Rita Blanco: "Porque hei de eu ganhar menos do que um homem?"

Atriz, feminista, defensora da cultura, mas acima de tudo mãe. Rita Blanco lamenta a falta de tempo que é dada à arte e a incapacidade dos portugueses defenderem o seu património, mas mostra-se grata ao público que sempre a acarinhou. <em>(Artigo originalmente publicado a 26 de agosto de 2018)</em>
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É hora de almoço, mas como Rita Blanco não pode comer (tem uma colonoscopia marcada para o dia seguinte), acabamos por passar essas horas à conversa, naquele que é o seu jardim desde os 12 anos: no Museu de Arte Antiga, em Lisboa. "É o meu escritório" e é na sua árvore que responde às perguntas. Pelo meio hão de ouvir-se muitas gargalhadas de uma atriz séria, mas que não se leva muito a sério. Para mostrar como fica sem graça perante as homenagens, ainda que "profundamente agradecida", partilha com o DN a caricata história da sua condecoração pela República Francesa. E é por aí que começa a entrevista.

Estava agora a contar a história da sua condecoração pela República Francesa. Começamos já por aí.

Eu explico. Ao contrário do que eu própria digo, que acho mal os prémios, para mim própria, não para os outros, fico sempre muito envergonhada, a achar que então toda a gente tinha direito a receber prémios, realmente também fico muito lisonjeada. Não é possível uma pessoa receber um prémio e ficar "eh que chatice". Fica-se feliz, porque acho que os atores do que gostam mais na vida é que gostem deles - esta atriz, que eu não posso falar pelos outros. Quando recebi esta condecoração do Estado francês, recebi uma carta primeiro a dar os parabéns da ministra da Cultura -à época, era uma ministra - a dizer que tinha muito gosto e era uma daquelas cartas encantadoras, vinha lá o meu nome, de facto, e pensei: "O melhor é eu não dizer nada e ficar sossegada porque quase de certeza que para a semana me mandam uma carta a dizer "pedimos imensa desculpa, afinal não era para si, enganámo-nos'"", porque desde pequenina que tive sempre esta sensação de que havia sempre um engano, que eu não merecia. Fiquei caladinha que nem um rato. Entretanto, começo a receber uns telefonemas da embaixada, que precisavam de se encontrar comigo para fazer o discurso, e assim foi. Fui conhecer uma senhora que vinha de Paris para perceber os meus gostos, para depois fazerem uma festa, uma cerimónia. E comecei a ficar um bocado aterrada, a pensar "valha-me Deus, como é que isto vai ser". Pronto, não havia disponibilidade, eu estava a trabalhar, entretanto o embaixador foi-se embora e eu não recebi a condecoração, ainda que estivesse já condecorada, mas nunca recebia a medalha. Veio outro embaixador e não havia maneira de nos entendermos com uma data. Passaram-se dois anos e nunca recebia aquela coisa - sou Cavaleira das Artes e das Letras - até que decidi "não se faz condecoração nenhuma, se não se importam ponham-me isso na portaria e eu vou lá buscar a medalha". E assim ficou combinado. Eles disseram-me para ir lá buscar no 14 julliet, que é o dia da festa nacional francesa. Lá fui e quando ia buscar a condecoração à portaria vejo um senhor enorme, com medalhas até ao pescoço, que era o chefe da gendarmerie, um senhor encantador que me disse: "Est tu madame Blanco?", e eu disse "oui", e ele "j"ai quelque chose pour vous" e lá fui. Abri o envelope e lá estava a caixa com a medalha. O senhor ficou espantado e as pessoas ali à volta disseram "mas isso é uma condecoração" e eu "pois é, pois é, eu fui condecorada, já há dois anos [com voz de contentamento]" e lá estava a medalha, dentro do plástico. E o senhor olhou para mim e disse "não se importa que eu faça a sua condecoração?" Isto na portaria, ao pé daquela coisa para ver se as pessoas não têm bombas. Para mim o maior prazer que eu podia ter era ser condecorada sem pompa e circunstância e daquela maneira. Foi ultracomovente, mesmo simples, maravilhoso, e foi muito engraçado.

A Rita não quer falar dos políticos, mas continua a interessar-se pela política?

