"Todos os estudos que existem dão conta de altíssimas taxas de reincidência. Entre nós há um estudo muito completo, aponta para uma taxa de reincidência de 80%"..A afirmação é de Paula Teixeira da Cruz, a 17 de março de 2015, enquanto ministra da Justiça, e referia-se à taxa de reincidência de perpetradores de crimes sexuais. A governante falava mesmo de "uma reincidência louca" e baseava-se nessa asserção para defender a criação de uma lista nacional de condenados por crimes sexuais, que viria a ser aprovada, ainda na vigência da maioria PSD/CDS, exclusivamente para condenados por abuso de crianças e outros crimes sexuais sobre menores, com o nome de Registo de Condenados por Crimes Sexuais contra Crianças..A reincidência "louca", porém, era mesmo louca: não só os números adiantados publicamente pela Procuradoria Geral da República apontavam para 20% no máximo - e incluindo outros crimes que não os sexuais, ou seja, não se trata de 20% dos condenados por crimes sexuais reincidirem no cometimento do mesmo tipo de ofensa, mas de voltarem a ser condenados por esses crimes ou outros - como quando o DN requereu ao ministério da Justiça que apontasse os estudos referidos pela ministra, a resposta foi de que seriam internacionais, sem indicar nenhum, e que existia "entre nós um estudo do psicólogo Mauro Paulino, autor da obra Abusos Sexuais de Crianças: A Verdade Escondida, apontando para uma percentagem de reincidência de 80% ou 90%.".Contactado pelo DN, o autor em causa negou rotundamente: "Fico admirado porque no meu livro não há nada disso e desconheço estudos que tenham esse tipo de percentagens.".Não era, porém, a primeira vez que se via como fonte dessa referência falsa: ""Em 2009 saiu no Expresso uma notícia que tinha como título "Taxa de reincidência de abuso sexual chega aos 80%" e na qual me era atribuída essa informação. Talvez tenha sido eu que me expressei mal. E recentemente num debate na TVI24 alguém voltou a referir o meu nome como fonte dessa taxa.".A então ministra da Justiça nunca retificou as suas afirmações, que por extraordinária coincidência emulam as de um juiz do Supremo Tribunal dos EUA, num acórdão de 2002. O juiz é Anthony Kennedy, que escreveu: "A taxa de reincidência dos condenados não submetidos a tratamento é estimada como chegando a 80%.".A caracterização pelo magistrado, nomeado por Ronald Reagan, do risco de reincidência nesses casos como "assustador e alto" foi reproduzida em inúmeras decisões judiciais subsequentes para sustentar medidas de exceção para condenados por crimes sexuais. Incluindo uma outra do Supremo, de 2003, que impunha, contra a habitual jurisprudência constitucional, retroatividade ao registo de condenados por crimes sexuais no Alasca, incluindo no mesmo condenações anteriores à aprovação da lei.."O mito da alta reincidência é isso mesmo, um mito".A fonte das afirmações de Kennedy, descobriu-se recentemente, é um artigo de 1986 na revista Psychology Today no qual os autores, um terapeuta e um orientador prisional que conduziam um programa de tratamento de criminosos sexuais numa prisão do Oregon, afirmavam: "A maioria dos condenados por crimes sexuais que saem da prisão sem ser submetidos a tratamento reincidem; de facto, isso sucede com 80%." Não existia no artigo nenhum dado científico ou referência que permitisse sustentar a declaração, e nenhum estudo desde então apoia a tese..Um dos autores, Robert Longo, veio a repudiar publicamente essa sua estimativa numa entrevista de 2016 ao Sentinel, e também num vídeo de 2017 publicado pelo New York Times. No vídeo, Longo assume a percentagem como "absolutamente incorreta" e explica o número como o mais alto indicado pelos estudos existentes na altura, embora não cite nenhum que consubstancie tal afirmação. "Não se citam revistas populares de psicologia como base para decisões judiciais", acrescenta, concluindo: "Não se tratava de uma publicação científica. Estou chocado com o facto de isto poder acontecer. Nunca tive tal intenção.".Certo é que a ideia de que as taxas de reincidência dos agressores sexuais, e nomeadamente dos abusadores de menores, são muito altas continua a ser repetida, sobretudo por quem a quer usar para defender medidas de exceção..