E todo povo cantou Maradona, Maradona
É mais um texto sobre o Maradona, é. Não espere diferenças com nenhum de tantos outros que leu. Mas que fazer quando o melhor jogador de futebol de todos os tempos, a maior expressão do jogo que adoro com todas as minhas forças vai para a bancada do céu?
Ele também era o meu maior ídolo, o tipo que fez que para mim Buenos Aires e Nápoles fossem apenas os locais onde o Diego mais memórias deixou. Eu também coleciono os vídeos daquelas coisas mágicas que ele fazia em campo, os livros, as entrevistas e tudo e mais alguma coisa que lhe diga respeito. A mais recente foi o documentário que conta a história de quando ele treinou um clube de futebol da segunda divisão mexicana e vivia cada segundo como se fosse o jogo contra a Inglaterra em 1986, o que se vê é uma das maiores declarações de amor ao futebol que alguma vez alguém fez, e ele não fez outra coisa durante a sua vida.
Eu também ensinei aos meus filhos que não faltam extraordinários jogadores de futebol, mas que o Maradona era outra coisa, e também sou aquele a quem caem as lágrimas de cada vez que vê aquele extrato do filme do Kusturica em que ele canta a sua música e mostra a sua alma, apesar de já o ter visto milhares de vezes.
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Claro que muitos disseram que ele era a encarnação do futebol. Não sei exatamente de que futebol falavam. Devia ser o dele, claro está. Daquele que se aprende na rua e não nas academias asséticas onde se criam num tubo de ensaio uma espécie de robôs, muito musculados, muito preparados, com muitos seguidores nas redes sociais e que dizem todos a mesma coisa. Tipos que se esquecem rapidamente de onde vieram, que passam com os seus Ferraris nos sítios onde nasceram para a gravação de um qualquer filme promocional e nunca mais lá voltam.
O Maradona não era de uma coisa que ainda se chama futebol e que está a morrer às mãos de uns abutres que chamam ativos aos jogadores e falam dos milhões que ganham à conta da nossa paixão, enquanto bebem champanhe num qualquer camarote de um desses estádios onde já não cabem adeptos mas não faltam fãs, onde se bate umas palminhas ao adversário em vez de ficar roxo de tanto o assobiar, onde já não se choram as derrotas nem se entra em êxtase com as vitórias.
Ele, quando já não estava no campo, estava na bancada no meio de nós, a cantar as cores dele. Era vê-lo sem camisa, com as veias do pescoço como cordas de aço de tanto gritar pelo seu clube. Melhor, ele nunca saiu do campo, como nós, sabia que não era preciso estar lá dentro para fazer parte do jogo. Lembro-me de uma imagem dele a mostrar o dedo do meio em direção à bancada do adversário. Os engravatadinhos ficaram muito chocados e, no entanto, aquilo era futebol, éramos nós a fazer parte da tribo, aquilo também era o Maradona.
Como ele sabia, e quem ama o futebol sente, o jogo está muito para lá do que se passa no campo. É uma expressão da comunidade, dos seus valores. Cada equipa é um conjunto de vontades expressa pelos seus jogadores: nós em campo. Quando for só um jogo, quando as derrotas não nos tirarem o sono e deixarmos de pensar que foi também a nossa vontade que fez que um nosso rapaz chutasse a bola para aquele golo, quando uma vitória contra a Inglaterra deixar de ser um grito de "Malvinas são argentinas", o futebol será como outro desporto qualquer e um Maradona seria apenas o jogador mais talentoso de sempre. Mas é sobretudo por o futebol ser mais do que um jogo que El Pibe será para sempre o maior homem da sua história.
Enquanto era desprezado e maltratado pelos patrões do futebol, era amado pelo povo. Não só porque era o melhor jogador de sempre do jogo do povo, mas porque a sua arte, a sua personalidade, as suas grandezas e misérias eram ao mesmo tempo divinas e humanas. É que até Deus precisou de encarnar para ser entendido. Esse eu não entendi, Maradona percebi muito bem.
O Diego Armando Maradona é uma das poucas razões para eu pensar que se calhar Deus existe. Deve ter sido Ele que resolveu mostrar todo o seu poder dando a um gordito atarracado um talento desmesurado e depois, vingativo e invejoso, em vez de ter feito dele um ser totalmente divino, castigou-o fazendo dele um homem. Uma das músicas que lhe dedicaram dizia que ele carregava uma cruz nos ombros por ser o melhor, o problema é que nenhum homem consegue carregar tanto talento impunemente.