Decidi que não falo mais sobre os políticos. A política deixou de ser aquilo que nós tínhamos a ideia que era a política na Grécia, um lugar honroso para as pessoas, que só ia quem tinha essa capacidade de se dedicar aos outros. O mundo está virado ao contrário, esta coisa da seca extrema na Austrália, tudo está a acontecer e nós não caímos em nós e dizemos: "Espera, estamos a destruir o mundo, para os nossos filhos, os nossos netos, para nós próprios." Porque as pessoas estão tão preocupadas em ganhar muito dinheiro, muito depressa, que se esqueceram de viver, elas próprias.

E por que é que isto acontece?

Tem tudo que ver com poder e com dinheiro. Como é que é possível haver um Trump, como é que é possível haver um Boris Johnson. Como é que é possível estas pessoas dizerem tantas coisas tão estúpidas. Sabes o que é? A ignorância é uma fatalidade. É a pior coisa do mundo. O Trump, coitadinho, se ele soubesse alguma coisa sobre alguma coisa não faria aquilo.

Mas ele está lá porque pessoas votaram nele...

Ignorância. Mas são os políticos que tornam o mundo ignorante, também eles. Não são só eles, nós somos todos responsáveis. No entanto, olhamos e as grandes potências estão governadas por malucos, que num mundo normal e decente estavam, coitadinhos, a ansiolíticos e com coisas para as psicoses. Estavam a ser tratados, estavam fechados, esperemos que com as melhores condições, que é o que desejamos para toda a gente, mas não podes ter um criminoso a governar uma potência. Já olhaste bem: Putin, Trump, seguimos a Coreia... (não consigo dizer o nome do outro senhor). E tu olhas e pensas assim: "Estão a brincar, isto é um talk show qualquer e estes senhores estão aqui pagos para fazer macacada. Foleira, mas macacada." Mas não. São políticos e governam as maiores potências do mundo. Não é esquisito? Medo.

E a arte não deve ter um papel de despertar as consciências para esses riscos?

A arte sim, mas primeiro, fundamental, é a educação. As pessoas precisam mesmo de entender porquê, de ter prazer em aprender. Tudo isso é fundamental para depois a vida poder fluir e percebem que se pode viver com muito menos.

Mas continua a afirmar-se como uma mulher de esquerda?

Se dissermos que ser de esquerda, como dizia José Mário Branco, é não suportar o sofrimento dos outros, então eu sou. Nunca tive a pretensão de ser política, sou política na minha profissão, obviamente. E, por isso, muito triste. Por exemplo, acho extraordinário como é que um teatro como o da Cornucópia, que foi fundamental para o teatro em Portugal, no mundo, acabou e passou despercebido. Eu precisava da Cristina Reis, do Luís Miguel [Cintra], daquelas pessoas para me ultrapassar e agora não tenho como. Deixei de ter diálogo e fiquei doente. Pensar que a Cristina Reis nunca mais faz um cenário, para mim é... não posso falar disso [emociona-se], é muito triste. E não entendo como é que as pessoas deixaram que isto acontecesse, como é que todo o espólio da Cornucópia, que é uma obra de arte, foi para Espanha, o que é que se passa connosco? Por que é que nós não conseguimos gostar de nós. Nós temos pessoas extraordinárias, coisas extraordinárias e não nos defendemos uns aos outros. Agora podem dizer "a Cornucópia também decidiu acabar" e o que é que fizeram ao espólio, por exemplo? Por que não houve condições para aquilo continuar? Hoje em dia temos de fazer teatro com uma velocidade que não se coaduna com as necessidades artísticas. A cultura deixou de ser uma coisa interessante, é como ir à Feira Popular: vamos à Feira Popular, vamos despachar, vamos ali, comemos algodão-doce, já está, vamos para casa. Não aconteceu nada. Supostamente, a arte, primeiro, e a cultura servem para as pessoas pensarem, se questionarem, irem para casa mais cheias.

E o que vai fazer a seguir?

