O que falhou em Reguengos e falha no país? O modelo de lar, que "é uma bomba-relógio"

O surto de covid-19 no lar de Reguengos de Monsaraz veio "expor feridas conhecidas" de forma "violenta", porque há muito se sabe que o modelo de lar em Portugal, que dá resposta à maioria dos idosos, "é uma bomba-relógio", "uma realidade desadequada", admitem as Misericórdias. E quando algo corre mal, os argumentos são sempre os mesmos: falta pessoal, formação e financiamento. Ao DN, Manuel Lemos, Constantino Sakellarides, Manuel Lopes, Ricardo Mexia e André Dias Pereira falam do que falhou em Reguengos, do que falha em geral e da questão de fundo, "o envelhecimento".

Nesta semana, e depois do caso de Reguengos de Monsaraz, a ministra da Saúde veio dizer que 40% das mortes por covid-19 são de idosos em lares. O secretário de Estado também anunciou que nesta semana havia 70 focos de infeção em lares: 542 utentes infetados e 2017 funcionários. As condições estruturais, a falta de funcionários e de formação adequada por parte destes e o parco financiamento por parte do Estado são os argumentos usados para justificar tudo, ou quase tudo, o que se passa nesta realidade, a qual, para quem conhece o setor, "é uma bomba-relógio".

O caso de Reguengos de Monsaraz veio colocar a nu a verdade de algumas instituições: "Idosos em situação de desidratação, desnutrição e descompassados em relação às suas patologias anteriores", segundo descreve o relatório da comissão de inquérito da Ordem dos Médicos, que apontou ainda falhas ao lar e às autoridades de saúde locais. O documento instalou a polémica.

A ministra do Trabalho e da Segurança Social não o leu, assumiu em entrevista ao Expresso, e o primeiro-ministro António Costa teve de sair, também nesta semana, em sua defesa. E defendeu: "Quero os desempregados do turismo em creches e em lares." Pensa-se que o objetivo será conseguir colmatar a falha nos recursos humanos nas instituições, mas será essa a solução de que o setor precisa? De que se fala quando se fala do que falhou em Reguengos - independentemente das responsabilidades que venham a apurar-se pela morte de 16 utentes, de uma funcionária e de um homem da comunidade e pela infeção de 132 pessoas, porque o Ministério Público também investiga?

Para quem está no terreno, para quem estuda a área do envelhecimento e dos cuidados continuados, fala-se do modelo de lar em Portugal ou das estruturas residenciais para idosos (ERPI), como se designam. Fala-se de "uma realidade desadequada, para não dizer muito desadequada", admite Manuel Lemos, presidente da União das Misericórdias.

Fala-se de um modelo que "é uma bomba-relógio e que não é usado em mais nenhum país da Europa", afirma Manuel Lopes, ex-coordenador da reforma dos cuidados continuados no SNS e professor na Universidade de Évora. Fala-se da ausência de uma "estratégia clara para o envelhecimento", segundo Constantino Sakellarides, ex-diretor-geral da Saúde, professor catedrático e jubilado.

Fala-se da articulação entre cuidados de saúde e ação social, de organização e distribuição de recursos e também do que as famílias portuguesas podem ou não pagar, porque o Estado, refere Manuel Lemos, subsidia "apenas 400 euros por cada idoso sem capacidade económica, e não é com este dinheiro que se se consegue prestar cuidados diferenciados". No fundo, fala-se do que não se discute, porque "estamos muito confortáveis", o envelhecimento e o que o país quer realmente para os idosos.

A questão fundamental agora, e já que as "feridas conhecidas foram expostas de forma tão evidente e violenta", é se vamos aproveitar a ocasião para "criar um sistema de aprendizagem", "para fazer a transformação do Serviço Nacional Saúde no sentido de responder à questão do envelhecimento", sabendo-se que o SNS "não responderá ao envelhecimentos se não houver articulação com a ação social", defende Sakellarides.

Manuel Lemos, presidente da União das Misericórdias, concorda que a questão de fundo é o envelhecimento. "É esta fase da vida que temos de discutir e de definir para saber o que fazer", diz, mas "os lares têm o seu papel e não vão desaparecer, têm é de mudar", explicando que "o perfil dos idosos que hoje chegam aos lares é muito diferente da população de há dez ou 20 anos. Hoje chegam com mais patologias e com grande incidência de demências, porque ficam mais tempo em casa, o que até está correto e deve ser mais apoiado".

