A Polícia Judiciária (PJ) não confirmou ainda as suspeitas de violência policial descritas nos 15 inquéritos remetidos, há quase dois anos, pelo Ministério Público (MP) da Amadora, para serem investigadas. A conclusão célere destes processos, da responsabilidade da Unidade Nacional de Contraterrorismo (UNCT) - a mesma que sustentou a acusação histórica de 18 agentes da esquadra de Alfragide pelos crimes de tortura e racismo contra seis jovens da Cova da Moura - tinha a relevância de poder contribuir para esclarecer o padrão da atuação da PSP naquela zona urbana sensível..Saber se o que aconteceu era comum, como alegaram as seis vítimas diretas e dezenas de testemunhas, ou se não acontecia de todo, como garantiram os agentes acusados - poderia ter sido respondido em parte se as denúncias tivessem sido entretanto esclarecidas. Com isto, a PJ deixa a PSP sob suspeita e as vítimas sem justiça..O DN pediu à PJ que indicasse qual o estado dos processos, mas não obteve resposta durante toda a semana. Fonte que está a acompanhar os processos, e que pediu anonimato por não estar autorizada a falar, garante que estão todos "pendentes". Na única investigação que a UNCT concluiu destes 15 inquéritos - relativa a um homem agredido (esteve hospitalizado três dias) depois de ter resistido a ser despejado da sua casa no bairro 6 de Maio - foi proposto o arquivamento e o MP refutou a decisão, avançando com nova averiguação que ainda está a decorrer..Conjugação de fatores?.Além dos processos em que pediu a coadjuvação da PJ, o MP da Amadora investigou por conta própria dois outros casos, um deles com agressões a um homem na mesma esquadra de Alfragide. O agente foi condenado em março passado. O outro caso, que envolveu um subcomissário da PSP, que o MP acusou de agredir um angolano em pleno tribunal, resultou também em condenação..Estes desfechos acentuam a dúvida sobre a realidade da atuação policial. Foi esta acusação um momento único em que se conjugaram fatores impossíveis de juntar de novo? Dois procuradores - Paes de Faria, que enviou o inquérito para a PJ, e Hélder Cordeiro, que deduziu a inédita acusação e levou os outros polícias a serem condenados - que acreditaram nos jovens; uma UNCT mais empenhada; e vítimas que, pela sua formação e ligações, não desistiram?.A Procuradoria-Geral da República (PGR) não respondeu às questões do DN sobre a qualidade das investigações nas suspeitas de violência policial nem sobre se, depois do caso de Alfragide, foi feita alguma avaliação, quer a nível da Comarca da Amadora quer a nível nacional, sobre a situação e consequências deste género de inquéritos..Questionada também sobre se está a ser feito algum trabalho de sistematização de dados sobre estes casos, conforme foi solicitado no último relatório do Comité de Prevenção da Tortura, também se remeteu ao silêncio..O "duro golpe" do MP.Nesta segunda-feira, os 17 agentes que foram a julgamento (um dos acusados foi despronunciado em fase de instrução) vão ouvir a sentença do coletivo de juízes, presidido pela magistrada Ester Pacheco, a acreditar na absolvição. Principalmente depois de o procurador do MP que esteve no julgamento (diferente do que deduziu a acusação) ter pedido a condenação de apenas sete dos polícias, mas nenhum por tortura nem motivação racial..Se estivessem em julgamento todas as injustiças sentidas pelos moradores da Cova da Moura nos últimos anos, as denúncias de agressões arquivadas, possivelmente os 17 agentes da PSP seriam todos condenados. Mas não foi a história nem o histórico de discriminação que esteve em tribunal, apesar de terem sido já denunciados por organizações internacionais e de algumas das vítimas os terem invocado em emocionados testemunhos.."Este não é o julgamento da PSP nem da esquadra de Alfragide, mas de apenas 17 polícias", sublinhou o procurador do MP, Manuel das Dores, no dia em que apresentou as suas alegações finais. Quis com isto explicar que tudo o que estava na acusação, deduzida pelo seu colega Hélder Cordeiro, coordenador do DIAP da Amadora, tinha de ser provado..Para Manuel das Dores tal não aconteceu, principalmente na parte da alegada "tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos" infligidos aos jovens na esquadra. Era preciso que os ofendidos estivessem mais suportados nas lesões que apresentaram" e estas "não sustentam o sofrimento atroz de um ato de tortura", justificou..Foi um "duro golpe", reconhece Godelieve Meersschaert, psicóloga residente na Cova da Moura, uma das fundadoras da Associação Moinho da Juventude, entidade que trabalha na integração dos jovens do bairro e onde colaboravam duas das seis vítimas, Flávio Almada (este ainda é mediador social) e Celso Lopes..Godelieve sublinha que "há muitos anos o bairro espera por justiça" e que esta acusação "veio acender uma luz de esperança". Foi "preciso muita coragem destes jovens e de todas as testemunhas que foram a tribunal para chegar até aqui"..Mamadou Ba, do SOS Racismo, subscreve a desilusão com a reviravolta do MP, mas, "tendo em conta todos os testemunhos", espera a condenação dos polícias "que cometeram os crimes motivados pelo ódio racial"..Sob pena, assinala, "de aprofundar uma crise na credibilidade da justiça e junto das comunidades racializadas que aguardam há bastante tempo por justiça efetiva contra as várias violências racistas que vão sofrendo"..Quem são as seis vítimas.Celso Lopes.Tem 35 anos, é filho de pais cabo-verdianos e nasceu em Portugal. Celso tem o 12.º ano e está atualmente a trabalhar numa empresa de informática. Deixou o bairro a seguir aos incidentes e vive com a mulher e um filho na Margem Sul. Era também membro da Associação Cultural Moinho da Juventude (ACMJ)..Foi atingido numa perna por uma bala de borracha disparada por um dos agentes durante os confrontos em frente à esquadra..Celso disse, em tribunal, que pediram a um agente que estava à porta para falar com "o chefe de serviço" e que, sem nada o fazer prever, "entre 15 e 20 polícias saíram e começaram a carregar" sobre os jovens. "Quando percebi que o agente não nos ia mesmo dizer nada virei-me para ligar para o Moinho e avisar que íamos voltar. Foi quando ouvi o agente com quem tínhamos falado a gritar: 'Ó malta, venham cá!' Vieram entre 15 e 20 polícias e começaram à bastonada, aos pontapés e a insultar. