Mamadou Ba, 45 anos, chegou a Portugal em 1997. Nascido no Senegal, tem nacionalidade portuguesa. "Os meus filhos são portugueses", diz ao DN. As suas críticas à atuação da polícia no bairro da Jamaica, Seixal, são violentas, classificando-a como "bosta da bófia". Como é violenta a intervenção das forças de segurança nestes bairros, no que constitui, segundo o dirigente do SOS Racismo, um "padrão". Em entrevista argumenta que há um racismo institucionalizado e explica também porque o irritou a associação feita ao Bloco de Esquerda - em que trabalha como assessor parlamentar..Falou da PSP como "a bosta da bófia". A polícia é bosta? Chamo bosta à atuação da polícia. É vernáculo sim, que tem que ver com a caracterização de uma situação. Bater em alguém por ser negro ou cigano para mim é uma bosta. Eu recebi vários tipos de insultos e ameaças por ter escrito isso. Mas sim, para mim, bater em alguém porque é negro ou cigano é uma bosta. E matar alguém porque é negro ou cigano é pior do que uma bosta..Sobre o caso concreto no bairro da Jamaica e o que se passou depois, na segunda-feira no centro de Lisboa e nesta terça-feira em Odivelas e em Setúbal, até que ponto há um mal-estar nestes bairros problemáticos? O mal-estar dura há bastante tempo. Podemos dar-nos por muito satisfeitos por não termos tido até agora - e ainda bem, felizmente, - nenhum tipo de desacato comparável aos que conhecemos noutros países europeus, como em Inglaterra nas décadas de 1980-90, com grandes distúrbios urbanos relacionados com sentimentos de insegurança e revolta contra a violência policial e de Estado, num sentido mais lato, ou em França, mais ou menos no mesmo contexto e com o mesmo desenho urbano. Não temos tido isso por cá, felizmente, e espero que não tenhamos. Mas para não termos isto cá há coisas que têm de acontecer: a atuação da polícia nos bairros tem de mudar radicalmente. Se a polícia continuar a ter o mesmo padrão de intervenção que tem hoje nos bairros, está a semear um rastilho..Essa intervenção da polícia é sempre má? É quase sempre má, é quase sempre má. O que é lamentável e é pena. Quando se criou um mecanismo como a Escola Segura, de polícia de proximidade, a ideia que estava por trás, supostamente, era a de que havendo este património de tensão, de conflito e de violência da polícia nas comunidades se começasse a criar um mecanismo que acabasse com essa circunstância. Isso não aconteceu. Os programas de polícia de proximidade, nomeadamente o Escola Segura, nestes territórios fracassaram quase todos..E fracassaram pelo lado da polícia ou também no lado das comunidades há dificuldades, há fracassos? Há dificuldades várias que têm que ver com as condições sociais em que se encontram essas comunidades. Os estudos que temos sobre a questão escolar nas comunidades indicam grandes dificuldades estruturais, que têm que ver com o formato que se quer imprimir para construir um projeto escolar para esses jovens e crianças numa sociedade ainda bastante racista - é preciso assumi-lo. Quando as forças de segurança vão aos bairros e o resultado da sua ida, da sua intervenção, corre mal, acho que um dos problemas que leva a que tenha este tipo de impacto que estamos a ter é porque há a montante um problema que ainda não está resolvido: a sociedade não olha para o espelho, Portugal é um país muito racista, mas o racismo é um assunto tabu, não se fala. É preferível varrer para baixo do tapete, fingir que não se passa nada. Nós ouvimos muitas vezes uma acusação às organizações antirracistas de que estão a acordar fantasmas e que falar de racismo é fazer que ele exista. Se continuamos neste autismo em relação ao racismo, a relação que as instituições, incluindo as da polícia, vão ter com pessoas racializadas vai ser sempre difícil e conflituosa. Para já, pelo lado das comunidades não tem havido motivo para confiarem na bondade, na capacidade e imparcialidade da intervenção das forças de segurança nos bairros. Porque na maior parte das vezes essa intervenção resulta sempre num abuso de poder. Isso torna bastante mais difícil essa relação, torná-la mais aceitável é cada vez mais complicado. A polícia não deve olhar para as reações como sendo um ataque à instituição da Polícia de Segurança Pública em si, é a cultura que se criou dentro da PSP que é preciso olhar e atacar. E essa cultura existe..Essa cultura traduz-se em... É uma cultura de violência, uma cultura de abuso, que está muito albergada em preconceito racista. [Na segunda-feira] denunciei dois perfis no Facebook. Um deles, que é de um agente que está ligado aos Comandos (não sei se da GNR ou dos militares), tinha uma transcrição da comunicação interna do comando distrital [da PSP] de Setúbal, em que este manifestava solidariedade e apoio aos agentes que tinham feito a intervenção no bairro da Jamaica. Nesse perfil havia vários comentários feitos por agentes (que se identificavam como agentes) que eram do racismo mais ordinário que podemos ver. Não podemos ignorar que isso existe..O que se pode fazer então para alterar o comportamento das forças de segurança nesses bairros? A primeira coisa é que tem que se aplicar a lei. A polícia não pode estar acima da lei e quando viola a lei tem de responder em consequência. O que tem acontecido é que quase todos os casos que resultaram de violência policial, e alguns até com consequências mais dramáticas, com mortes, quase sempre resultaram em ilibação dos agentes. Esse sentimento de que há uma impunidade não pode continuar..