Guilherme d'Oliveira Martins é um homem conhecido tanto pelo seu papel na Cultura como nas Finanças. A primeira é uma das áreas mais penalizadas pela segunda e o entrevistado não o nega, daí ser defensor de um maior orçamento para a Cultura, setor que observa de um modo mais abrangente do que é habitual - Educação, Ciência e Cultura. Desde 1974 que está ligado à política, começando por ser um dos fundadores da Juventude Social Democrata, área política da qual se afastou em abril de 1979 ao abandonar o PSD na divisão que originou a Ação Social Democrata Independente. No ano seguinte foi eleito deputado independente pelo PS na primeira das sete vezes em que esteve na Assembleia da República. Entre uma e outra situação foi chefe de gabinete do ministro das Finanças Sousa Franco no governo de Maria de Lourdes Pintasilgo. É por aqui que começamos, numa entrevista a propósito do lançamento do seu ensaio para a Fundação Francisco Manuel dos Santos intitulado Património Cultural -Realidade Viva, que foi escolhido para assinalar o número cem desta coleção. Uma temática a que se tem dedicado e que será abordada nesta conversa..Se tivesse de eleger um momento da sua vida política e pública mais complexo seria o de quando foi chefe de gabinete do ministro das Finanças no governo Pintasilgo? Não, como momento mais difícil escolheria o de quando exerci em 2001/2002 as funções de ministro das Finanças. Pelas dificuldades próprias do cargo e porque me deparei com um ambiente europeu em que existia uma busca de bodes expiatórios naquilo que hoje, ao olharmos para trás, vemos que é o mais importante em termos da saúde financeira, o de o país ter capacidade de corresponder aos desafios através de medidas que pudessem aumentar a riqueza e, sobretudo, garantir a coesão económica e social. Entendo que é indispensável que a União Económica e Monetária precisa da compreensão de que a disciplina financeira deve ser complementada com a coesão económica e social e com uma convergência social. Por isso, hoje temos uma responsabilidade especial em toda a Europa, que é a de reforçar as políticas sociais..Tendo sido ministro das Finanças, como vê a situação atual de muito menor défice e da existência de um excedente orçamental. É adepto desta situação? É um domínio relativamente ao qual não tenho dúvidas. É indispensável a um país como a uma casa termos as contas equilibradas. Quando em 1997 a União Económica e Monetária (UEM) decidiu dar a tónica ao défice, considerei que essa perspetiva era pobre e isso veio a demonstrar-se. Porque em 2005, quando os regulamentos dessa UEM foram revistos, pôs-se a tónica na redução do endividamento - essa é que é a questão fundamental. Devemos criar mais riqueza e investi-la reprodutivamente. Estamos a falar de existirem contas sãs e sustentabilidade, pois não vale a pena falar de sustentabilidade ambiental e esquecer a económica. Nesse sentido, o rigor é fundamental e por essa razão acredito no euro, que antes da crise de 2008 era considerado por muitos como uma realidade frágil, mas, não sendo perfeita, politicamente veio a ter um papel muito importante durante essa crise, bem como o Banco Central Europeu. É indispensável que, mais do que isso, tenhamos do lado da Comissão Europeia e dos órgão europeus medidas concretas que permitam mais coesão económica e social e uma melhor distribuição de riqueza. Rigor sim, contas sãs também, mas sempre a ligar isto à coesão económica e social. Por isso considerei que a ideia apenas sancionatória relativamente ao défice era uma ideia perigosa uma vez que não distinguia os países mais ricos e os da coesão. O que aconteceu? A Alemanha, em virtude da fragilidade dos länders orientais, foi dos primeiros países a romper com o cumprimento dessas regras. É fundamental pensar que essas regras são meios e instrumentos para não fazer esquecer o combate às desigualdades na Europa..Mas não é estranho que tanto os partidos de direita como de esquerda critiquem esse menor défice e excedente orçamental? Isso é circunstancial, porque o facto é que nenhum governo responsável pode recusar a disciplina financeira..Esteve no Tribunal de Contas. Alguma vez teve o vislumbre total da corrupção que existia em Portugal e que éramos um país corrupto? Tive oportunidade de dizer em várias circunstâncias que era um dos domínios que mais me preocupava - e preocupa. Porque a corrupção começa num favor e acaba num crime, daí que tenhamos de ter muito cuidado. Não é o problema da própria dimensão da mesma, é o facto de existir corrupção, daí ser obrigatório a prevenção. A grande aposta na prevenção é algo que muitas vezes as pessoas dizem que não é suficiente, mas considero-a absolutamente fundamental. Por exemplo que as empresas tenham planos de prevenção da corrupção ao privilegiar as decisões colegiais. Quando é assim, existe a possibilidade de controlar melhor o risco e a tentação da corrupção. No Parlamento defendi a ideia da criação do crime de enriquecimento ilícito. E mais, considerei que as propostas que vieram a ser declaradas inconstitucionais no Tribunal Constitucional eram propostas que tinham uma fragilidade que poderia ser corrigida. Essa fragilidade é a de aplicar essa figura apenas àqueles que têm a seu cargo a gestão do dinheiro público. Nesse caso, não