A caixinha do rapé
"Tia Anica, tia Anica, tia Anica de Loulé
a quem deixaria ela a caixinha do rapé?"
(Canção popular)
Um dia, quando estava em posto no Brasil, visitei uma escola onde tinha sido organizada uma exposição sobre canções infantis de todo o mundo. De todo o mundo, menos de Portugal. Estranhei essa ausência. Mas no meio das canções brasileiras vi aparecer, com destaque, a nossa Tia Anica de Loulé!
Quando pedi contas aos organizadores da exposição, eles responderam-me, com perfeita candura, que a Tia Anica era uma canção bem brasileira, tradicional e cantada em pregressas infâncias! Loulé ficara-lhes bem para trás de qualquer memória, do mesmo modo daquele que, cantava Noel Rosa, "com voz macia é brasileiro/ já passou de português"...
Esta história fez-me pensar em como uma língua comum nos vem oferecer um amálgama das memórias e das invenções das diferentes culturas que a usam, mistura que fundamenta e dá raiz a uma partilha de imaginários a ultrapassar fronteiras e culturas diversas, enriquecendo um património que se torna de todos.
O grande reinventor da língua literária portuguesa que foi Guimarães Rosa trouxe a fala do sertão junto das falas mais antigas da nossa língua para fazer ecoar a sua epopeia cósmica. A pobre tia Anica, que não sabia a quem deixar a caixinha do rapé, veio trazer numa canção a cidade de Loulé, terra do meu avô, para a imaginação das crianças do Brasil.
Mas o nosso imaginário de portugueses europeus não tem ele também vindo a ser enriquecido, século após século, pelos imaginários dos povos africanos, pelos mitos dos índios brasileiros, pelos deslumbramentos asiáticos? Uma língua traz consigo muitos sonhos. E todos os povos que a partilham e levam consigo trazem o seu quinhão de sonho e de imaginário para o poder dessa língua.
O fantástico em Mia Couto vem de mitos por certo diferentes dos que habitam o grande sertão de Guimarães Rosa. Mas a revolução da linguagem literária do português que fizeram um Luandino Vieira e um Mia Couto criarem novas expressões e abrirem novos mundos para a nossa língua e para as nossas literaturas deve à revolução do grande prosador brasileiro, no seu trato com o português, a abertura dos caminhos que eles souberam explorar. E, por seu lado, Guimarães Rosa prestou pública homenagem a um percurso fundador tão diverso como o do português Aquilino Ribeiro. Malhas que a língua tece...
O poeta brasileiro Alberto Pucheu disse que "a poesia serve/ a um outro, que a poesia é o lugar de um outro". Aquilo que diversas culturas trazem a uma língua comum é exatamente essa capacidade de se "outrar", como diria Pessoa, essa possibilidade de diferentes mundos caberem na mesma palavra e alargarem ao infinito os caminhos da linguagem e da imaginação. Aquilo que nos traz de enriquecedor ver a nossa língua a partir de uma outra é, de outro modo, análogo ao que nos proporciona ver a mesma língua através das diferentes culturas que ela exprime. A tia Anica já não é de Loulé, cidade minha do Algarve, é toda da imaginação de quem a vier cantar. O personagem da canção de Noel Rosa "já passou de português", porque as suas memórias e os seus sonhos já foram apropriados pela sua cidade do Rio de Janeiro. Porque, como escreveu Mutimati Barnabé João, aliás António Quadros, "na cabeça de um homem há muitas línguas a falar diferente".
Caetano Veloso canta "gosto do Pessoa na pessoa/ da rosa no Rosa". De Noel Rosa a Guimarães Rosa, a língua portuguesa ganhou novo fôlego e novos horizontes de invenção, como os alcançou nos poetas cabo-verdianos da Claridade em Luandino Vieira ou em Ondjaki, em Mia Couto ou em José Craveirinha e em tantos outros que trazem à expressão literária do português a riqueza de tantas memórias e de tantos sonhos, de tantas falas e de tantas canções do limiar da infância. A quem deixou afinal a língua portuguesa a sua caixinha de rapé?
Escritor e diplomata