E dá um exemplo: "O Estado tem a ideia romântica de que o apoio domiciliário só funciona cinco dias por semana, que ao fim de semana os filhos cuidam dos pais. Como é possível, quando tantas vezes os filhos estão em Lisboa e os pais em Bragança? É esta conceção dos cuidados que tem de ser mudada", argumenta. Manuel Lemos conta ao DN que as Misericórdias estão a preparar-se. "Há mais de três meses que uma equipa com especialistas em várias áreas está a pensar o futuro, o lar do futuro, ou melhor o envelhecimento."

Manuel Lopes, o ex-coordenador da reforma dos cuidados continuados no SNS, reforça, dizendo que o que está em causa é a necessidade de uma mudança profunda do paradigma dos cuidados aos idosos. Sobretudo porque "vamos continuar a ter idosos e cada vez mais em condições de grande dependência". Um cenário que deveria fazer-nos olhar para o problema e para as respostas de forma global. "O problema não é dos outros, é de todos, porque todos temos grande probabilidade de lá chegar."

Saúde pública não falhou

O caso do lar da Fundação Maria Inácia Vogado Perdigão Silva, de Reguengos de Monsaraz, correu mal, mas no país há outros. Para os médicos que estão no terreno as situações têm sido devastadoras. Ricardo Mexia , presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, afirma que "a especialidade tem poucos recursos e que neste tempo tem feito o que pode. Mesmo assim, os médicos de saúde pública têm respondido às situações com celeridade. Foi o que aconteceu em Reguengos", comenta. "No dia em que a saúde pública foi notificada, 18 de junho, uma equipa foi para lá rastrear os utentes e os funcionários, e começou a proceder-se ao controlo e à vigilância da doença. Só não se acabou os testes nesse dia porque faltou material. Fizeram-no no dia seguinte."

O presidente da ANMSP reiterou a confiança no trabalho dos colegas envolvidos na situação, diferenciando que "uma coisa é a saúde pública, à qual cabe tomar decisões sobre a vigilância e o controlo da doença, outra são as decisões clínicas, que foram tomadas em relação a cada utente". Reforçando: "O SNS trabalha em rede, se não havia forma de o hospital de Évora receber todos os utentes do lar para se cumprirem as regras de combate à pandemia, certamente que haveria em Lisboa ou até em Bragança. É assim que os hospitais do SNS funcionam e, naquela altura, estavam longe de ter a sua capacidade esgotada."

Mas o médico de saúde pública e epidemiologista concorda também que a grande questão por detrás de uma situação destas "tem que ver com o facto de, em teoria, estas instituições só deverem aceitar pessoas idosas saudáveis, para lhes prestar cuidados sociais, mas a maioria aceita pessoas já com grandes morbilidades e dependências". E quando há uma situação como a de Reguengos, "não cabe à Saúde encontrar soluções ágeis e rápidas, mas à Segurança Social, é desta que dependem as instituições".

Ricardo Mexia sublinha: "Quando se soube do primeiro caso já havia utentes com sintomas, não se sabe bem quando começou o surto, mas quando a instituição identificou a situação era preciso que a Segurança Social tivesse conseguido realojar os utentes e reforçar os profissionais."

"Neste caso, "não considero que a saúde pública tenha falhado", mas "uma coisa é a Segurança Social, outra a Saúde. São duas entidades que concorrem para a mesma situação, mas diferentes. E o importante é clarificar esta distinção e a sua articulação".

Há a responsabilidade de quem lá está

O jurista André Dias Pereira, diretor do Centro de Direito Biomédico da Universidade de Coimbra, afirma que, no caso concreto do lar da FMIVPS, há uma primeira responsabilidade, que é a de quem lá estava, da administração e da direção técnica do lar, porque "se houve doentes que ficaram sem cuidados, isso dependia de quem lá estava. Não vale a pena estar a atirar responsabilidades para outros". Mas, como diz, ao fundo do túnel há uma responsabilidade social.

O jurista questiona também o modelo de cuidados aos idosos em ERPI. "Este caso trouxe ao de cima um problema geral, a grande diferença entre as ERPI e as unidades de cuidados continuados (UCC). A finalidade de uma e de outra é diferente", defende. "Se a instituição fosse uma UCC, o Ministério da Saúde teria de ter sido logo chamado para articular cuidados, uma ERPI está sob a tutela da Segurança Social, e a verdade é que há pouca articulação entre as duas entidades. E este caso veio fazer que se coloque a necessidade urgente de recuperar e reforçar a cooperação entre as duas", argumenta.

André Dias Pereira, que é membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida e integrou a equipa que elaborou o projeto de Lei de Bases da Saúde, liderado por Maria de Belém Roseira, não duvida de que algo tem de mudar nas ERPI e que é preciso agir mais depressa.

"A direção da fundação e a direção técnica deveriam ter sido mais exigentes, mais rápidas na busca de cuidados clínicos." E aqui, defende, "numa UCC seria diferente, estas instituições trabalham em rede, com uma articulação bem definida do que é responsabilidade da Saúde e da Segurança Social", embora saiba que os cuidados diferenciados custam dinheiro e "as famílias portuguesa não podem pagar.
É preciso encontrar-se uma solução".

Em Reguengos, 132 casos de infeção

Em Reguengos de Monsaraz havia 84 idosos - segundo a FMIVPS a lotação máxima é de 86 pessoas - divididos em quartos de duas, quatro ou seis camas, conforme refere o relatório da Ordem. "Não havia espaço para separar os utentes nem para os manter à distância regulamentada pela Direção-Geral da Saúde para evitar o contágio pela covid-19."

No lar de Reguengos, como noutros do país, uma parte dos idosos tinha morbilidades avançadas e os funcionários eram insuficientes para dar resposta a todos. Aos fins de semana, "havia só três a quatro funcionárias para os mesmos utentes. Era muito pouco", confirmaram ao DN antigas funcionárias.

O conselho de administração da FMIVPS garante que "o quadro de pessoal cumpria o acordo com a Segurança Social. Mas, para os especialistas ouvidos pelo DN, o que está em causa é o conceito de cuidados de longa duração e de cuidado social.

Segundo explicam, a Portaria 67/2012, que define as condições de organização, funcionamento e instalação das estruturas residenciais para pessoas idosas (ERPI), veio alterar o enquadramento destas instituições para que fosse possível "maximizar as potencialidades de intervenção das entidades, garantindo mais e melhores respostas às necessidades das pessoas e das famílias".

No entanto, criticam, o que fez foi aumentar o número de camas nas mesmas instituições. "Há instituições com cem e mais utentes. Como é possível tratá-los de forma individualizada, com afeto, relação interpares, que justifique o facto de ali estarem?"

Modelo de lar não existe na Europa

Manuel Lemos relembra o momento, já com alguns anos, em que ouviu publicamente "um ministro da Segurança Social dizer: onde cabe um, cabem mais dois ou três.
E mandou aumentar o número de lugares, não através da criação de novas estruturas, mas da densificação do número de pessoas no mesmo espaço". Logicamente, "isto tem custos, está a ter".

O professor da Universidade de Évora, que há mais de 20 anos se dedica ao trabalho e à investigação sobre os cuidados de longa duração, faz também a diferenciação entre cuidados numa UCC e numa ERPI, explicando que pertencem "a dois mundos diferentes". Aliás, realça, no caso específico de Reguengos, "temos uma situação caricata, porque no mesmo edifício temos, de um lado, uma UCC, onde, até agora, a taxa de infeção é de 0%, do outro lado do edifício temos o lar da fundação, onde houve 100% de infeção. Ora, isto quer dizer alguma coisa".

O ex-coordenador da reforma dos cuidados continuados explica: "Há uma separação nítida entre estes dois mundos, no mundo das UCC trabalha-se em rede convencionada com o Estado, os serviços são maioritariamente prestados por entidades sociais e algumas privadas, mas todas são obrigadas a prestar um serviço público e a seguir rigorosamente o que está previsto nas normas que foram elaboradas para o funcionamento da rede. São unidades que dependem da Saúde e da Segurança Social."

No caso das ERPI, "são entidades dependentes só da Segurança Social que prestam cuidados sociais, não funcionam em rede, e a convenção que têm com o Estado é a de subsidiada". A maioria, sublinha também, "são instituições do setor social que não deveria receber, mas recebe, uma população muito dependente e a precisar de cuidados diferenciados e não de cuidados sociais".

Ou seja, "a maioria das pessoas em lares tem uma grande dependência no autocuidado, e esta não pode ser desvalorizada chamando-lhe cuidado social, porque é o autocuidado que nos mantém vivos". Por isso, reforça: "O problema destas instituições não é a falta de pessoal, como parece ter acontecido em Reguengos, mas o modelo adotado em Portugal, que faz a separação nítida entre cuidados de longa duração e cuidados sociais."

E obviamente que, "quando se fala de algo que corre mal nos lares, não se fala de instituições que têm condições que integram cuidados de hotelaria, de saúde, médicos, enfermeiros, etc. - pois estas só estão ao dispor de quem tem poder económico -, fala-se das instituições que hoje são a oferta para a maioria da população, sem poder económico".

