Covid-19. "O próximo inverno será a grande prova de fogo"

O cientista Miguel Castanho, do IMM, está a testar moléculas para avaliar a sua possível ação antiviral contra a SARS-CoV-2. Sobre a pandemia, lamenta a oportunidade perdida que foi a primeira SARS. "Estaríamos hoje muito melhor se a investigação sobre aquele coronavírus tivesse continuado", diz.

Meio ano depois de ter surgido na China, a covid-19 não dá sinais de abrandamento. A pandemia está instalada, continua a propagar-se a grande velocidade e as únicas armas por enquanto disponíveis no combate ao SARS-CoV-2, que mais não fazem do que travar o contágio, continuam a ser o distanciamento social, as máscaras, a lavagem frequente das mãos e a desinfeção de locais fechados utilizados por muitas pessoas, como transportes públicos, aeroportos, hospitais, centros de saúde e outros serviços públicos.

Por isso, uma da linhas de investigação que mais rapidamente poderá dar uma resposta terapêutica decisiva contra a pandemia é a que avalia a eventual eficácia contra a SARS-CoV-2 de moléculas já aprovadas para uso humano noutras doenças. Miguel Castanho, que lidera o grupo de Bioquímica do Desenvolvimento de Fármacos e Alvos Terapêuticos no Instituto de Medicina Molecular (IMM) João Lobo Antunes, da Universidade de Lisboa, é um dos cientistas que trabalha nessa linha de investigação.

Tudo começou com um projeto europeu coordenado pelo seu grupo, que visa o desenvolvimento de moléculas contra alguns vírus, e que passou a incluir também a SARS-CoV-2, dada a situação de emergência pandémica. Mas o investigador do IMM teve também um projeto aprovado, no valor de 40 mil euros, na segunda edição do programa de financiamento especial Research 4 covid-19 da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), que visa o desenvolvimento de soluções inovadoras para dar resposta à pandemia, com um prazo máximo de seis meses para mostrar resultados. O trabalho está agora a arrancar.

"Neste momento temos tudo pronto para avançar. Temos o vírus purificado, a capacidade de ensaio e as condições de alta segurança no laboratório que são necessárias para trabalhar com este vírus, e estamos no processo de obter as moléculas. Em princípio iniciamos o trabalho experimental a 1 de julho", afirma o investigador ao DN.

As moléculas que o seu grupo vai testar são as chamadas porfirinas. "São aparentadas com as clorofilas e muito vulgares na natureza, e sabemos do nosso trabalho anterior que interferem com o invólucro protetor de inúmeros vírus, destruindo a sua camada de lípidos", explica Miguel Castanho. A ideia é verificar se elas também têm essa ação antiviral sobre a SARS-CoV-2.

A equipa selecionou uma dezena dessas moléculas, entre algumas que já estão aprovadas e são usadas como medicamentos noutras doenças, nomeadamente em cancro, e outras que estão em fases finais do processo de aprovação para uso humano.

"Vamos verificar em células humanas, in vitro, quais são as moléculas que têm maior capacidade de impedir o processo de infeção e de reprodução do vírus, e a nossa expectativa, fundamentada na nossa experiência anterior, é que pelo menos algumas delas poderão interferir com o processo de infeção pelo coronavírus", adianta o investigador.

Na verdade, tudo pode acontecer - "a ciência é mesmo assim, às vezes as coisas não acontecem como se espera", nota Miguel Castanho. Mas se nos testes em laboratório alguma, ou algumas, dessas moléculas conseguir bloquear o vírus, isso será uma boa notícia. Daqui a seis meses se saberá.

"Imaginando que alguma delas funciona in vitro, a nossa ideia é verificar depois se também funciona em modelo animal, o que faremos em colaboração com um outro grupo do IMM, liderado pelo virologista Pedro Simas", antecipa Miguel Castanho.

Mas os ses não acabam aqui. No caso de resultados positivos em modelo animal, e de isso suceder com uma molécula já aprovada para utilização clínica, embora para outro fim, o passo seguinte terá de passar por novos estudos para se poder determinar as melhores condições de administração e as doses certas para ser usada na covid-19.