Se o João Canijo tiver dinheiro para fazer um filme, fá-lo-ei, vou trabalhar nas novelas e agora francamente acho que estou no auge das minhas capacidades. Acho que estou mais preparada para trabalhar. Estão as pessoas interessadas em que eu trabalhe? Definitivamente, não. É indiferente. Portanto, vou fazer aquilo de que gosto: vou isolar-me, vou para uma aldeia, em terras onde possa fazer teatro com crianças, com velhos, eles interagirem, eu fazer aquilo de que gosto, que é estar a ver as pessoas a trabalhar os textos, que é a coisa mais bonita do mundo. Posso fazer isto, mas ainda gostava de tentar ultrapassar-me mais uma vez ou outra.

"Espero que me deem essa abébia. Do que gosto mesmo é de fazer mulheres portuguesas"

Poderia ser com uma carreira lá fora?

Espero que um dia vocês me deem essa abébia de perceberem que o que gosto mesmo é de fazer mulheres portuguesas. É isso que me dá gozo, porque - sei que isto vai parecer uma arrogância - gosto de fazer bilros com as personagens portuguesas que faço, ou seja, ir ao pormenor. Adoro recriar a alma da mulher portuguesa. Porque é aquilo que me é mais próximo e que mais poderei eventualmente entender. Um dia, porque aqui não há muito espaço, há personagens que podia apetecer-me fazer lá fora, falar sobre a velhice, sobre temas que me interessam, porque é que as mulheres acabam sozinhas, personagens assim que me interessariam. Mas nunca me passou pela cabeça fazer uma carreira no estrangeiro.

Porque é importante essa questão de proximidade com o que representa?

Mas isso é para mim. Porque eu adoro recriar mil vezes a minha avó, as minhas tias, a minha mãe. Quero recriá-las, é aquilo que eu entendo, é aquilo que está ligado à minha afetividade, portanto vou sempre fazer a mesma personagem em situações diferentes, que sou eu própria. Olha, o filme Fátima, dizem-me assim "vais fazer uma mulher que vai fazer uma peregrinação a Fátima". Então, o que é que eu vou fazer, qual é o meu trabalho: como é que eu, Rita, se tivesse nascido em Vinhais, com estas determinadas condições - faço sempre a história da personagem -, por exemplo, tinha uma filha e que o marido lhe dava uns estalos de vez em quando ou que trabalhava que nem uma cadela e para quem isto são as férias. Como é que eu, Rita Blanco, faria isto, se tivesse vivido nestas condições? Como é que eu era? As minhas personagens só poderão ser feitas por mim. E o que eu faço vem da minha avó, da minha mãe, das minhas tias. Estou a falar no sentido feminino. Como vem do meu pai, do meu padrasto, dos meus tios, dos meus sobrinhos, das minhas ligações afetivas. Portanto, como as minhas ligações afetivas são quase todas portuguesas, também de alguma maneira francesas, daí eu já ter feito filmes suíços, franceses. Aquilo que me é mais próximo é aquilo que eu entendo melhor e é a minha verdade.

Então o que precisa de fazer mais é teatro e cinema erudito?

Isso é fundamental, não pode haver só teatro ou cinema comercial. Não pode ser. Há imensos textos que são muito engraçados e que acho que se devem fazer, deve-se manter essa tradição de as pessoas irem ao teatro ver um espetáculo e verem representar, tudo isso, mas também tem de haver um outro espaço de pensamento. Eu, por exemplo, adoraria fazer um espetáculo em que vocês saíssem de lá e que isso vos questionasse, vos preocupasse, que vos fizesse pensar. Porque se fizer mais um texto agradável e em que está tudo feito para nós gostarmos, vamos para casa e pensamos apenas 'ah que giro, percebi tudo'. Estava já tudo mastigado. Não estou a dizer que o teatro tem de fazer que depois vocês vão para casa e se espanquem um ao outro, ou que deixem de dormir, mas o teatro tem essa função, pode ter essa função, o cinema pode ter também essa função. A arte definitivamente tem uma função de nos espantar. Não podemos ver um quadro da Paula Rego e ficar imunes, porque está ali a condição humana. E é disso que nós vivemos, da condição humana. Precisamos disso para nos reconhecermos uns aos outros, para nos podermos amar melhor, reconhecer na nossa falha. Todos nós falhamos constantemente, uns mais do que os outros. Quanto mais poder, mais falha.

E as novelas, faz por gosto ou necessidade?

