"Quando o Francisco começou a andar, sentei-me no chão da Estefânia a chorar que nem uma desalmada"
Marta Gomes de Pina deixou de ser Marta para ser só mãe e cuidadora, 24 sobre 24 horas, durante três anos, e agora, que o passarinho começou a voar sozinho, voltou a si e escreveu-lhe um livro. A ele e a todos os prematuros, pais de prematuros e resto do mundo.
O Passarinho Que Nasceu antes do Tempo (Uma História sobre a Prematuridade) é uma edição de autor que quer mostrar por que os prematuros são diferentes e iguais e especiais.
O passarinho nasceu antes do tempo e este livro nasceu quando?
O Francisco, depois de nascer, de 27 semanas e com 690 gramas, esteve internado quatro meses e meio, na unidade de cuidados intensivos neonatais da Maternidade Alfredo da Costa [MAC]. Quando veio para casa, fomos percebendo que as pessoas não sabiam o que era isto de nascer com 500 gramas. Não imagina as vezes que ouvi, mesmo dos nossos amigos mais próximos, "não te preocupes, não cresceu lá dentro, cresce cá fora". Cinco anos depois, tenho noção de que isto resulta de desconhecimento da sociedade sobre prematuridade, mas na altura magoava-me. Estava desfeita, o meu filho tinha infeções e pneumonias umas atrás das outras, mais do que uma vez tinha estado a morrer e as pessoas só diziam: "Não te preocupes, vai correr tudo bem." Felizmente correu, mas podia não ter corrido. Nós conhecemos muitos casos que não correram bem.
Como foi convosco?
Eu nunca tinha estado grávida, tive uma gravidez péssima, comecei com contrações desde o início e tive um mau acompanhamento obstétrico. O Francisco acabou por nascer de uma forma muito abrupta. Às 25 semanas comecei a ter falta de ar e palpitações, que a médica desvalorizou, mas aquilo piorou e, quando fui medir a pressão arterial, perguntaram-me se chamavam o 112 ou tinha alguém que me levasse às urgências. O mundo caiu na nossa cabeça de um dia para o outro, no mesmo dia até.
Destaquedestaque"Na minha cabeça, com aquela idade gestacional e o peso que estimavam, que era 500 gramas, não era possível uma criança sobreviver, por isso comecei a fazer o luto."
Então?
Nas urgências da MAC, percebeu-se que o Francisco não estava a receber os nutrientes e o oxigénio necessários porque a placenta bloqueava, eu estava com uma tensão altíssima, as máquinas até davam erro. Fui internada no dia 2 de outubro de 2015, estava de 27 semanas, e os médicos avisaram-nos de que ele tinha de aguentar até às 28, porque por cada dia que passa são três por cento mais de probabilidade de sobrevivência. Fazia ecografia de 12 em 12 horas, sempre com preparação de cesariana, caso fosse necessário agir logo. No dia 8, fiz a ecografia de manhã. Quando cheguei à enfermaria dos cuidados intensivos, estava lá a Dra. Ana Campos, na altura diretora clínica da MAC, à minha espera, para me dizer que sabiam que o bebé aguentava até às 28 semanas, mas tinham de fazer a cesariana, porque eu estava com um pico de tensão e o protocolo obrigava a salvar a mãe.
Como reagiu?
Eu queria era que o salvassem, mas não dependia de mim e foi tudo muito rápido. Na minha cabeça, com aquela idade gestacional e o peso que estimavam, que eram 500 gramas, não era possível uma criança sobreviver, por isso comecei a fazer o luto, mas ao mesmo tempo os médicos diziam que era possível. Mostraram-me um álbum com fotografias de prematuros, explicaram os vários níveis de prematuridade, levaram-nos à unidade de cuidados intensivos neonatais. Isto fez uma enorme diferença, deu-nos alguma esperança e preparou-nos para quando nos mostraram aquele alienzinho minúsculo.
Que sequelas teve o Francisco?
Eu tive uma paragem cardiorrespiratória no parto, mas o Francisco conseguiu nascer sem precisar de ser reanimado, o que foi uma grande vitória, e conseguiu ultrapassar o peso estimado - tinha 690 gramas -, o que fez diferença. Os pulmões ainda não estavam totalmente desenvolvidos e foi logo ventilado. Mais tarde, quando os médicos acharam que já tinha idade gestacional e maturidade pulmonar para tirarem o tubo e fazerem uma ventilação não invasiva, perceberam que era necessário uma traqueostomia - que é aquele buraquinho na traqueia, abaixo das cordas vocais. Quatro meses e meio de internamento, com muitas intercorrências. Veio com oxigénio para casa, ligado à cânula da traqueostomia, 24 horas sobre 24 horas, que só tirou com 1 ano e 9 meses. Em julho deste ano tirou a cânula. Neste momento, tem o buraquinho, que, se tudo correr bem, vai ser fechado através de cirurgia plástica na primavera. Portanto, é isso e uns pulmões mais frágeis. Tivemos muita sorte, apesar de tudo.
