Hani liga e desliga o telemóvel, mostra a foto de Nowar (a mulher com quem se casou, por procuração) e suspira. São nove meses e 11 dias à espera de poder chamá-la de sua mulher, de a ver desembarcar num avião, e levá-la para casa, na aldeia de São Mamede, no concelho da Batalha. São oito meses à espera de que o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) lhe responda ao pedido de reagrupamento familiar, ao abrigo da legislação em vigor, mas que demora a pôr em prática. Mas não são caso único. Há vários casais obrigados a adiar a vida a dois pelos atrasos de meses nos processos de autorização de residência ou reagrupamento familiar. As suas histórias são o reflexo do funcionamento da instituição que, em quatro anos, perdeu cerca de cem funcionários.."É muito difícil. Emocionalmente é muito difícil." Já o seria para um cidadão comum, estrangeiro, titular de Autorização de Residência, Cartão Azul UE ou Estatuto de Residente de Longa Duração. E sê-lo-á mais ainda para um refugiado iraquiano, 32 anos, que atravessou com a família todos os perigos por terra e por mar até encontrar um porto seguro em solo português..A família de Hani Jamal Mohyiddin chegou à Batalha a 4 de abril de 2016 e foi instalada na antiga escola primária de São Mamede, adaptada para acolher todos: Takia já viúva (tem agora 80 anos) veio com a filha e o genro, pais de Hani e da irmã mais nova, Tahani (esta já casada e mãe de dois meninos, a que se juntou um terceiro, já nascido em Portugal), e tornaram-se conhecidos do país quando foram recebidos pelo Papa Francisco, durante as celebrações do centenário das aparições de Fátima..Na verdade, o líder da Igreja Católica já os conhecia, pois em 2016 a família participara na cerimónia de lava-pés, durante a Semana Santa, num campo de refugiados perto de Roma. Apesar de muçulmanos, estes iraquianos de origem palestiniana têm grande devoção pela Senhora de Fátima. Hani agarra-se a toda a fé para não desanimar..Já conhecia Nowar, a noiva, quando deixou Bagdad, mas só no início de maio de 2018 acabaria por casar-se, por procuração. A partir daqui, desenrola-se todo um calvário entre os serviços de Leiria do SEF e o dia em que, finalmente, espera levar a noiva para casa..Nos últimos meses intensificou-se a angústia. Hani é um rapaz simpático, que percebe razoavelmente a língua portuguesa, mas que revela ainda muitas dificuldades para a falar. Trabalha numa empresa de fabrico de louça - tal como o pai e o cunhado - situada na aldeia onde mora. Mas um acidente fê-lo estar algum tempo de baixa, deixando-lhe margem para deprimir..Acresce que os pais da noiva têm vindo a pressioná-lo para saber quando é que, afinal, a filha se pode juntar a ele. "Não é uma situação fácil", reconhece Liliana Ribeiro, a técnica de serviço social do município da Batalha que tantas vezes faz a ponte entre esta família de oito pessoas e os serviços públicos de saúde e educação, para além do resto. Hani é tido como o mais instável, emocionalmente, também à conta de ainda não ter uma família. Quer ter filhos. "Uns três ou quatro", conta ao DN, poucos dias depois de ter sido novamente recebido pelo SEF em Leiria, mas sem grandes notícias..O primeiro pedido de atendimento data de julho de 2018, quando os serviços marcaram uma hora para final de outubro. Foram os primeiros três meses de espera. Só que a delegação de Leiria nunca tinha efetuado nenhum pedido de reagrupamento familiar e esbarrou nas dificuldades do sistema informático. "Ficaram de falar com Lisboa, para ver como era, e de dizer alguma coisa", conta Hani, que finalmente, quatro meses depois, lá foi atendido por um inspetor, na terça-feira, 12 de fevereiro. Só que esse é só mais um degrau. Agora falta que o SEF analise, finalmente, todo o processo que consta do pedido, sujeito depois a decisão.."São mais uns meses, se calhar", desabafa Hani, que aguarda por uma decisão favorável. O iraquiano acredita que cumpre todos os requisitos exigidos pelo SEF, até porque o estatuto de refugiado o dispensa de alguns deles, como o comprovativo de que dispõe de alojamento e de meios de subsistência suficientes para suprir as necessidades da sua família, conforme previsto na Portaria n.