Manuel Lopes diz não estar a criticar o setor social, "não podemos generalizar. Há quem funcione muito bem, há quem funcione mal. Estou a dizer que o próprio modelo de lar não permite outro tipo de resposta", porque, a verdade, é que "o Estado subsidia mal e não há dinheiro que pague os cuidados em permanência. A maioria das famílias não o pode fazer. E este é um problema de fundo, complexo, difícil de resolver, mas que tem de ser refletido".

Pandemia agrava condições

Um problema que se agrava perante uma pandemia. "Quando, por alguma razão, a infeção entra num lar, a capacidade de contágio é brutal. Porquê? Porque se as condições estruturais e funcionais dos lares fossem outras, haveria a possibilidade de, ao detetar-se um caso, criar-se rapidamente condições para que o contágio não progredisse, mas não é o que tem acontecido." Aliás, muitas destas instituições funcionam em estruturas que não suportam as medidas que o combate à doença exige - separação de circuitos, de pessoas e baixa densidade populacional".

Até agora, a cadeia de transmissão nos lares tem sido feita sobretudo através dos funcionários, de quem entra e sai, mas podemos responsabilizá-los? A verdade é que não, pois muitos resultam de programas dos institutos de emprego, "e não têm qualquer formação na área e nem ficam o tempo suficiente para criar a cultura de cuidados que as pessoas exigem".

As críticas de Manuel Lopes vão mais longe. "Os ministérios da Saúde e da Segurança Social ordenaram a criação de planos de contingência. Muito bem. Mas estes não podem ser só um papel, que alguém escreveu e meteu na gaveta." Como o indica, "um plano de contingência é algo em que participaram todos os atores de uma organização, e todos devem saber qual é o seu papel e quando o devem assumir. Isto exige treino". Por isso, os problemas contidos em Reguengos não são só daquela unidade, "são da sociedade, pela forma como decidimos organizar a resposta que serve uma grande fatia da população portuguesa".

Vamos aprender e melhorar?

Para Constantino Sakellarides, professor catedrático e ex-diretor da Escola Nacional de Saúde Pública, a questão de fundo é "o envelhecimento, um problema sério que coloca os lares no centro da questão". E se esta resposta é imperfeita, então a resposta que o país está a dar ao envelhecimento também. Explicando: "O envelhecimento tem que ver com sustento, saúde, doença, com dependência, isolamento, solidão, abandono e demências. São situações extremamente complexas, que, perante um fenómeno como a covid-19, que atinge sobretudo os mais velhos, se agravam, não havendo respostas suficientes, em termos de saúde e ação social."

Constantino Sakellarides refere que o que hoje se relata em relação ao caso de Reguengos faz parte de "uma realidade violenta", mas que as feridas e as imperfeições desta realidade são há muito conhecidas. A questão agora é perceber "o que aprendemos com o destapar desta realidade e o que vamos fazer". Para o ex-diretor-geral da Saúde o importante "é saber se vamos aproveitar a ocasião para aprender ou não".

Sakellarides diz mesmo que um dos problemas da nossa sociedade é o facto de "os poderes aprenderem pouco", ou melhor, "estarem pouco disponíveis para aprender, porque para isso é preciso admitirem que temos de melhorar, e quando o admitem estão a dar abertura às críticas da oposição". Portanto, neste momento, "o país não tem uma estratégia conhecida e partilhada" para a covid-19 e para o envelhecimento, porque "as estratégias só existem quando envolvem as pessoas e estão sustentadas pelo conhecimento científico, que enquadra as decisões políticas".

Por exemplo, "o Ministério da Saúde aprovou há anos o Programa Nacional para o Envelhecimento Ativo. O que é? Papel. Só não é se houver uma estratégia entre os vários setores, saúde, ação social, economia, etc., para fazer que dentro das nossas dificuldades criemos um processo de aprendizagem. Esta é a questão fundamental". Insistindo: "Decisões políticas setoriais não enquadradas não respondem ao que a pandemia destapa e não configuram um sistema de aprendizagem." O que o preocupa é saber "como vamos aproveitar o que foi esta exposição pública, indignação pública, para se fazer melhor". O desafio é este, "não é continuar a dizer que precisamos de mais médicos, funcionários ou de formação. Isso é o óbvio".

Aliás, " o principal desafio do SNS é conseguir transformar-se ao ponto de poder responder ao desafio que é o envelhecimento, com todas as suas múltiplas morbilidades e articulação de cuidados". E insiste: "Se não aproveitarmos as circunstâncias para criar a transformação necessária, não ganharemos nada para o futuro." Ou seja, "se ficarmos a olhar para os detalhes", ficaremos também longe de "uma sociedade transformada, corrigida e com futuro".

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