há a inversão do ónus da prova nem existe inconstitucionalidade. Além de que não temos falta de figuras criminais no âmbito da corrupção, o que temos é dificuldade na prova relativamente a essas situações. Que não é de hoje nem nossa apenas. Lembramo-nos bem do que é que aconteceu na Lei Seca quando o Al Capone foi condenado por fraude fiscal e não por violação direta das leis que estavam em vigor contra o alcoolismo. Portanto, tive sempre consciência de que a corrupção é algo com que temos de lidar a partir da prevenção, que deverá ser feita sem descanso. Ninguém é invulnerável, ninguém pode dizer que não lhe acontece. Porque começa num favor, numa relação normal com um amigo que pede qualquer coisa. Na primeira vez não há problemas, depois as coisas agravam-se e o que começa num facto lícito acaba num crime. Portanto, devemos perceber antes de mais que a sociedade é imperfeita e que a democracia é tanto melhor quanto lidar com essa imperfeição. Como é que a tornamos perfeita? Prevenindo. Designadamente tudo aquilo que pode gerar a corrupção..Enquanto presidente do Tribunal de Contas confirmou que a situação era grave a nível da corrupção? E por isso tomaram-se medidas concretas, como a criação do Conselho de Prevenção da Corrupção, que se mantém, e cujas medidas que tomou têm tido consequência positiva. Muitas vezes não é preciso haver alarido, mas é indispensável existir uma consciência dos riscos que existem relativamente a esta matéria..Não acha constrangedor que num Estado democrático como o nosso a corrupção tenha atingido proporções tão elevadas? É algo com que temos de lidar e não ser indiferentes a esse fenómeno - que não é só português. Portugal, no que se refere à circulação monetária e ao branqueamento de capitais, tem tido medidas aplicadas e com resultados importantes. Não esqueçamos que temos entre os países europeus das maiores circulações monetárias em transferências bancárias, o que é também uma prevenção. Ao contrário de Espanha, que tem uma maior circulação de dinheiro físico, em notas e moeda. Se com o mal dos outros podemos nós bem, é indispensável perceber que ao confrontarmo-nos com um risco de corrupção é obrigatório combatê-lo com todos os meios, designadamente a prevenção e a investigação..Assistiu bem de perto à cisão social-democrata em 1979 no tempo de Sá Carneiro... ... Participei nela..Como vê o atual momento do PSD e da direita portuguesa? Como dizia Disraeli, um governo, qualquer que ele seja, terá tanto mais força quanto mais forte e credível for a oposição. Para que a democracia exista é necessário governos e oposições fortes e credíveis, além de que democracia é isso mesmo. Recordo um episódio, o de quando em 1851 o partido da Regeneração venceu e Alexandre Herculano, que tinha sido o grande mentor intelectual e teórico desse movimento que resultou num só partido a emergir, ele disse que não era com um só partido que se faz a liberdade. E foi criar o partido da oposição, o Partido Histórico. Estava a pensar à imagem e semelhança britânica, mas é muito curioso a preocupação de Herculano. Que disse "cuidado" perante a nova situação. Mais, explicou que "fui eu que inspirei e animei esta gente que agora está no poder mas digo "cuidado", não fiquem sós. É preciso termos uma oposição"..O Brexit a que assistimos é a preservação do património cultural britânico? Pelo contrário, julgo que é uma forte incompreensão daquilo que é uma exigência de hoje, o da subsidiariedade, pois precisamos de espaços supranacionais e necessitamos do Reino Unido para o futuro da Europa e da segurança no mundo..Nunca esteve no Ministério da Cultura. É adepto do 1% para o orçamento da Cultura? Como fui ministro das Finanças, nunca escondi que era fundamental o investimento na Cultura - porque é um dos setores mais reprodutivos. Diria que 1% refere-se ao ministério e à área da Cultura no orçamento, mas teremos de ser mais exigentes porque, se o 1% já é um princípio, devemos perceber que há um conjunto de medidas que precisam de investimento de forma a preservar o património - como é o caso dos particulares que detêm património também. Portanto, considero que sim, que é preciso mais investimento na Cultura porque é insuficiente o investimento direto que está no Orçamento do Estado. Que deverá corresponder à diversidade da Cultura e a criar na sociedade civil condições para que ela participe ativamente na preservação do património cultural. Mas principalmente não esquecermos de articular a Cultura com a Educação e a Ciência.."As profissões das crianças que entram agora na escola ainda nem existem".Foi ministro da Educação. Nas duas décadas que já passaram houve alguma evolução? Na Educação haverá sempre as dificuldades inerentes a estarmos a lidar com uma sociedade viva em que os desafios nunca acabam. No entanto, na Educação nunca podemos estar satisfeitos. Porquê? Porque falar de uma política no domínio educativo é sempre falar de algo que se projeta pelo menos numa geração. Se alguém disser que tomou uma medida no plano educativo e no ano seguinte já produz efeitos não está a ser verdadeiro. Primeiro, é preciso haver consenso na sociedade. Segundo, não se pode mudar em cada ciclo político. Se há domínio em que a democracia portuguesa se pode orgulhar é o da Educação. Por exemplo, em termos de escolarização abrange toda a população até aos 15/16 anos e espera-se que até ao 12.