Cuidados intensivos vão ditar se a economia colapsa de novo
Mais do que a vacina, no curto prazo estamos nas mãos dos ventiladores. Os tais que pareciam decisivos em março e de que quase nunca mais se ouviu falar. Pois, é agora que entram em cena. Chegou o momento de verificar que países conseguiram crescer no planeamento destes equipamentos com que médicos, enfermeiros e técnicos para os operar.
A continuar o crescimento exponencial de casos, Portugal será provavelmente confrontado pela primeira vez com o ponto da escolha sobre quem tem oxigénio ventilado ou não, tal como dramaticamente vimos em Espanha, Itália, Estados Unidos ou Brasil. A Europa prepara-se de novo para o ponto crítico da resposta do seu Serviço Nacional de Saúde e todo o dramatismo social de confinamento/não-confinamento vai depender da escalada de casos nas unidades de cuidados intensivos (UCI).
Entre vários especialistas, há um ponto de unanimidade sobre qual o indicador que determina com mais rigor a pandemia: disponibilidade de camas em UCI. Só neste indicador há uma realidade tão objetiva quanto possível. Internamentos? Subjetivos e a esmagadora maioria das pessoas é enviada para casa. Mortes? O critério de determinação é, apesar de tudo, variável sobre a causa covid/não-covid. Testes? Depende da intensidade. Mas "pessoas sem ar", isso gera menos dúvidas, sobretudo em pessoas de idades menos críticas - quando é grave, os doentes vão mesmo para as UCI.
E o cenário à vista para Portugal é tudo menos tranquilizador quanto à capacidade de resposta do SNS neste ponto fulcral. Porquê, é a óbvia pergunta: estamos confrontados com a maior crise de saúde pública deste século há mais de seis meses e não sabemos se o Ministério da Saúde planeou o sistema para mau tempo ou para um tsunami. Um dos enfermeiros contactado pelo DN, e que pediu anonimato, sublinha este fator diferente entre a primeira vaga e a segunda: "Se o número de pessoas mais jovens internadas nos cuidados intensivos aumentar, o sistema vai colapsar."
Esta frase bate certo, aliás, com a reportagem de terça-feira da TVI, no Hospital Curry Cabral, em Lisboa, onde um paciente a rondar os 50 anos narrava o sofrimento de estar nos quartos de cuidados intensivos do hospital há quase dois meses. "Em regra, os doentes com mais idade não resistem a mais do que uma ou duas semanas em cuidados intensivos e acabam por falecer. Já os mais jovens podem precisar de mais tempo para recuperar e não vamos obviamente desistir deles. Mas, simultaneamente, vamos ter muito menos rotação de camas disponíveis."
Esta pode ser a grande diferença. Enquanto na primeira vaga o número de casos era, apesar de tudo, limitado, hoje sabe-se que a dispersão da covid-19 é brutal - 80% dos infetados são assintomáticos. À medida que caminhamos para o fim do outono e inverno, assistimos em regra ao surgimento da gripe e, provavelmente, a surtos mais acentuados de covid. Vamos então descobrir uma onda que levou Christian Drosten, o virologista alemão (assessor do governo), a considerar que a primeira vaga, em certo sentido, não chegou sequer a existir. Como se a doença começasse a acordar com o frio e o abatimento do sistema imunitário reforçado do verão. "A verdadeira pandemia chega agora", disse o alemão. Tal como na pneumónica de 1918.
A pergunta fatal que ninguém quer colocar é: o que faremos quando os médicos nos vierem dizer (tal como em Itália ou Espanha) que se torna insuportável escolher quem manter vivo?
Temos então de recuar de novo até ao início da pandemia e à corrida aos ventiladores: feitos na China e vendidos a peso de ouro, mas também encomendados às empresas portuguesas que criaram novos dispositivos de assistência respiratória. Temos suficientes? Filipe Froes, um dos pneumologistas mais escutados durante esta crise, tem afirmado que Portugal terá já aproximadamente 500 para responder à crise (além de duas mil camas de internamento). O primeiro-ministro tinha mencionado, numa das conferências de imprensa, uma percentagem de ocupação de cuidados intensivos que permitia um cálculo de 500 camas de UCI. Deixava, no entanto, no ar, a possibilidade de este número poder ser alargado caso fosse absolutamente necessário.