º 1563/2007, de 11/12. Ainda assim, até esses cumprirá..Na reunião com os serviços do SEF, Hani Jamal ficou a saber que também não será simples gerir o processo do lado de lá, a partir do Iraque. É que Portugal não tem representação diplomática no país, pelo que a autorização só é passível de ocorrer na Embaixada de Portugal em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos, ou em Istambul, na Turquia. Hani acredita que será ali que vai encontrar finalmente a mulher com quem se casou, fazendo fé no exemplo recente de um amigo que mora em Lisboa, e que terá passado por um processo idêntico. Ou seja, está pronto a viajar até lá para trazer com ele Nowar, 34 anos, professora de língua árabe. "Nesse dia vamos fazer uma grande festa", promete..À hora em que o DN entrevistava Hani Jamal, o presidente da Câmara da Batalha, Paulo Batista Santos, reunia-se em Leiria com o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, no âmbito de uma visita à Comunidade Intermunicipal da Região de Leiria. Foi o momento ideal para o autarca contar toda a saga do refugiado iraquiano ao governante, que se fazia acompanhar da secretária de Estado Isabel Oneto, que tutela o SEF. "Contei-lhes toda esta situação inédita, infelizmente não tão pouco vulgar no nosso país, que nos faz perder demasiado tempo em papéis, burocracias e formalidades", disse ao DN o presidente da Batalha, que foi mais longe: "Convidei a senhora secretária de Estado para ser madrinha deste casamento, oferecendo-me eu próprio para ser padrinho."."Em 2017 foram registados globalmente 79 pedidos de autorização de residência extraordinária a membros da família de refugiados ou beneficiários de proteção internacional. Em 2018, o número daquelas situações foi de 99". A resposta do SEF ao DN demorou vários dias, e não se refere especificamente ao caso de Hani. No entanto, o caso do iraquiano será entre os 19 pedidos de autorização de residência extraordinária a membros da família de refugiados ou beneficiários de proteção internacional, "cuja decisão é proferida, em média, em 30 dias, verificando-se, por vezes, grandes dificuldades na obtenção dos documentos necessários à instrução do pedido", responde o gabinete de imprensa do SEF, acrescentando que "de acordo com o artigo 105º da Lei de Estrangeiros, este prazo pode ser prorrogado por três meses". O DN sabe que, entretanto, os serviços de Leiria já contactaram o refugiado, remetendo o atraso e o processo para os serviços centrais, em Lisboa..SEF, um labirinto.A uns quilómetros de distância, em Lisboa, a história repetia-se, embora com contornos diferentes. Luís e Olivia (nomes fictícios), ele português e ela canadiana, casaram-se em abril de 2018 em Portugal. Era o início da vida a dois, depois de vários anos como namorados à distância, não fosse a burocracia que uma vida entre duas nacionalidades diferentes implica..Quase um ano após o pedido de autorização de residência ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), Olivia continuou sem permissão para viver no país do marido a full-time . E, à semelhança de Hani e Nowar, o seu caso é apenas a ponta do icebergue dos problemas da instituição..Já consciente dos passos legais, logo após o casamento, o casal ligou para o SEF para agendar a primeira reunião, que daria início ao processo de autorização de residência - para o direito à cidadania portuguesa, Olivia ainda terá de esperar até três anos após o casamento oficial. A resposta chega e o primeiro encontro com a instituição, que implica a entrega de todos os documentos necessários ao processo, fica agendado para novembro de 2018, sete meses após o casamento. Já a entrega da autorização, essa, pode chegar apenas três meses após esta primeira reunião. Contudo, o casal conseguiu que a mesma chegasse antes deste período: Olivia já mora em Portugal..Entretanto, foram obrigados a viver a um oceano de distância, pagando duas rendas, uma em Portugal e outra no Canadá, e viajando quilómetros todos os meses para se verem..Na altura, decidiram expor o problema ao SEF, que propõe como solução que Olivia possa ficar em Portugal até à data da reunião, desde que leve sempre consigo um papel que confirme o agendamento da mesma. Mas a solução não era viável para Olivia que, ao não estar legalmente autorizada em Portugal, teria de abdicar de privilégios de uma residente oficial como a possibilidade de "celebrar um contrato de trabalho com a filial portuguesa da empresa canadiana dela (muito rigorosa com a burocracia), pedir um crédito à habitação (embora haja um crédito para estrangeiros não residentes, este é muito mais elevado), tirar a carta de condução e usufruir de alguns serviços de saúde", explica Luís. Além disso, poderia trazer problemas sempre que Olivia tentasse sair e entrar do país, por motivos profissionais