Destaquedestaque"Quando o Francisco começou a andar, sentei-me no chão da Estefânia a chorar que nem uma desalmada. Ainda hoje gozam comigo, mas foi uma emoção brutal, uma vitória."
A traqueostomia teve consequências no desenvolvimento da fala?
Teve. O Francisco, felizmente, a nível cognitivo está muito bem, mas a traqueostomia não deixa passar o som e ele só começou a falar aos 2 anos e tal porque lá percebeu qual era o mecanismo que o fazia emitir sons. Os otorrinos não sabiam como ele conseguia, mas ele arranjou uma forma - o ser humano adapta-se e encontra atalhos -, e agora não se cala. Em termos motores, também começou a andar mais tarde, pela mesma altura, por falta de força e estrutura muscular. O Francisco tem 5 anos e 12 quilos e, como é um miúdo cauteloso, não arrisca. Agora durante o confinamento conseguiu começar a saltar com os dois pés no ar. Ele chega lá, num tempo diferente dos outros, mas vai fazendo seu caminho. É uma coisa que os pais dos prematuros por vezes têm dificuldade em encaixar, porque entram em comparações com os outros. É importante perceber que eles têm o seu timing. Quando o Francisco começou a andar, sentei-me no chão da Estefânia a chorar que nem uma desalmada. Ainda hoje gozam comigo, mas foi uma emoção brutal, uma vitória.
Neste processo todo, sentiu-se desapoiada?
Não digo isso, tinha o pai dele, mas senti que falta sensibilização, falta dar a conhecer. Por exemplo, quando eu estava no supermercado com o meu filho - que tinha de andar com uma garrafa de oxigénio -, as pessoas passavam, paravam ao pé do carrinho e, como se nem eu nem ele estivéssemos ali, diziam "Ai, que horror". No primeiro aniversário dele fiz uma festa com cento e tal pessoas porque queria festejar o primeiro ano de vida, que foi uma vitória, e deram-me imensa roupa de um ano, mas ele vestia tamanho de recém-nascido, e não me esqueço do diálogo com a miúda da loja quando cheguei cheia de sacos para fazer as trocas.
O que aconteceu?
Disse que queria trocar a roupa, e a miúda pergunta: "Porquê, ficam pequenas?" E eu, "não, ficam muito grandes". "Então e qual é o tamanho que ele veste?" "50 cm, que é o equivalente a recém-nascido", e a rapariga olha para mim e diz: "50 cm? Ai, que horror." Eu respirei fundo e respondi: "Não é um horror, é uma sorte ter um filho vivo e com 50 cm." A miúda ficou muito envergonhada e agora até sou capaz de ver em perspetiva, mas naquela altura era um sofrimento. Isto para dizer que me fui apercebendo deste desconhecimento generalizado. Entretanto, começaram a pedir-nos para aparecermos em reportagens sobre prematuridade, até porque o pai do Francisco é o Bernardino [Soares, presidente da Câmara Municipal de Loures], e isso acaba por ter um impacto maior. No início resisti, mas depois percebi que era uma forma de sensibilizar as pessoas, de mostrar que pode acontecer a qualquer um.
Foi então que se começou a formar a ideia do livro?
Antes disso, criei uma página no Facebook sobre prematuridade, que se chama Antes do Tempo, tinha o Francisco para aí 2 anos e eu muita coisa cá dentro que não conseguia verbalizar. Eu, que nunca escrevi na vida, comecei a escrever, e partilha-se lá tanto, é tão terapêutico, para mim e para quem segue a página, que percebi que as pessoas precisam de falar, de partilhar as suas histórias, de pôr dúvidas, de trocar experiências.
As pessoas precisam de saber que não estão sozinhas?
Sim, e depois também tem o outro lado, que é o da tal sensibilização de que falava há pouco e que era um dos meus objetivos. E é assim que chegamos ao livro. Há cerca de dois anos, quando o Francisco entrou na escola, convidaram-me para ir explicar o que era a prematuridade, no dia que a assinala, e eu não consegui, só me vinham termos técnicos à cabeça e saí de lá altamente frustrada. Já não sei se foi a educadora ou a diretora do colégio, que é minha amiga, que me disse: "Tens é de escrever um livro." E aquilo ficou, em banho-maria, porque eu estava muito cansada, tinha sido um ano complicado a nível de saúde dele, mas ficou cá dentro.
E quando é que veio cá para fora?
No final do ano passado, quando já estava tudo mais calmo. Numa noite de insónias - tenho muitas -, o livro começou a aparecer-me na cabeça e escrevi a história. Numa noite. O meu objetivo era chegar às crianças normais, de termo, e aos pais, que iriam contar-lhes a história, e encaixar este conceito de que nem todos nascem da mesma forma, mas não é por isso que são diferentes. Se todos perceberem isto, os próximos pais de prematuros talvez não passem por aquilo que nós passámos.
