Pelo menos cinco bairros sociais na Grande Lisboa têm casos de covid-19
R. vive na única casa de tijolos, com eletricidade e água, do Bairro da Torre, em Camarate, concelho de Loures, onde moram 15 famílias. As portas da sua habitação estão sempre abertas para os vizinhos e amigos. É aqui que comem todos. R. é uma cozinheira de mão cheia e consegue levar os que a rodeiam de volta ao berço angolano com as travessas de banana frita e de peixe-espada grelhado. Não é só mãe dos seus filhos: trata de um bairro que precisa de muitos cuidados. Mas, agora, é a sua família que precisa de ajuda. A porta fechou-se para incentivar o isolamento em tempo de pandemia e, na última semana, está ainda mais cerrada, desde que descobriram que ela e o marido estão infetados com o novo coronavírus.
Começaram a sentir dores no corpo, cansaço, tonturas, a comida que preparava, com alimentos doados, não lhe sabia ou cheirava ao mesmo. Os dois filhos pequenos também se queixaram, "mas levemente". R., que tem diabetes, hipertensão, e o marido, que começou a ter febre, é que não se livravam tão facilmente do mal-estar. "Aos mais velho tudo pega", brinca. Foram ao Hospital Beatriz Ângelo e foi-lhes feito o teste de despiste para a covid. Acusaram positivo e voltaram para o bairro de lata às portas do aeroporto Humberto Delgado, onde vivem há mais de uma década. É um dos bairros com habitação precária na Área Metropolitana de Lisboa onde há infetados com covid.
São pelo menos cinco os bairros, apurou o DN, entre os mais de dez que existem: o Bairro da Torre, o Alfredo Bensaúde, nos Olivais, e os "três pequenos focos comunitários" recentes, confirmados pela Direção-Geral da Saúde (DGS), na zona de Almada-Seixal, com ligação a bairros sociais e que resultaram em 32 infetados. 16 destes pertencem à Rua 25 de Abril do Vale de Chicharros, mais conhecida como Bairro da Jamaica, na freguesia da Amora (Seixal). Os outros não foram mencionados nem em conferência de imprensa, nem em resposta às perguntas enviadas pelo DN.
Um deles será o bairro de lata de Santa Marta, em Corroios, onde a 15 de maio as autoridades de saúde em colaboração com a Câmara Municipal do Seixal realizaram ações de sensibilização para que as pessoas se protegessem do vírus. Uma vez que no dia anterior, durante uma reunião entre a autarquia, a Proteção Civil e as autoridades de saúde locais, foi mencionado um surto provocado por uma festa na Aroeira, Almada, "em que participaram vários jovens de diversos concelhos da Área Metropolitana de Lisboa, nos dias 1, 2 e 3 de maio", segundo informou a Câmara Municipal do Seixal.
A autarquia também adiantou que as autoridades de saúde "iriam avançar com uma determinação para o encerramento dos bares e que iriam acompanhar o cumprimento do confinamento em articulação com as forças de segurança". O que fonte da PSP contactada pelo DN confirmou estar a suceder na área do bairro da Jamaica.
Já no Bairro da Torre, o motivo de transmissão terá sido bem diferente. Não uma celebração da vida, mas uma despedida desta. Toda a família de R. (incluindo os que não partilham consigo casa) começou a ter sintomas depois do funeral de um sobrinho de 29 anos, onde estiveram juntos. A doença veio a seguir e obrigou-a parar. O médico e a enfermeira de família vão-se certificando disso mesmo, através de telefonemas, para vigiar a evolução dos sintomas e do tratamento, que agora passa por um Ben-u-ron de oito em oito horas. "Estamos a recuperar", garante.
Mas não deixa de lamentar ao olhar à sua volta para o terreno irregular, repleto de destroços, lixo, umas quantas tentativas falhadas de casas, construídas com papelão e contraplacado e com o céu a descoberto. Lamenta as condições de vida habituais, que com a pandemia se tornam ainda mais difícil de suportar.
"Isto sem estrutura é doloroso", confessa. "Deveria haver mais preparação para as pessoas passarem por isto [pelo surto]. Era importante haver luz, água, ter casa, ter uma vida organizada".
Rita Silva, dirigente da associação Habita, vai acompanhando estes casos e lembra que "as populações mais vulneráveis em termos de habitação ou de trabalho são as mais expostas ao vírus". O secretário de estado da Saúde, António Lacerda Sales, disse, esta terça-feira (26 de maio), em conferência de imprensa, que "este é um vírus democrático, que afeta qualquer pessoa, independentemente da cor da pela, do credo, da região". Mas Rita Silva não pode concordar. Nas zonas em que as pessoas vivem mais juntas, sem hipótese de distanciamento, e onde não existe saneamento básico (quando a higiene é a principal arma contra a doença), a desigualdade faz-se sentir.
"Têm-nos chegado queixas de pessoas que vivem em barracas, sem água e sem luz, e que estão infetadas, que são sintomáticas, estão enfraquecidas e dizem que está a ser duríssimo passar por isto nas condições em que vivem", diz a representante da Habita. "É um problema estrutural, não é culpa destas pessoas", sublinha, enquanto pede respostas sociais urgentes.
O Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social explicou ao DN que estes casos são acompanhados pelo poder local (câmaras, juntas de freguesia e delegados de saúde), que, sempre que recebem uma denúncia, ativam o apoio social. É-lhes dado alimentos, fármacos e "quando é necessário realizar o alojamento temporário do cidadão sinalizado, a Câmara Municipal de Lisboa tem garantido as transferências temporárias através de espaços de retaguarda (Mesquita de Lisboa ou Pousada de Juventude)", refere a tutela.
No entanto, quando o DN perguntou à autarquia lisboeta quantas pessoas a viver em bairros sociais estavam infetadas e onde, esta afirmou não dispor de "dados por bairro, quarteirão ou rua". "Como é conhecido, este tema foi amplamente debatido e só as autoridades de saúde dispõem dessa informação", respondeu, por escrito, o executivo camarário da capital - o município com maior número de casos de covid-19 no país (2254) e que integra a região que mais tem visto o contágio aumentar nos últimos dias. 97% das novas infeções notificadas, esta terça-feira, no boletim da DGS dizem respeito à Grande Lisboa.
Também a Câmara Municipal de Loures, onde fica o Bairro da Torre, diz o mesmo. "Não temos até agora nenhuma indicação concreta de que haja situações particularmente preocupantes neste ou naquele bairro", aponta Bernardino Soares, presidente desta autarquia, em entrevista ao DN. "Sabemos que as situações de precariedade na habitação, laboral e uso de transportes públicos são propicias a maior transmissão, mas não há nenhum foco em nenhum bairro, que a câmara tenha sido informada", continua, acrescentando que, no entanto, estão a distribuir máscaras a esta população e a fazer campanhas de sensibilização para que as pessoas cumpram as regras difundidas pelas autoridades de saúde (distanciamento social, medidas de etiqueta respiratória e de higiene). Tal como fez a Câmara do Seixal nos bairros identificados pelas autoridades de saúde.
O DN entrou em contacto com a Administração Regional de Saúde (ARS) de Lisboa e Vale do Tejo para saber em quantos bairros sociais existe contágio neste momento, onde se localizam e como estão a ser acompanhas estas pessoas, mas até ao momento não recebeu resposta às perguntas enviadas.
Na zona da Grande Lisboa há mais de dez bairros de lata e estes são, por causa dos aglomerados e de falta de condições sanitárias, possíveis focos de contágios preocupantes. "Infelizmente, é normal que haja uma maior disseminação [do vírus] em contextos de carência económica", diz Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública.
Para o especialista, "é difícil nestes contextos que haja um cumprimento rigoroso do distanciamento, do isolamento e da quarentena", quando "as pessoas com menos recursos tendem a ter um maior número de co-habitantes" e a "muitas vezes a continuar a deslocar-se para o trabalho, mesmo doentes, porque precisam do rendimento". "É bom que estejamos todos cientes dessas dificuldades e que haja investimento e apoio para as pessoas que possam ter mais dificuldade em combater a doença", refere o médico de saúde pública.
O DN sabe que em alguns locais a polícia reforçou a vigilância aos bairros sociais. É o caso do Seixal e do bairro Alfredo Bensaúde, nos Olivais, onde há pelo menos duas famílias com covid, denuncia o presidente da Comissão de Moradores, Ivo Guerreiro.
"O Governo respondeu prontamente [à covid] com muitas iniciativas, mas a habitação ficou para trás. Não se acautelou as pessoas que estavam em sobrelotação em bairros, dormitórios", aponta a dirigente da Habita.
Para as autoridades de saúde não são necessárias medidas extraordinárias nos bairros sociais, nem fazer testes excecionais, sem indicação prévia de um foco, esclareceu o secretário de estado da Saúde, no briefing diário. Mas a associação de moradores do Bairro da Jamaica continua preocupada.
Apesar de afirmar não saber quem são as pessoas infetadas com o novo coronavírus, o presidente desta associação refere que o foco de infeção teve origem em "pessoas que vêm de outros concelhos". Por isso, "deviam mesmo isolar o bairro e só saía ou entrava quem aqui mora", sugere Salimo Mendes, em declarações à Lusa.
Para o morador, o contágio está relacionado com a "aglomeração de pessoas que não cumprem o distanciamento" nos estabelecimentos, sobretudo entre sexta-feira a domingo. "Estou muito preocupado e a minha intenção é que as autoridades me ajudem a fechar estes cafés todos, porque são centros de propagação", defendeu. E foi ouvido: esta quinta-feira de manhã, as autoridades de saúde regionais admitiram estar a preparar o encerramento dos cafés no bairro, que pode durar até duas semanas.
Já no Bairro da Torre não há cafés para fechar. Não existem. E os pedidos de R. para travar o contágio são feitos a Deus, a quem roga para que tudo isto passe rápido.
Artigo atualizado às 10:56 com a informação sobre o encerramento dos cafés no Bairro da Jamaica por parte das autoridades de saúde.