º ano em breve. O que falta neste momento? Temos de assegurar que os jovens entre os 15 e 18 anos estejam motivados na escola e na educação. Não estamos a preparar pessoas para uma profissão, mas para a cidadania. As profissões das crianças que entram agora na escola ainda nem existem, portanto temos é de formar cidadãos livres e responsáveis em vez de trabalhar apenas com o horizonte do ciclo eleitoral..Logo na segunda página do seu novo livro Património Cultural usa a expressão "choque de civilizações". O que fazer? Tem que ver com algo fundamental: o diálogo entre as culturas e a compreensão dinâmica do património cultural. Este conceito dinâmico de património cultural leva-nos a dizer que não é falar de coisas do passado, mas de uma realidade que envolve o património material: os arquivos, os centros arqueológicos e, simultaneamente, o património imaterial, as tradições, a forma de usar a língua e a nossa relação com o legado que nos deram gerações. Temos de falar também da relação com a natureza cada vez mais importante, até porque Lisboa é este ano Capital Verde da Europa, e esta não pode ser uma questão de moda apenas. Também não podemos esquecer a modernidade, tal como José Mattoso já se preocupava quando foi diretor da Torre do Tombo em não preservar apenas aquele património antigo mas a preparação para as novas tecnologias. É preciso perceber que o património vive de uma relação com a criação contemporânea..No entanto, a criação contemporânea tem dificuldades em lidar com o passado, como se viu com a questão dos Descobrimentos enquanto nosso património cultural, que ainda está sob fogo. Como se ultrapassa isto? É indispensável termos uma relação com a história que recuse uma tentação do anacronismo, ou seja, julgarmos o que ocorreu há séculos com os olhos de hoje, esquecendo que cada época deve ser lida à luz da sua própria identidade. Não significa que evitemos uma perspetiva crítica e até recusando algum politicamente correto que o tempo irá superar muito rapidamente..Não houve perspetiva crítica nesta questão. Não posso entrar nessa polémica sobre haver ou não museu dos Descobrimentos, considero sim que se deve dar atenção especial ao património na sua complexidade e temos de lidar com todos esses elementos..Um património que refere no livro é a nossa língua. Está mesmo a ser preservada? A língua portuguesa é de várias culturas e no final do século XXI terá mais de 400 milhões de falantes. A verdade é que o português é a língua mais falada no hemisfério sul. O que fazer relativamente à língua? Antes de mais, cuidar dela no sentido de se falar corretamente em vez de se valorizar um problema ortográfico. A língua portuguesa, para ser devidamente protegida, tem de ser bem falada pelos cidadãos e isso passa em muito pela leitura dos grandes autores..Cita o Nobel Orhan Pamuk sobre a invasão turística e das tradições da sua Istambul. Essa invasão, que se repete em Portugal, pode pôr em causa o nosso património cultural? Não, o que é fundamental é haver uma boa relação entre o turismo e a cultura. O caso mais evidente e até perturbador é o de Veneza. Trato disso num dos últimos capítulos do livro, ao referir medidas concretas para que a mobilidade natural das pessoas não destrua o essencial do património. Temos de perceber que a mobilidade e o turismo são realidades contemporâneas - não podem tornar-se conflituais. Não podemos deixar de ter estratégias que permitam valorizar a cultura na relação com o turismo, designadamente contrariando algo que é um risco na sociedade contemporânea: a uniformização das cidades em vez de preservar a cultura como um fator de diferenciação..Ao falar de património não podemos esquecer a destruição urbanística que se observa em Lisboa, por exemplo, no eixo das avenidas da República até à da Liberdade? Foi um crime o que fizeram em Lisboa, mas também noutras cidades, porque esse eixo foi destruído a partir de uma lógica negocista. Falar de urbanismo é falar do risco de prevalecer o ganho fácil e do negócio, daí que quando falo do património ponha o elemento da criação contemporânea. Que deve ter uma relação com o urbanismo que permita que as cidades se desenvolvam respeitando a diversidade..Até que ponto os governos têm olhado para o lado económico da cultura? É preciso pensar que a cultura não é um luxo ou uma cereja no cimo do bolo, a cultura deve ser o primeiro capítulo em tudo. Muitas vezes observamos os programas políticos dos partidos e não é assim que surge, são antes uns parágrafos lá para o fim. O património é algo de extraordinariamente importante mas sempre desvalorizado, daí precisarmos dos jovens. Por isso valorizo no meu livro o Ano Europeu do Património Cultural de 2018, em que Portugal foi dos países que mais iniciativas tiveram e isso deveu-se ao envolvimento das escolas e das bibliotecas. As realidades cultural, educativa e científica são os elementos cruciais do desenvolvimento. Uma civilização afirma-se através da valorização da cultura e da ciência..Património Cultural - Realidade Viva.Guilherme d"Oliveira Martins.Editora Fundação Francisco Manuel dos Santos.Apresentação dia 30, pelas 18.00, na Galeria Fernando Pessoa em Lisboa