É preciso criar uma cultura de que nenhum agente de segurança pública pode ser fator de insegurança. Se o for, vai merecer a sanção exigida. E tem de se fazer uma alteração mais substancial do quadro jurídico atual. A nossa ordem jurídica é essencialmente de contraordenação, é muito pouco dissuasiva. Enquanto continuarmos a achar que o racismo é uma questão moral entre uma pessoa e outra, que não tem nenhuma base estrutural, de relações que carregam outros contextos históricos e que estão enquistados na cultura na forma de agir, não vamos combater o racismo. Isto não é uma loucura radical do SOS Racismo, até porque há, felizmente, relatórios e recomendações do Conselho da Europa que dizem que era bom que o quadro jurídico mudasse e houvesse uma maior tendência para criminalizar o racismo. Para o fazer temos de tipificar os crimes de racismo e esse trabalho não está feito. Temos uma lei muito avançada do ponto de vista da contraordenação, mas a sua tradução prática não serve para grande coisa. Não é eficaz, não é persuasiva e tem várias escapatórias para as pessoas poderem sair completamente ilibadas de qualquer acusação. Isto não pode continuar. E há as políticas públicas nesses bairros, que faz que tenhamos de olhar para as questões da habitação, que são muito importantes. Quem não tem teto não tem forma mínima de garantir que pode fazer um trajeto social de inclusão, de capacidade, de poder ganhar um lugar na sociedade, por isso, é preciso responder a esses problemas da habitação..O problema da educação é muito mais vasto, não é só o acesso à educação. É preciso ver e reformular os próprios conteúdos curriculares. Para que as crianças que são de origem estrangeira, africana ou cigana possam identificar-se com a narrativa nacional, que não os ponha de fora da narrativa nacional quando vão à escola, possam identificar-se com isso. E que o corpo docente também esteja preparado para isto, para termos um conteúdo curricular que possa tornar-se mais confortável, tanto para os formadores como para os formandos. É uma empreitada grande, não se fará com um decreto. Mas se houver vontade política podemos começar....Falta vontade política? Tem faltado até agora. Porque há muitos anos que o movimento anda a reclamar, por exemplo, a reforma dos conteúdos curriculares..Um governo com o apoio da esquerda parlamentar não teria ou não terá essa preocupação mais presente? Não digo que não tem, mas não basta ter a preocupação, tem de a pôr em prática..O racismo está institucionalizado? Seja nas forças de segurança seja nas escolas? Nos serviços públicos. Acho que muitas vezes há um erro quando se faz uma análise do racismo: se ele existe na sociedade, ele terá o seu reflexo nas instituições. Havendo racismo na sociedade, estando as pessoas inseridas com responsabilidade nas instituições, elas transportam os seus preconceitos rácicos para dentro das instituições. E nós notámo-lo em vários casos, no que toca por exemplo a crianças ciganas, como a comunidade escolar reage à sua presença; ou, em zonas urbanas e periurbanas com maior concentração de comunidade negra, vemos como a comunidade escolar reage à presença; e não quer dizer que haja aqui um mecanismo propositado, que as pessoas são automaticamente racistas, o que há é todo um substrato, um trajeto racista, que está na forma de ver e lidar com essas questões, que depois passam nas ações quotidianas, na relação com o meio ambiente e social em que se inserem esses miúdos e os próprios conteúdos curriculares..Há um argumento - e ainda hoje o CDS o usou - que é a cidadania implicar direitos mas também deveres, como que a dizer que há quem só queira direitos e não queira ter deveres. É assim? Isso é muito demagógico, é incendiário e é injusto. Para exigirmos obrigações às pessoas temos de as respeitar, temos de as fazer sentir que elas fazem parte daqui. Mas não podemos atirar ao ar essa acusação costumeira que certas franjas noturnas do espaço político na Europa costumam fazer relativamente a sujeitos não brancos, porque é disso que se trata. Isto é precisamente fazer da cidadania um negócio. A cidadania primeiro é um sentimento de pertença, de escolha e da identificação. E esse sentimento de pertença e de identificação não é a base de uma mercearia entre valores, deveres e direitos. Eu sou cidadão e sou tão imputável como um qualquer dirigente do CDS-PP, se pago os meus