As próximas semanas responderão se este número de unidades de ventilação é suficiente. E se não for? Qual o limite da hospitalização?
Aqui chegados, há três caminhos, tal como há três pandemias. Comecemos pela pandemia mais absurda, a da desinformação: não acreditarmos que nada disto está a acontecer com gravidade. O combate ao alarmismo sistemático de alguns meios de informação tem como resposta uma atitude negacionista desproporcionada - como se não houvesse mesmo uma peste de proporções bíblicas em curso. As teorias do vírus manipulado, dos falsos testes positivos, da contagem errada das mortes, dos negócios lobísticos das farmacêuticas ou da ditatorial limitação dos direitos dos cidadãos não consegue anular a realidade: um novo vírus com que passaremos a viver no planeta enquanto não conseguirmos erradicá-lo por efeito de uma vacina ou de uma fortíssima imunidade de grupo.
Sem um ponto de equilíbrio na desinformação - Trump e Bolsonaro lideraram essa ideia de que a pandemia económica é mais real do que a de saúde pública - o efeito torna-se devastador. E acontece exatamente o que os presidentes dos Estados Unidos e do Brasil não queriam: mais doença e maiores consequências económicas.
Por outro lado, na pandemia económica, as contas são bem mais simples e estão todas no teste do Excel: perdas de produto interno bruto recordes e défices públicos galopantes. Se em Portugal a queda do PIB deverá ultrapassar os 10% e o défice público acabará o ano em 7%, já Itália, Espanha e França estarão ainda pior. A economia global terá o seu pior ano em muitas décadas e o número mais assustador é outro: a multidão de desempregados e empresas a fechar.
Por essa razão, se o SNS acabar por colapsar nos cuidados intensivos, e os médicos tiverem de começar a colocar a questão "quem salvar?", o que fará a opinião pública portuguesa, o governo e o parlamento? Vão acabar por sucumbir ao autoconfinamento ou prosseguir, "à sueca", o caminho mais difícil?
A Suécia. É verdade que somos todos seres humanos, com genes muito parecidos, mas a organização social nórdica é tão diferente da portuguesa que procurar padrões de comportamento/transmissão idênticos traz enormes riscos. Por um lado, porque os suecos, em regra, estão menos misturados geracionalmente, já que os progenitores dão a oportunidade de os filhos irem viver sozinhos aquando da entrada na universidade. Além disso, 40% dos suecos vivem sozinhos, o que gera um confinamento automático durante mais de 12 horas do dia em quase metade da população. E, por fim, os epidemiologistas suecos continuam a acreditar que, no final, as contas do coronavírus globais vão ser muito idênticas às deles - se os hospitais funcionarem (e na Suécia funcionam e a curva do SNS não foi ultrapassada).
Há um fator essencial a acrescentar à realidade portuguesa e que nunca pode ser esquecido: o nosso quarto lugar mundial no ranking da percentagem de pessoas com mais de 65 anos (mas também com mais de 75 e 85 anos). Estamos apenas atrás de Japão, Itália e Finlândia. Esta realidade só não se torna uma psicose nacional porque somos beneficiados pelo nosso baixo número de população. Em número de idosos estamos na 43.ª posição (apenas 2,4 milhões), contra 166 milhões na China, 84 na Índia ou 52 milhões nos Estados Unidos. Ajuda bastante não ouvirmos falar em mil mortos num só dia, mesmo que a nossa base estatística de infetados ou vítimas tenha sido por vezes a mesma ou superior a alguns países com números expressivos.