"Essa nova atividade teria de ser estudada em grande detalhe, mas, a funcionar, será sempre um processo muito mais rápido, quando comparado com o do desenvolvimento de um medicamento de raiz, que nunca leva menos de uma década", garante Miguel Castanho.

Uma caminhada de muitos passos

Apesar de a corrida a uma vacina e ao desenvolvimento de medicamentos direcionados para a SARS-CoV-2 estar já lançada, e a decorrer a um ritmo nunca antes visto, ainda não há nada específico contra este coronavírus - nem poderia haver. A SARS-CoV-2 surgiu apenas há seis meses, não passou ainda o tempo suficiente. No entanto já há alguns passos dados.

A primeira vitória, justamente no reaproveitamento de uma molécula que tinha sido originalmente desenhada para outra doença, chama-se remdesivir.

Este medicamento foi desenvolvido para tratar a febre hemorrágica provocada pelo vírus ébola, mas acabou por não ter os resultados desejados. Testado nos últimos meses no contexto da covid-19 mostrou, no entanto, ter algum benefício, mesmo se modesto. Administrado em doentes hospitalizados com a doença, com pneumonia e necessidade de oxigénio, o remdesivir permitiu uma recuperação mais rápida, em cerca de quatro dias, em média, dos doentes, como mostraram os ensaios clínicos.

Depois de a agência de medicamentos dos Estados Unidos, a FDA, ter autorizado a 1 de maio a sua utilização em situações de urgência, seguiu-se o Japão e, agora, foi a vez da Europa.

Esta semana, a Agência Europeia de Medicamentos recomendou uma autorização de mercado na União Europeia deste antiviral para tratamento de doentes com covid-19. Ele já é, aliás, utilizado também em Portugal, justamente em doentes hospitalizados com pneumonia e necessidade de oxigénio, no contexto desta pandemia.

Há duas semanas uma outra molécula de nome arrevesado, a dexametasona, que é usada para tratar um vasto leque de doenças, desde as respiratórias às reumáticas, passando pelas picadas de mosquitos, saltou para as primeiras páginas do jornais. A grande novidade, desta vez, eram as suas propriedades anti-inflamatórias que permitiam diminuir em cerca de um terço a mortalidade por covid-19 nos doentes internados nos cuidados intensivos, abrindo assim uma janela de esperança para um desfecho positivo nos casos mais graves da doença.

Neste caso, não se trata do combate ao processo infeccioso propriamente dito, mas da ação anti-inflamatória do medicamento, que ajuda a tratar as situações mais graves, em que existe uma resposta imunitária exacerbada ao vírus, que muitas vezes acaba por ser a causa de morte.

"Aí, a lógica não é a de uma ação direta sobre o vírus, mas de um efeito benéfico no quadro de inflamação", nota Miguel Castanho, sublinhando que, neste momento, "estamos numa fase em que falta, precisamente, um antiviral que ajude a melhorar a condição das pessoas infetada", e que, nesse sentido, "contribua também para diminuir o contágio e a propagação do vírus".

É aí, justamente, que entra o seu trabalho sobre as porfirinas que, se obtiver bons resultados, poderá ajudar a apressar a chegada a bom porto para um medicamento capaz de combater a pandemia.

A dificuldade de uma vacina

Para Miguel Castanho, será aliás mais fácil conseguir um medicamento contra o coronavírus do que uma vacina."Existem muito mais pontos de ataque para desenvolver medicamentos do que para desenvolver uma vacina", justifica.

Na prática, qualquer um dos momentos do ciclo de infeção é um ponto potencial de ataque por parte de uma terapêutica: a entrada do vírus na célula, a sua reprodução e multiplicação, a saída da célula para invadir outras. Já para uma vacina, "os únicos pontos de ataque são as moléculas à superfície do vírus, e ele tem de estar fora das células", explica o investigador.

"O desenvolvimento de vacinas dura em média 15 anos. A mais rápida até hoje foi a da papeira, que necessitou de quatro anos para ser criada. Por isso, quando ouvimos falar de vacina para meados do próximo ano, estamos a falar de reduzir o processo para metade desse tempo, que já é por si um recorde absoluto", nota o cientista, que se confessa um pouco cético.