impostos, como paga qualquer dirigente desse partido ou de outros deste país, tenho de ter os mesmos direitos e as mesmas obrigações. O que tem acontecido é que nos exigem as mesmas obrigações mas dão-nos menos direitos. Com esse peso de duas medidas esse discurso é absolutamente irresponsável porque não ajuda sequer a criar o sentimento de que aquelas pessoas não estão a ser julgadas por serem incapazes de aderir ao projeto de sociedade coletiva, é sempre essa ideia de "vocês para serem iguais a nós têm de se submeter às nossas exigências"..Não há nenhum jovem negro nem nenhum jovem cigano que tenha escapado à imputabilidade por ter cometido alguma infração à lei, portanto as suas obrigações cumprem-nas sempre. Seguramente o que não acontece é que a maior parte desses jovens não têm os mesmos direitos dos jovens brancos portugueses..A associação que fizeram de si ao Bloco irritou-o. Porquê? É uma associação insana, que tem um propósito desonesto. É notório e público que toda a gente sabe que sou do Bloco de Esquerda. Nos últimos dez anos, como a nossa extrema-direita não tem conseguido circunscrever a agenda antirracista a um determinado campo político, para dizerem "a questão racial é uma questão muito menor na sociedade portuguesa, é uma bandeira de uma determinada fação política, não é uma questão da sociedade portuguesa e é uma agenda desse partido, que está a ser levada, suportada por este indivíduo", que sou eu... O que me entristece é que não é apenas a extrema-direita a construir essa tese, temos agora alguns setores que estão a começar a construir também essa tese porque não querem que o racismo não tenha centralidade no debate político. Acho isto desonesto porque não tenho problema que as pessoas me critiquem por pertencer ao BE, nem tenho problema de assumir que sou do BE, absolutamente nenhum - também critico o BE nestas questões e faço-o até com mais contundência porque sou muito mais exigente com os meus - mas irritou-me [isto] porque ajuda a criar uma tese que a extrema-direita tem andado a veicular, segundo a qual o SOS Racismo ou eu teríamos uma agenda escondida..Em 1995 houve uma grande polémica em saber se as mobilizações à volta da morte de Alcindo Monteiro eram instrumentalizadas ou não, na altura pelo PSR, através do SOS. E passados 25 anos ou mais voltamos a ter mais ou menos o mesmo procedimento na comunicação social e no debate público. Parece que não aprendemos nada. Se continuamos a achar que a agenda antirracista é uma agenda lacunar é porque não queremos dar-lhe nenhum valor nem queremos discuti-la. Queremos é desvalorizá-la, e isto não é justo do ponto de vista do debate de confronto de ideias. Quem acha que eu tenho uma agenda, venha discutir comigo essa agenda. Mas acho injusto que por ser do BE não possa ter atividade cívica e cidadã. Que isso me limite e limite o BE..Estes tempos de ressurgimento na Europa de extremismos e populismos, com forças racistas e algumas delas declaradamente nazis, não obriga a uma exigência maior dos partidos democráticos? Exige. Acho que não vale a pena gritarmos de manhã contra o avanço do fascismo e à tarde assobiarmos para o lado sobre questões que o possam alimentar, que são a sua gasolina. E se os partidos continuarem a fazer esse jogo da avestruz vamos ter precisamente este avanço paulatino... A partir do momento em que os partidos do mainstream tentam recuperar e higienizar a retórica da extrema-direita sobre questões como segurança, diversidade étnica, igualdade racial, se quiserem este papel o que estão a fazer é entregar o poder a estas forças noturnas, mais tarde ou mais cedo. Porque por essa via estão a dar-lhes legitimidade social e política. Por isso é que não percebo esta tentação que se tem em Portugal de reduzir a questão racial a uma questão menor..Quem está preocupado com o crescimento da extrema-direita, ou do populismo em geral - da islamofobia, ciganofobia, negrofobia, todas as fobias que temos no regresso do reacionarismo -, não pode transigir sobre esses temas. Temos de ter todos um compromisso que nos leve a um denominador comum mínimo, que é uma coisa que está acima de tudo numa democracia: a dignidade. Não é aceitável no século XXI, depois do que vimos nos horrores do passado, reabilitarmos uma crença de que podemos conviver serena e tranquilamente com forças que têm uma ideologia para estratificar as pessoas, desclassificá-las ou categorizá-las em função apenas daquilo que elas são, não daquilo que são como fazendo parte da comunidade. Isso seria uma derrota do projeto democrático e cho que esse perigo é real. Há um general na reserva que faz um comentário a meu respeito hoje na sua página que é inconcebível. Ele sugere que eu seja deportado. Um general na reserva! E diz que o Estado tem de proibir o SOS Racismo. Se pessoas com esta responsabilidade podem dizer publicamente uma coisa destas sem que isso levante indignação ou preocupação, estamos no mau caminho.