A sua pergunta é traiçoeira, mas eu vou atraiçoá-la também, porque amor com amor se paga. Faço as novelas com muito gosto. Um ator de telenovela é trabalho específico, tem uma técnica específica e é um trabalho duríssimo. No entanto, fazer novelas constantemente empobrece-me como atriz porque gosto de fazer teatro, cinema, também posso fazer novela e gosto de fazer. Quando lá estou, faço o melhor que posso e sei, divirto-me e há momentos em que estou muito bem. Agora é um trabalho muito duro e que não se pode fazer constantemente. Para mim depois de uma telenovela tenho de estar parada, tenho de fazer outras coisas, que aquilo é um trabalho de muitas horas, com muita exigência, até física, muitos textos para dizer diariamente, portanto não é uma coisa que se possa fazer sempre, o tempo todo. E acho que apesar de tudo tenho sido cuidadosa e tenho feito com alguma parcimónia. Só comecei a fazer novelas para aí com 50 anos e já fiz três novelas. A outra anterior que fiz foi um castigo, não conta, mas foi por causa de um processo e essa não considero um trabalho porque não fiz por vontade própria. E ganho dinheiro que preciso de ganhar para viver.

Em termos de personagens, o que lhe falta ainda fazer?

Não é uma questão de personagens. É descobrimos maneiras de podermos chegar às pessoas, inquietar as pessoas, de fazer as pessoas mais felizes, que é para isso que eu sirvo. Já fiz personagens que, não propriamente pelas personagens, mas pela envolvência do espetáculo onde estava, ainda hoje me emocionam. Fiz uma personagem que era a Alma, que era o Auto da Alma, de Gil Vicente, mas era uma colagem de texto do Luís Miguel Cintra, e que se chamava Miserere, e eu inspirei-me na Amy Winehouse e tinha o aspeto dela, e a encenação era uma coisa inacreditável. Às vezes estava a fazer o espetáculo e distraí-me a perceber coisas que ainda não tinha percebido. Como é que aquele homem tinha tido aquelas ideias todas. E o cenário, a Cristina Reis faz uma coisa que eu não tinha percebido que era possível, e não sei se há mais alguma que faça isso no mundo, que é: tens o cenário e em qualquer posição em que te ponhas, com a roupa que estás, está tudo certo. É tudo dramático. É uma comoção poder trabalhar assim, eu já posso morrer. Se morrer hoje, fico satisfeita, só não fico por causa da minha filha e dos meus bichos. Gostava ainda de ter milhões de netos, que é o meu próximo trabalho, um trabalho que vou levar muito a sério. E a Alma, eu passado um ano ou dois, lembro-me de estar sozinha na praia, a entrar no mar e caíam-me as lágrimas a lembrar-me da dor daquela personagem, porque era uma personagem que estava completamente limpa e chegava ao mundo e era absolutamente torturada por todos e não entendia porquê. Depois de ter feito aquele trabalho, já podia morrer. Trabalhar com o João Canijo e fazer o Ganhar a Vida, também já podia morrer. Um filme comercial, como foi A Gaiola Dourada, e que foi tão importante para tanta gente. Fiz Os Desastres do Amor, que era um espetáculo em que consegui fazer coisas que eu não sabia que tinha. Não quer dizer que as outras pessoas achem isso, atenção. E mais, gravíssimo: tive uma filha, estar grávida foi assim a melhor coisa que me aconteceu na vida. Foi mesmo bom. Como era muito magrinha, só comecei a ter barriga mais tarde, e às vezes as pessoas vinham ter comigo e diziam na rua "olá, está boa?" e eu "estou grávida, estou" e elas "ai, está?". Vinha o carteiro: "Tenho aqui uma carta", e eu "estou grávida", qualquer coisa que me dissessem eu dizia "estou grávida'. Porque achava que não ia nunca ter filhos, e que não merecia, aquelas coisas em que nós nos autotorturamos, vá-se lá saber porquê. Mas ela foi assim uma coisa muito jeitosa que eu fiz. Que me soube que nem ginjas e que, ainda por cima, continua para bingo.

Ser mãe é a personagem mais difícil?

