamos em conjunto soluções e promovemos a comunicação não violenta.
ebruçámo-nos também sobre a importância do papel da polícia na sociedade. Desde 2013 este diálogo tem sido mais difícil. Houve muitas queixas dos comerciantes, que numa reunião com o novo subintendente insistiram na importância do papel da PSP no bairro, mas que condenaram a violência ocorrida nos seus estabelecimentos onde agentes agrediram crianças e mulheres.
No verão de 2013 assisti a três intervenções violentas da PSP.
Na segunda-feira, dia 29 de julho de 2013, às 09.30 da manhã, três jovens que estavam no Estúdio do Moinho foram agredidos ao pé das crianças do jardim-de-infância. Ficaram encharcados de sangue, foram algemados e levados para a esquadra de Alfragide. Fui à esquadra com mais dois responsáveis do Moinho. Encontrei um dos jovens perto da esquadra a tremer. Tinha sido libertado porque tinha a documentação consigo. Ele mostrou o cartão de cidadão, que a polícia na esquadra quebrou dizendo que uma pessoa da cor dele não podia ser português. O jovem mostrou-me uma ferida no pescoço: um agente tinha esfregado a arma dizendo: vai agora cantar no inferno.
O jovem disse-me que os outros dois amigos tinham ficado muito pior.
Por volta das 13.00 a polícia deixou-nos entrar na esquadra e perguntou-me: "Se eu, polícia, sou agredido e levado para o hospital, vem-me visitar?" Olhei incrédula para o polícia e disse-lhe: "Não quero ninguém no hospital, nem moradores nem polícia."
Acompanhei os jovens ao Hospital de Santa Maria. Um dos jovens ficou completamente coberto de pensos. O médico ficou assustado com a violência.
No mês de agosto de 2013 houve mais duas situações de agressões pela PSP: uma num curso de filmagem organizado pelo Moinho, outra com adolescentes que tinham voltado da praia e que foram obrigadas na esquadra a despir-se, recebendo comentários obscenos da parte da polícia. Temos os registos destes acontecimentos. Fizemos queixa. Foi tudo arquivado.
Mais tarde houve agressão racista a um morador de mais de 50 anos, que defendeu sempre a polícia perante os jovens. Formulámos a queixa. Foi arquivada.
No dia 25 de novembro de 2016 a polícia agrediu gratuitamente um grupo de moradores que estavam a festejar a Santa Catarina. Partiram a cabeça dum morador, cuja esposa trabalha nas limpezas do Instituto Camões. O filho de 5 anos ainda hoje não consegue perceber porque é que a polícia agrediu o pai. Dois moradores ficaram com o braço partido. A Amnistia Internacional tem dado apoio para denunciar esta situação. Pessoalmente comecei a perder a crença na justiça. Comecei a questionar-me sobre as redes internas que proporcionam tantos arquivamentos. Hoje, encontrei uma vizinha de 79 anos. Ela suspirou: "Sim, alguns jovens portam-se mal, mas há polícias que os tratam como se fossem bichos. Ainda bem que serão julgados pelo que fizeram no dia 5 de fevereiro."
Hoje de manhã comprei um vaso com girassóis para colocar ao lado da oliveira na Praça Eduardo Pontes, em frente da esquadra da PSP da Damaia. Espero que os botões abram e vão dar luz aos agentes da PSP que têm conseguido cumprir as suas funções com lealdade, porque tenho consciência e conhecimento de que estes polícias existem.
Irei dar água aos girassóis.
*Godelieve Meersschaert vive na Cova da Moura desde 1982 e foi uma das fundadoras da Associação Moinho da Juventude. No dia da notícia da acusação, na terça-feira passada, dia 11, enviou ao DN este testemunho