Como surge este convite da Rede Cultura 2027 para presidir ao congresso contínuo dos próximos meses? Fui convidado pelos amigos João Bonifácio Serra e Paulo Lameiro..Mas tinha alguma ligação a Leiria? Eu estudei em Leiria, no meu 7.º ano, no Liceu Rodrigues Lobo. Os meus pais moravam lá, o meu pai era juiz, e esteve lá um período de tempo limitado. É o ano do final da adolescência, que é importante, e de que nos lembramos sempre. Entretanto o João Bonifácio Serra veio desafiar-me para este projeto e tenho gostado muito da maneira como temos trabalhado, face ao desafio desta pandemia e de toda a situação em que caímos..Qual é a tónica desse congresso? A persistência, por um lado, e a capacidade de inventar um novo modelo e novas formas de contacto entre nós e com o público. É abrir a janela que nos separa do público e fortalecer a rede que nos liga uns aos outros. Trata-se de uma rede de 27 autarquias que se propõem trabalhar juntas na criação e na divulgação cultural, com vista à candidatura de Leiria a Capital Europeia da Cultura..Ligando todas essas 27 vilas e cidades entre si? A ideia é criar uma rede de circulação cultural entre todas essas cidades, que tende a ir do local para o global. Porque as redes sociais hoje permitem facilmente dar esse salto. E essa aposta, que está a ser feita, é extremamente interessante. Além disso mobiliza a cultura no sentido tradicional - o património, a criação cultural e o conhecimento. Por fim, criar aqui um bloco, uma consolidação com o valor da sustentabilidade, querendo também apoiar os criadores culturais. Sobretudo neste momento em que a precariedade é como uma ferida aberta, exposta.E que tanto está a fazer-se sentir na cultura, na vida e no trabalho dos agentes culturais... É bom que isso seja refletido, pensado, e haja medidas para resolver esse problema..Tem acompanhado as manifestações por parte dos agentes culturais? Sim, sim, a par e passo..E o que é que lhe parece que pode ser feito para os apoiar? Eu penso que o assunto está a ser estudado. Nós já temos um bom exemplo na França, nos Intermittents du Spectacle, a lei que foi feita relativamente aos intermitentes do espetáculo. O que está a ser feito é - como se diz agora - um mapeamento dos problemas, que nos levará a uma descrição mais rigorosa desta realidade que são os trabalhadores da Cultura, do precariado como se lhe chama já. Para além dos outros trabalhadores precários que a nossa sociedade tem, estes especificamente são fundamentais para termos isto a que chamamos a Cultura, precisamente. E que é a nossa própria respiração. Esse é um problema extremamente complexo. Não há soluções nem decisões fáceis nesta matéria. Mas penso que, forçosamente, tem de haver uma maior atenção ao problema. Normalmente nós batemo-nos pelo fortalecimento do Serviço Nacional de Saúde - e ele foi realmente reforçado nos últimos anos - mas não há dúvida de que esta situação de pandemia veio levantar o alarme. Ou melhor, veio criar um alarme social relativo à necessidade de investirmos mais na saúde..E agora é tempo de olhar para as outras áreas, é isso? Eu espero que estes problemas que estão a vir a nu, que estão a ser expostos à luz do dia, do precariado, do trabalho precário na cultura, possam também ser um desafio para quem governa, quem administra, quem patrocina - todos os agentes, no fundo, porque o governo não faz tudo - as autarquias têm um papel importante, as empresas, assim como a própria sociedade civil. Se todos pensarmos que todos somos responsáveis por continuarmos a cultura (como diz o manifesto) eu penso que isso pode ser um alerta forte para enfrentar esta situação social e cultural..Nesse contexto, o projeto da Rede Cultura 2027 pode ser também um catalisador? Com certeza que sim. Até na medida em que está a apoiar todas as atividades, com forte impulso das autarquias, e na medida em que está a reforçar essas capacidades de criação cultural, a nível local. E pode ajudar à subsistência dos que façam parte dessa rede, na criação de redes sustentáveis que permitirão, também, mudar a maneira como nós olhamos para a cultura. Porque o mundo muda, as coisas mudam, muitas vezes o que não muda são as injustiças - e é preciso fazer-lhes frente, enfrentá-las e derrotá-las..Na abertura do congresso - a que preside - disse que é preciso redirecionar a arte, a cultura para as comunidades. Em que medida? Sempre houve criação cultural difundida pelo país. Mas o que se pretende é reforçar esses polos mais locais, dar-lhes mais força. Robustecer a sua capacidade através de uma interação permanente nestas redes, e assim redirecionarmos para o local, que hoje pode estar voltado para o global, e face à nova realidade do mundo, penso que esse é um caminho extremamente interessante e necessário de percorrer, para alcançarmos alguma coisa de novo..Sabendo que existem outras cidades portuguesas que também estão em processo de candidatura, acredita que Leiria é a que reúne condições para ser Capital Europeia da Cultura? O critério da Capital Europeia da Cultura é mais o que faz, o que apresenta, o projeto que tem, do que propriamente a sua riqueza passada. Leiria não tem universidade, mas tem certos monumentos, tem o Mosteiro de Alcobaça, tem o Mosteiro da Batalha, o Convento de Cristo em Tomar. E tem um património cultural também extraordinário, e temos de lutar para que não haja uma degradação desses recursos naturais. Por outro lado, desde há muitos anos que Leiria está europeizada; encontra-se com a economia europeia desde os investimentos de Stephens na Marinha Grande, passando pelas fábricas de moldes, nos anos 70 do século passado, e atualmente a produção, a nível tecnológico, que está bastante na vanguarda. É uma região com um forte passado e um grande futuro apostado justamente nas indústrias de ponta..E isso fá-lo acreditar que está em condições de ser essa capital europeia? Acredito perfeitamente. Mais do que o pedigree vale aqui a ação e aquilo que se for capaz de fazer. Mas devo dizer-lhe que tem havido diálogo, sem complexos, entre as várias entidades das outras cidades.