"Não é certo que venha a haver vacina, e a haver, ainda vai demorar algum tempo. A natureza das coisas não muda por causa da nossa urgência". E sublinha: "A urgência existe porque a pandemia nos bateu à porta. Se tivéssemos mantido um determinado investimento na investigação sobre coronavírus depois da primeira SARS e da MERS [que surgiram respetivamente em 2003 e 2013, causando infeções respiratórias graves], reconhecendo que algo idêntico poderia voltar a acontecer, estaríamos agora muito melhor preparados".

Miguel Castanho chegou aliás a fazer investigação sobre o primeiro coronavírus SARS, em colaboração com uma equipa da China, testando os efeitos de algumas moléculas que são utilizadas contra a infeção por VIH. Os resultados mostraram que ação antiviral dessas moléculas não era suficientemente forte para inativar o vírus e foram publicados em 2006, na ScienceDirect do grupo Elsevier.

Porfirinas e outras moléculas

A SARS-CoV-2 e a situação de emergência global que provocou abriram entretanto a porta a novas investigações sobre o vírus e a ação de diferentes moléculas sobre ele.

O primeiro passo aconteceu no âmbito do projeto europeu No Virus 2 Brain, aprovado em setembro do ano passado, com um financiamento de 4, 2 milhões de euros, e que é liderado por Miguel Castanho.

O objetivo é estudar e desenvolver moléculas capazes de interferir com a ação de vírus como o dengue ou o zika que causam danos no sistema nervoso central.

"A comissão europeia pediu-nos que incluíssemos também a SARS-CoV-2 no projeto, e é isso que vamos fazer, até porque este coronavírus também já mostrou causar danos no sistema nervoso central nos casos mais graves de infeção", adianta o investigador.

A ideia é desenvolver fármacos capazes de inativar a ação destes vírus no cérebro, o que por si só é um enorme desafio, já que, em toda a sua fragilidade, o cérebro tem uma proteção muito especial, a chamada barreira hematoencefálica, que impede a passagem de moléculas do sangue para o tecido nervoso, para além das estritamente necessárias ao seu funcionamento.

"É por isso que é tão difícil desenvolver medicamentos para tratar, por exemplo, as doenças neurodegenerativas, como a de Alzheimer", lembra Miguel Castanho.

O seu grupo desenvolveu, entretanto, moléculas que conseguem, justamente, atravessar essa barreira natural e vai agora testar a sua ação em diferentes vírus, incluindo na SARS-CoV-2.

Para além disso, e do estudo da ação das porfirinas sobre o coronavírus, a equipa avaliará ainda a potencial ação antiviral de outras moléculas, essas identificadas com recurso à bioinformática pela investigadora Diana Lousa, do ITQB Nova, da Universidade Nova de Lisboa, como o DN noticiou anteriormente.

"Já temos uma série de propostas de potenciais moléculas, que surgiram dessas simulações, e vamos testá-las também em breve", confirma o investigador do IMM.

Os próximos meses poderão trazer boas novidades. E elas serão tão mais importantes quanto acabarão por coincidir com o inverno, que "será a próxima grande prova de fogo", como lhe chama Miguel Castanho.

"Os surtos a que estamos a assistir agora decorrem da abertura, depois de termos estado fechados, não são uma segunda vaga", afirma. "O potencial problema é o próximo inverno, se nessa altura surgir uma variante do vírus mais perigosa, embora nesta altura nada aponte para aí", estima.

Se não acontecer nenhuma mutação capaz de tornar o coronavírus mais agressivo, como se espera, "o inverno será na mesma complicado, mas será uma continuidade", avalia i investigador.

"Neste momento já estamos a lidar com o vírus e, dentro de alguns meses, teremos um grupo da população com imunidade, partindo do princípio que a imunidade se vai manter durante este tempo". E, se entretanto, se conseguir algum medicamento antiviral contra ele, melhor. O esforço, pelo menos, está a ser feito.

Este artigo faz parte de uma série dedicada aos investigadores portugueses e apoiada por: AbbVie

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