E também ajuda as crianças a olhar de outra forma para os meninos prematuros que andam com elas na escola.
Sim, o Francisco tem 5 anos. Se ele entrar para o 1º ciclo, no próximo ano, tenho algum receio, porque ele é um terço dos miúdos de 6 anos que lá estão. Mas o objetivo principal era sensibilizar as crianças que sensibilizariam os pais. Se chegarmos a dez famílias, ótimo, se chegarmos a 50, melhor, mas estamos a caminho das 500, o que é extraordinário.
Destaquedestaque"Ter um filho já é uma história de amor, quando ele nasce com outras necessidades que nos obrigam a sair de nós para as garantir, é ainda maior. Eu estive três anos, 24 horas sobre 24 horas, com o Francisco e desapareci em mim."
E imagino que também seja para as famílias com crianças prematuras.
Claro. A verdade é que muitos pais de crianças prematuras não sabem como lhes dizer que são prematuros, mas os miúdos têm de saber, e o livro ajuda. Estes miúdos são especiais e têm de saber que o são. O Francisco começou a lutar no útero, se não tivesse lutado teria sido mais um nado-morto, e a quantidade de vezes que esteve para morrer dentro daquela incubadora e sobreviveu porque se agarrou à vida como nenhum de nós, tenho consciência disso agora, conseguiria agarrar-se, é extraordinária. Eles têm de ser valorizados por isso, porque ao longo da vida, especialmente nos primeiros anos, vão ser olhados como diferentes e têm de ter a autoestima reforçada. O Francisco vai ter uma cicatriz no pescoço por causa da traqueostomia e vai dizer "esta é a minha marca de guerra, se não fosse ela não estaria cá", e eu acho que os miúdos prematuros, mesmo que não tenham sequelas, mesmo que tenha corrido tudo bem, têm de saber, porque ao longo da vida vão precisar de se sentir valorizados.
Porquê um passarinho?
Porque chamo passarinho ao Francisco desde que ele nasceu, parecia um passarinho que tinha acabado de cair do ninho. O livro não podia ter outro título. O Francisco sabe que é prematuro, que nasceu antes do tempo, que esteve numa caixinha mágica para crescer, e eu acho importante que os outros também saibam e, mais do que isso, é importante dar ferramentas aos pais para que consigam contar a história sem aqueles termos técnicos horríveis. O livro é isso, uma história muito simples, para crianças a partir dos 2 anos. Tive a sorte de encontrar um amigo pintor do movimento surrealista que saiu completamente do registo dele e fez desenhos em aguarela, que é o Luís Morgadinho, que percebeu exatamente o projeto e se agarrou a ele com o mesmo amor que eu, assim como os amigos que fizeram a parte gráfica. O livro é amor em estado escrito. Aconteceu, está cá e está tão lindo.
Como é que as pessoas o têm recebido?
Toda a gente adora. Recebi muitas reações positivas através da página e essencialmente dos pais dos prematuros. Têm partilhado comigo tantas histórias, tantas, tristes, alegres, bonitas, de amor. Ter um filho já é uma história de amor, quando ele nasce com outras necessidades que nos obrigam a sair de nós para as garantir, é ainda maior. Eu estive três anos, 24 horas sobre 24 horas, com o Francisco e desapareci em mim. Era a cuidadora, a terapeuta, a mãe, e desapareci, e depois tive de me recuperar aos bocadinhos. O que é isto senão uma história de amor?
E agora?
Agora percebo que, com este livro, está-se a encerrar um ciclo e já consigo olhar para o Francisco sem o permanente fantasma da prematuridade em cima. Por outro lado, já se fala mais um bocadinho de prematuridade, o que me deixa de consciência tranquila e permite dizer: "Francisco, vieste ao mundo diferente, mas já fizeste a tua parte." Esta tiragem teve 500 exemplares. Se for preciso fazer outra, faz-se, mas se chegar a cem famílias já é uma vitória. Pode ser uma gota de água no oceano, mas faz alguma diferença em termos de sensibilização num mundo em que o rácio é de um prematuro em cada dez bebés, e estima-se que nasçam cerca de 15 milhões de bebés prematuros por ano.
Porquê a opção pela edição de autor?
Não foi por falta de interesse das editoras, mas um dos meus objetivos era que uma parte das vendas do livro revertesse para a unidade de cuidados intensivos neonatais da MAC, que foi a nossa primeira casa, aqueles profissionais foram tudo para nós, e dessa forma o valor por livro seria irrisório. Então, comecei a ver o que era preciso para editar eu e avancei. A maior parte das vendas são feitas através da minha página de Facebook. O que consigo? Pagar a edição do livro e os portes de envio e doar dois euros por livro à MAC. Não fico com dinheiro para mim, mas esse nunca foi o objetivo.
Pode ser encomendado através de:
- Página de Facebook Antes do Tempo
- Instagram @antes_do_tempo
- E-mail - antes do tempo.email@gmail.com
- Presencialmente, na Boutique da Cultura, em Carnide