Não há borrego no Ciborro, mas "detetives da saúde" ligam todos os dias a Ermelinda
Desde que foi conhecido o primeiro caso de infeção pelo novo coronavírus em Ciborro, Montemor-o-Novo, que Ermelinda Miguel recebe dois telefonemas - um da GNR e outro das autoridades de saúde. Os primeiros querem saber se está em casa, os segundos perguntam se continua sem qualquer sintoma de covid-19.
A primeira vez que o telefone tocou foi na quinta-feira, 13 de agosto. As autoridades de saúde tinham feito o papel de detetives e souberam que o homem que deu positivo tinha estado a beber um café no seu estabelecimento, o snack bar O Ciborro - Ermelinda passou a ser um caso de alto risco de proximidade. "Fiquei muito assustada", conta. No dia seguinte, já estava a fazer o teste em Évora e o resultado - negativo - não demorou. Mesmo assim, ficou de quarentena e recebe as chamadas diárias para saberem se tem febre, dores no corpo ou na cabeça, se perdeu o apetite, o olfato... Em, suma, se não apresenta sintomas.
Ermelinda só critica o facto de este método não ser aplicado a toda a gente. "Os que foram fazer o teste no privado e que deu negativo andam à vontade. Eu tenho de ficar em casa e a guarda liga-me. Acho que é para me controlar." Catorze dias de confinamento (o tempo estimado de incubação do vírus) que coincidem com o encerramento do café - como em Mora, os estabelecimentos estão todos fechados. Todo o dia, Ermelinda ouve o barulho dos viajantes das caravanas e dos carros que aderiram à moda de atravessar a EN 2 de Chaves a Portimão e ali param, precisamente no marco que assinala o quilómetro 500. Mas as portas de O Ciborro têm ordem para estar fechadas até dia 26 e até lá não há forma de a proprietária servir os seus pratos de borrego assado e de bacalhau.
O acompanhamento diário de pessoas que estiveram em contacto com outras infetadas por covid-19 é feito por delegados de saúde, médicos, enfermeiros e outros profissionais dos agrupamentos dos centros de saúde (ACES), bem como estudantes de Medicina.
Os surtos do novo coronavírus que estão a assolar o Alentejo, em Mora e em Ciborro (há quem fale também em casos na aldeia do Cortiço), trouxeram uma azáfama acrescida aos "detetives de bata branca" que têm a responsabilidade de reconstruir o percurso dos infetados nos últimos dias - entre 48 e 72 horas antes dos primeiros sintomas. Trocaram os utensílios médicos pelo telefone e fazem dezenas e até centenas de chamadas por dia.
Na segunda-feira passada, a diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, classificou como "surto complexo" o foco de Mora, que, nessa altura, sublinhou, já tinha levado a que fossem testadas 300 pessoas. No Ciborro, há 19 casos de covid notificados (totalizam 29 em Montemor) e em Mora já são 50.
De uma forma geral, com a diminuição de casos, comparativamente com os meses de março, abril e maio, o trabalho destes profissionais de saúde está mais calmo. Os picos da crise vividos no início da pandemia levaram a que muitos desses profissionais não folgassem um único dia, tal era o volume de trabalho e o número de pessoas a contactar - a 10 de abril registou-se em Portugal o maior número de infeções, 1510. Antes, a barreira dos mil casos só tinha sido atingida a 31 de março (1035). Em julho, as campainhas de alarme voltaram a soar, quando foram notificadas 542 infeções, números só semelhantes aos de 8 de maio.
Francisco Ramos, interno do 3.º ano de Medicina de Saúde Pública, conta que no ACES de Lisboa Central, nessa altura, chegaram a ter 30 casos diários. Por cada um deles era necessário falar com cada pessoa que tivesse estado próximo do infetado. Portanto, centenas de telefonemas diários. Nesses contactos designados de alto risco, contam-se sobretudo a família, os amigos, os colegas de trabalho, as pessoas com quem o doente esteve em contacto sem máscara, sem distanciamento, em conversas superiores a 15 minutos e também, por exemplo, as que viajaram no mesmo avião (dois lugares para cada lado, à frente e atrás).
Os "detetives de bata branca" recebem a notificação de que uma determinada pessoa testou positivo através do SINAVE (Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica), um sistema de vigilância em saúde pública que identifica situações de risco, recolhe, atualiza, analisa e divulga os dados relativos a doenças transmissíveis e outros riscos em saúde pública. É o ponto de partida para o desenrolar do processo de reconstituição do percurso do doente, a investigação epidemiológica.
Em regra, o protocolo passa por contactar o doente e perceber onde andou e com quem contactou. Se estiver hospitalizado, poderá ser feito através de familiares. Depois de terem o número de telefone dessas pessoas, entram em contacto com elas. Nas empresas, o método passa por determinar um focal point, alguém com quem se possa estar em contacto permanente e com quem se faça uma avaliação com critérios de alto risco.
O médico Francisco Rocha, que tem passado muitos dias com o telefone encostado à orelha, diz que a maioria das pessoas que contactou já estava avisada de que alguém de quem esteve próximo testou positivo. E que todos têm sido cooperantes. A partir daí, essas pessoas são colocadas em quarentena, o chamado isolamento profilático, e serão contactadas diariamente para saber se desenvolveram algum sintoma. Quando isso acontece, fazem o teste ao novo coronavírus e passam a ser acompanhados por médicos de medicina geral e familiar - a chamada vigilância sobreativa -, que é a mesma medida aplicada aos casos positivos.
No início da pandemia, no ACES a que Francisco Rocha está adstrito eram apenas cinco ou seis pessoas, mas, face ao volume de contactos desenvolvidos todos os dias, o pessoal foi reforçado e há também gente com outras funções, como fisioterapeutas, técnicos de saúde oral e ambiental. Ao todo, agora são uma dezena e a situação epidemiológica do país já permite que tirem folgas e até uns dias de férias. E já permite fazer um horário diário de trabalho normal, em vez daqueles que se estendiam por 12 ou mais horas. "Era o tempo que fosse necessário. Não há limite de pessoas a contactar, o nosso limite é o cansaço."
"Agora temos 10/15 casos por dia. Já dá para ser um pouco mais relaxado. O início foi o período mais difícil. Não sabíamos se íamos ser outra Bérgamo [cidade de Itália onde se registaram milhares de mortes], não sabíamos lidar com os sintomas. Também tínhamos dúvidas em relação à parte legal, estávamos sempre com um pé atrás, mas o decreto do estado de emergência veio resolver isso", conta o médico.