Ainda estamos no meio de setembro e já nos hospitais algumas chefias fazem apelos à racionalização dos equipamentos de proteção individual do pessoal na linha da frente da covid-19. Seria absurdo voltarmos ao início da pandemia - desta vez já sem desculpa - e confrontarmo-nos, de novo, com queixas de médicos e enfermeiros sobre a falta de luvas ou fatos de proteção.
Por cá, o governo foi aqui e além congratulado com o feito extraordinário de ter fechado um semestre tão difícil com apenas 5,7% de défice público, usando provavelmente a tática "Centeno" do "confinamento orçamental", ou seja, o conhecido mecanismo das cativações.
Na verdade, as primeiras vítimas estão já a aparecer no horizonte: os desempregados, vítimas da mudança do regime de lay-off simplificado. O governo quis aliviar a despesa pública e pôr a conta maior do lado das empresas. Milhares destas terão abdicado já de manter alguns funcionários ligados ao "ventilador económico" e optado por decretar falência ou despedir parte do pessoal a partir de outubro.
Ou seja, não satisfeito com o facto de ter gasto metade dos mil milhões/mês que previa com o lay-off, o governo resolveu esticar ainda mais a corda e, tudo indica, partiu-a. Não há retoma de verão que faça sair do estado de coma tantos milhares de empresas. Quando chegarmos a dezembro e janeiro, ver-se-á o que aconteceu. E já será tarde.
O The New York Times tem seguido dia a dia a evolução das vacinas e o balanço é promissor: 28 na fase 1 de testes, 15 na fase 2, dez na fase 3 e cinco já em uso limitado.
Tudo isto espremido e dá ainda pouca coisa. Nenhuma está autorizada para ser produzida em massa, mas há uma boa notícia: Bill Gates está a dirigir as operações, em conjunto com várias ONG e a Organização Mundial da Saúde, quanto à logística. Supõe-se que no arranque sejam distribuídas à escala global dois mil milhões de doses. Ou seja, no fim dos testes haverá embalagens, armazenamento em frio e condições de transporte. Logo que exista luz verde, os aviões descolam.
Quanto aos nomes que lideram a corrida, comecemos pelas cinco que estão em administração limitada: quatro são chinesas e uma russa.
A chinesa CanSinoBio, desenvolvida na Academia Militar de Ciências Médicas de Pequim já está a ser administrada opcionalmente a militares enquanto prosseguem os testes finais (fase 3) na Arábia Saudita, no Paquistão e na Rússia.
Na Rússia, Vladimir Putin anunciou a administração da vacina Sputnik V, uma criação do Instituto de Investigação Gameleya, pertencente ao Ministério da Saúde, mas a verdade é que se tratou do uso em dois mil voluntários, mais tarde alargado a 40 mil, mantendo-se o desenvolvimento dos testes da fase 3. Nenhuma encomenda com destino a Brasil, México ou Índia foi entregue.
As restantes três são igualmente chinesas, produzidas por Sinovac, Sinopharm e Instituto de Produção Biológica de Wuhan. Também aqui esta "vanguarda" de aprovação é relativa já que se traduz apenas em usos de emergência decretados pelo Estado chinês e, num dos casos, também pelo pessoal médico dos Emirados Árabes Unidos.
Mas se as cinco vacinas em uso limitado parecem ter alguma dianteira, na verdade a comunidade científica ocidental está a olhar para os grandes nomes da investigação farmacêutica: Moderna e Johnson & Johnson (Estados Unidos); os suecos e ingleses com a vacina Oxford AstraZeneca; os alemães bioNTech em consórcio com a chinesa Fosun e os nova-iorquinos da Pfizer; e o Instituto de Pesquisa Infantil Murdoch na Austrália. Com estratégias diferentes, e maior ou menor avanço dentro da fase 3, é provável que haja algum desenvolvimento e produção até ao final do ano ou ao longo do primeiro trimestre de 2021.
Alguns virologistas consagrados têm dito que a crise pandémica só estará, no entanto, ultrapassada no verão. Se assim fosse, e embora pareça muito tempo, estaríamos perante o mais rápido avanço científico da história da humanidade.