Não é fácil é ser uma boa mãe. Isso nunca fui, nunca consegui ser. Li todos os livros que era possível. Todos os pedagogos, estrangeiros, portugueses, o grande João dos Santos. Li tudo, e assim via o quão aquém estava de ser uma boa mãe, mas, como eles dizem lá na gíria deles, fui uma mãe suficientemente boa. Tentei não a destruir. A minha filha é maravilhosa.

Sente que a presença diária na televisão lhe tirou privacidade?

Na verdade, antes de fazer novelas já tinha feito, por exemplo, O Conta-me Como Foi, que foi muito acarinhada pelo público, acho que foi - é uma vergonha dizer isto porque participo - a melhor série que se fez em Portugal, ou pelo menos uma das melhores, com certeza. Com muita pena minha, a RTP não cuidou bem do seu produto, o que é uma vergonha, porque é dinheiro público e os dinheiros públicos têm de ser bem administrados e a RTP andou mal nesse sentido, alterar horários não foi bom para a série. Também fiz o Médico de Família, que na altura foi um grande êxito e de que o público gostou imenso e correu muito bem. Já fiz várias séries, mas o público sempre foi extremamente doce e carinhoso comigo. Estou profundamente agradecida. Aliás, este último Globo de Ouro que recebi, e fui lá receber, disse isto: "Só estou neste sítio onde estou por causa do público." E é verdade. Porque o público obrigou, obriga a que de vez em quando me venham buscar. E eu estou grata, mesmo muito grata, pronto, e o público sempre foi muito doce comigo. É verdade que as novelas, como nós aparecemos diariamente e isso nos aproxima, às vezes de tal ordem, do público, que o público perde a noção de que continuámos a ser pessoas e que não somos uma lata de feijões que está no super. Já me aconteceu sentir-me uma lata de feijões do super. No entanto, como eu gosto muito de feijão, pronto, achei que, eventualmente, a pessoa que me estava a puxar com aquela força toda também gostava de feijão. Eu tenho uma sorte do caraças. Saio daqui - agora não, porque em Lisboa já quase não há portugueses, e, portanto, ninguém me conhece, só os franceses que conhecem às vezes A Gaiola Dourada e que às vezes comentam na rua - e é muito raro voltar para casa e não ter havido um momento em que me comovi, porque há pessoas que são extraordinárias, naquilo que dizem. E eu fico assim: "Não mereço isto, mas não vou dizer-lhes a verdade, vou deixar que eles pensem que é verdade isto" e vou para casa toda contente. Claro que a minha vida não muda, nem muda a vida de ninguém por causa destas coisas, mas enche-me. Quando os senhores dos elétricos passam na minha porta e me dizem adeus e eu digo adeus, cá por dentro caem-me lágrimas de alegria. Mesmo. Adoro dizer adeus aos senhores dos elétricos, acho quase que isso faz que voltemos a ser um povo próximo uns dos outros. E as pessoas são ainda comigo porque, como me conhecem, ao fim de 25 anos em que sou atriz, as pessoas já sabem mais ou menos como é que eu sou. Já não há grande novidade e realmente conhecem-me. Por isso, estão à vontade comigo.

Mas a Rita não mantém, por exemplo, contacto com os fãs nas redes sociais...

Não tenho redes sociais. Porque me faz perder imenso tempo de leitura. Comecei por ter Facebook, depois tive Instagram e também vi que não dava. Perco imenso tempo. Eu preciso absolutamente de ler, senão morro. E percebi que, ao pegar no telemóvel para ver o que estava a acontecer aos outros e pôr fotografias, ficava vazia. Mas isto é pessoal. Não imponho isto a ninguém. E não lia. Voltei a pegar no livro e faço assim [descreve os gestos de ler na cama e adormecer a meio]. Só quando não tenho filha é que mantenho um telefone por perto para se houver algum problema. Porque de resto vivo perfeitamente sem redes sociais, a mim não me trazem nenhuma mais-valia. E depois é assim: vamos discutir o quê, aonde? Percebo que hoje em dia se sabem muito mais as coisas, para mim, na minha cabeça, ainda não está provado que isso tenha feito que houvesse uma evolução, em termos práticos. Sabem-se mais coisas, e as coisas mudam? Não.

Há alguém em Portugal com quem não quisesse trabalhar?

Em que sentido?