ou familiares..Em entrevista ao DN, a presidente do Sindicato de funcionários do SEF (SinSEF), Manuela Niza, reconhece que casos como o de Luís e Olivia são comuns, mas garante que esta é apenas "uma gota no oceano".."Quanto ao processo em si, é outro aspeto confuso e labiríntico", contou Luís..Uma mensagem na caixa de e-mail em agosto de 2018 informou-os de que o processo em curso é legalmente designado Cartão de Residência para Familiares de Cidadãos da União Europeia. Mas assim que o casal se dirige ao site da instituição para confirmar os documentos necessários, verifica que alguns daqueles previamente exigidos pelo SEF não constam na lista online.."O que dá a entender é que os funcionários ou estão mal informados ou estão a confundir processos", conta o português que, para esclarecer a situação, tenta imediatamente ligar para a linha de atendimento. Uma chamada, repetida ao longo de meses, que nunca foi atendida. Por isso, o casal volta a tentar por e-mail, mas recebe uma mensagem formatada que remetia para o site, o mesmo ao qual já tinha acedido. Tentar o atendimento presencial também não era solução: para quem não pretende tratar de renovações ou prorrogações, este tem de ser marcado previamente por chamada, através da mesma linha que nunca lhes foi atendida. Luís e Olivia corriam o risco de aparecer na reunião que lhes foi agendada com documentos errados ou em falta, o que poderia adiar ainda mais o processo..Então, decidem recorrer a uma advogada e, através dela, escreveram uma queixa à Provedoria de Justiça. "Todas as dúvidas que tivemos relativamente aos documentos necessários foram esclarecidas por uma advogada a quem recorremos. Ou seja, tivemos de pagar dinheiro a uma advogada para nos ser prestada a informação que o Estado tem o dever de nos fornecer e que não fornece", lamenta ainda Luís..Em julho, a Provedoria responde e dá-lhes a conhecer que tem em mãos inúmeras outras queixas que criticam o atendimento do SEF - em 2018, ao todo, foram 371. O número quase triplicou em três anos, sendo em 2016 registadas 140 e, no ano seguinte, 185 queixas.. Infogram.Como solução, sugerem a transferência do processo para outras delegações, sendo as de Lisboa e Porto as mais sobrecarregadas. Mas, por esta altura, já seria demasiado tarde para o casal. Olivia já tinha organizado a sua vida profissional no Canadá para os próximos meses e a sua empresa não lhe dava espaço de manobra para a alterar.."Toda esta situação nos causa imensa tristeza e frustração, porque somos casados, mas estamos impedidos de viver juntos pela incompetência do Estado", desabafa o português. "Arriscaria mesmo dizer que o SEF, pela sua incompetência, está a promover a imigração ilegal, a cunha e a corrupção", remata..A presidente do SinSEF acredita que a descentralização do atendimento foi, "teoricamente, uma bela ideia", mas "é como ter um cancro e tentar resolver com uma aspirina" - isto é, pode ajudar por uns tempos, mas não cura. "A delegação do Pico, que tem dois funcionários e que, de facto, não tinha grande serviço, neste momento está a abarrotar de trabalho e continua com os dois funcionários", lamentou. Além disso, acredita que esta solução só serve para os "imigrantes com poder de compra", porque não é viável para aqueles que "não têm nem tempo nem dinheiro para correr o país"..Ainda segundo Manuela Niza, neste momento, os atrasos rondam os seis a nove meses desde o primeiro contacto à primeira reunião, independentemente do tipo de processo. "Há muitos casos de casais assim, mas temos também casos de agrupamentos familiares que não conseguem reagrupar-se. O último de que tenho conhecimento é uma prorrogação de residência - um processo por regra fácil - que tem marcação apenas para setembro deste ano", disse..A ponta do icebergue.Os atrasos no SEF não são novidade e já foram mote para várias greves por parte dos funcionários, ao longo dos anos, que dizem estar sobrecarregados e sem margem para responder ao número de pedidos..Numa nota enviada ao DN, a instituição reconhece que "a melhoria do atendimento ao público e da celeridade na instrução processual são matérias prioritárias". Garante que têm sido tomadas medidas nesse sentido, nomeadamente através do alargamento do horário e da descentralização do atendimento. Um "reforço de meios humanos nesta área" e um "aumento do número de vagas para atendimento a nível nacional" terão resultado em mais 149% das chamadas telefónicas atendidas - de 14 990 para 37 303 - e 96% dos agendamentos - passando de 27 518 para 53 830. Comunicaram ainda o lançamento de um concurso para 116 novos funcionários para a carreira não policial, de um total de 1348 que já compõem os recursos humanos..Os que existem atualmente continuam a ser poucos para o grande número de processos que chegam à instituição todos os dias. De acordo com o portal de estatísticas do SEF, entre 1980 e 2017, o número de títulos emitidos em território nacional foi de mais de 360 mil, tendo no primeiro ano sido emitidos 50 750 e no último 416 682. Apesar de os números relativamente a 2018 ainda não serem conhecidos, Manuela Niza, do sindicato, acredita terem aumentado..Os funcionários, contudo, há anos que são insuficientes para o volume de trabalho. "E o problema não é que este número tenha descido, o problema é que nunca subiu. O serviço está subdimensionado para aquilo que se tem de fazer", explica.."Não só temos vindo a alertar para a falta de pessoal, como para a incapacidade que o SEF tem para fixar as pessoas", sublinha a sindicalista. "A falta de funcionários na função pública não é novidade, a diferença é o que os outros organismos fazem para colmatar esta situação: tentam fixá-los", quer através de vantagens salariais, "o que nem sempre é fácil", quer através da valorização profissional, "com possibilidade de subida na carreira". "Há aqui uma tentativa de gestão humanista e de reconhecimento do papel do funcionário, de modo a que não haja a tentação de ir para outro sítio qualquer", o que não acontece no SEF, reporta..Uma centena de demissões.O cenário de instabilidade na instituição já levou cerca de 100 funcionários, num universo de quase 500 na área documental (que dá seguimento aos processos), a abandonarem as suas funções nos últimos quatro anos. "A maioria tinha mais de dez anos de experiência no SEF e os que entretanto entraram já saíram também, alguns tendo sido substituídos e outros não", conta Manuela Niza..De acordo com a presidente do sindicato, atualmente, a instituição debate-se com sublinhadas discrepâncias a nível de ordenados e regalias entre funcionários que exercem exatamente a mesma função. "Temos um serviço a duas velocidades, em que os cargos de chefia estão todos blindados e alguns sentam-se ao lado de colegas com carreiras completamente distintas, a fazer o mesmo e a ganhar muito mais - e eles têm que picar o ponto, mas a outra pessoa não; e essa pessoa tem subsídio de risco e passe social, mas eles não", explica. Tal resulta nas demissões ou transferências para outros organismos, dentro ou fora do SEF..Lá fora, o futuro não parece tão incerto. Manuela Niza conta que "os quadros que saem do SEF são recebidos de braços abertos noutros organismos, até porque os técnicos têm valências abrangentes, da área judicial à económica, que é raro na função pública". Quando seguem para "outros organismos, podem efetivamente chegar a chefes de secção e diretores de departamento, porque há outras condições e, mesmo que não a este nível, têm outra recompensa em termos humanos que o SEF não dá"..A notícia da abertura do concurso para 116 novos elementos foi recebida com ceticismo pelo sindicato. Na última reunião com a direção, soube que a intenção da tutela era oferecer a estas pessoas um contrato de apenas um ano, para colmatar apenas temporariamente as falhas da instituição. Mas o sindicato recusou a proposta e pressionou a direção para criar contratos sem termo, que concordou com o pedido..Há cerca de três anos, segundo conta Manuela Niza, o SinSEF fez chegar ao Ministério das Finanças um pedido de reconhecimento da carreira não policial do SEF, mesmo prescindindo de alterações salariais nos próximos tempos. A resposta foi negativa. "Disseram-nos que iria abrir precedentes", disse, sublinhando que, na verdade, o assunto se resolve com contas simples. "Basta irmos ver os números dos vistos gold e perceber quantos estamos a perder para outros países, por não conseguirmos resposta atempada. De acordo com as contas do sindicato, a reativação desta carreira, com a tabela salarial, não chega a três milhões de euros por ano. Se eu tiver gente suficiente e motivada a trabalhar e aumentar seis vistos gold por ano, já consigo esse valor", explica..No entanto, reconhece que "não é um sindicato sozinho que consegue fazer valer esta visão, o próprio organismo tem que a fazer valer". O que não acontece, pois "neste momento e infelizmente à estrutura do SEF não interessa esta valorização". "Estamos a remar em sentidos contrários", remata.