É o caso do projeto de lei do Chega entrado em dezembro no parlamento, propondo a pena acessória de castração química para abusadores de crianças reincidentes e para os que cometam o crime em circunstâncias de elevada perversidade - por exemplo sobre um filho ou adotado..O projeto, que não irá ser debatido por ser considerado inconstitucional (foi esse o entendimento de uma maioria de deputados, constituída pelo PS, PCP, PEV e Livre, numa votação realizada esta quinta-feira), faz uso da ideia de reincidência elevada na exposição de motivos: "Os índices de reincidência da conduta criminal em causa, muitas vezes pelo mesmo agente criminoso punido e julgado, são absolutamente inaceitáveis.".Não existe porém uma única referência no texto para o que serão esses "índices absolutamente inaceitáveis". De resto, o deputado único do Chega, em entrevista ao DN, fora já questionado sobre o mesmo assunto e invocou "estudos internacionais", sem indicar quais..A verdade é que não será fácil encontrar estudos científicos que estabeleçam uma taxa de reincidência muito elevada para criminosos sexuais, inclusive abusadores de crianças. As taxas encontradas em geral não chegam aos 20%, como sublinhou ao DN, em 2015, o criminologista americano Richard Tewksbury, autor de Sex Offenders : Recidivism and Collateral Consequences (Agressores Sexuais: Reincidência e Consequências Colaterais), de 2012.."Tipicamente vemos taxas de reincidência na ordem dos 10%-15%, nunca nada de parecido com 80%-90%. Trata-se de uma taxa de reincidência abaixo das de todos os outros crimes, à exceção da do homicídio. A reincidência entre abusadores de crianças identificados, como para todos os agressores sexuais, está entre as mais baixas. Enquanto muitos abusadores de crianças reincidem várias vezes, uma vez identificados e julgados a reincidência é muito baixa. Existe uma larga quantidade de estudos científicos demonstrando que o mito da alta reincidência é isso mesmo, um mito."."É frustrante que se insista em legislar ignorando a ciência.".A questão voltou a ser discutida em 2019 nos EUA a propósito da apresentação, no Alabama, de uma alteração legislativa para introduzir a castração química de abusadores sexuais de menores de 13..Ouvida pelo canal de notícias ABC6, Renee Sorrentino, diretora clínica do Institute for Sexual Wellness e que no seu trabalho trata pedófilos com medicação hormonal, corrobora o que Tewksbury afirmou ao DN: "A taxa de reincidência para agressores sexuais anda entre 13% e 17%. É uma taxa bastante baixa quando se olha para as taxas de reincidência gerais. A questão é que as pessoas não toleram qualquer reincidência nesses crimes.".Sorrentino considera assim que o caminho deveria ser identificar os condenados que representam maior risco de reincidência e concentrar neles a ação. "É bastante frustrante que se insista em fazer leis para os agressores sexuais ignorando a ciência e dando ao público a impressão de que vão criar mais segurança, quando isso não é verdade.".A médica reconhece que a castração química pode prevenir a reincidência em condenados com parafilias como a pedofilia, mas funciona melhor em conjunto com a terapia psicológica. Daí que deve, argumenta, haver avaliação por especialistas antes de impor uma sentença, porque o que define a necessidade não é o crime cometido..Dito por outras palavras, e ao contrário da ideia que se tem criado na opinião pública, alguém que abusou sexualmente de uma criança não é forçosamente um pedófilo, ou seja, não tem de sofrer da parafilia conhecida por pedofilia. O crime pode dever-se a oportunidade e acesso e não a uma inclinação sexual específica por crianças. Em Portugal, por exemplo, a esmagadora maioria dos abusos sexuais de crianças denunciados são perpetrados por familiares (quase metade dos detidos por este crime nos últimos anos é da família da vítima) e por conhecidos. O que não exclui que haja pedófilos nesses universos mas indicia que o acesso teve um papel primordial..Uma revelação interessante no entanto é que, apesar de a castração química ser legal na Califórnia desde 1997 e desde então também nos estados da Florida, Luisiana, Geórgia, Montana, Oregon e Wisconsin, segundo a Associated Press os tribunais raramente ordenam o procedimento. Na Califórnia, ainda segundo a AP, uns poucos condenados em liberdade condicional estão a receber a injeção que reduz os níveis de testosterona e responsáveis dos sistemas prisionais do Montana e Luisiana afirmam que só uma vez na última década essa pena foi aplicada..Algo que Renee Sorrentino afirmou à ABC6 não a surpreender nada, já que são poucos os psiquiatras que podem administrar a castração química, e alguns podem apresentar objeções éticas ao facto de ser um juiz a ordenar um procedimento que tem efeitos secundários graves - obesidade, osteoporose, diabetes e "feminização" (possibilidade de fazer crescer os seios). "É medicamente incorreto tratar alguém com castração química quando não houve avaliação médica que indique esse tratamento", conclui esta clínica..Fora dos EUA, a castração química como pena acessória ou medida de segurança existe em alguns países. Caso da Coreia do Sul desde 2010, de Guame desde 2015 e da Polónia desde 2009. Na Rússia também parece ser possível. No Reino Unido e Israel só pode existir com o acordo do visado.