No sentido de não lhe agradar a pessoa ou o projeto?

É assim. Mais uma resposta também à minha maneira. Gosto imenso de trabalhar com pessoas de quem gosto esteticamente, em termos de trabalho, posso depois até não simpatizar com elas, obviamente. Mas em geral as pessoas com quem tenho afinidades estéticas, intelectuais, são pessoas de quem gosto muito e é com essas que gosto de trabalhar. Com as outras não gosto, mas elas também não estão nada interessadas em mim, portanto essa questão não se põe.

Mas já lhe aconteceu fazerem-lhe um convite e recusar?

Ah, já me aconteceu fazerem-me convites que não me interessavam. E eu ser muito querida e pensar: "Como não me interessam é melhor recusar, porque ia ser mau para as pessoas." Porque eu não ia saber dar o meu melhor, com certeza.

Acha sempre que não merece os elogios e os prémios. Não é capaz de reconhecer que talvez até tenha feito um bom trabalho?

Se não exigirmos de nós próprios como é que vamos poder exigir dos outros. Passo a vida a fazer disparates, todos nós podíamos exigir mais de nós, mas não é obrigatório. E as pessoas fazem as escolhas que fazem. Podia perfeitamente viver no campo com ovelhas, galinhas e patos e isso provocar em mim uma enorme exigência, tratar o melhor que podia da terra e dos bichos.

"Serei feminista enquanto for necessário"

Ainda acha que é preciso ser-se feminista?

Sou feminista, ponto. Serei sempre, enquanto for necessário ser. Acho que será necessário ser por muitos longos anos, hei de morrer a ter de ser feminista, porque obviamente as condições não são iguais, todos sabemos disso.

Mas há a ideia de que as oportunidades são iguais?

Oxalá que seja. E vai ser. Claro que se fizer a protagonista numa série, num filme, numa peça, se houver um coprotagonista homem, à partida ele ficará sempre em cima de mim. É assim. Porquê? Já ouvi depois de eu dizer isto, "não é nada". Mas é, a não ser que eu antes exija, mas às vezes esqueço-me. E por que é que eu hei de exigir? Mas por que é que ele fica sempre antes de mim. Pelo menos no meu caso tem sido sempre assim, mesmo que eu tenha já trabalhado muito mais. Durante muitos anos aconteceu, mas eu sou feroz. Por que hei de ganhar menos do que um homem? Não vejo razão. Se ele vender mais do que eu, mas se não... Mas à partida, pela lógica, vou ganhar menos, por ser mulher. E isto é um pormenor, porque há situações muito mais graves. Eu vivo muito bem, não sofro as pressões masculinas e machistas em geral. Vivo bem com isto, até porque tenho uma situação que me protege. Mas a grande maioria das mulheres não tem esse tipo de situação. E por que tenho de ser melhor do que um homem para poder estar na condição de um homem? Expliquem-me lá. É porque é assim, uma mulher para ganhar mais do que um homem tem de ser muito melhor do que os homens todos. Os outros homens que ganham mais do que as mulheres não são melhores do que as mulheres. Por que é que eu tenho de ser muito melhor do que os outros para poder ser equiparada? Temos de estar sempre a provar que somos melhores do que os homens, porquê? Já somos. As mulheres têm muito mais interesse do que os homens e olhe que eu sei quanto amei, já amei imensos homens. Imensos, não, mas alguns e vou continuar a amar, espero, mas realmente não há dúvida, as mulheres são mais inteligentes do que os homens. São mais complexas, fazem mais coisas. Mas também gostamos imenso dos homens.

Vai mudar-se para uma aldeia no Algarve. Porquê?

Para viver e para aguentar viver sem a minha filha, que vai estudar para o estrangeiro. Estou muito feliz por ela. É normal, a vida é muito menos complicada do que a fazemos e eu estou agora a fazer uma coisa maravilhosa que é viver a minha segunda vida, que é sentir o prazer da vida da minha filha. Viver através dela as coisas que ela vai fazendo. Isso é a minha segunda hipótese. E quando vierem os netos vai ser a minha terceira hipótese. A vida está super bem organizada, nós é que estragamos tudo.

(Artigo originalmente publicado a 26 de agosto de 2018)

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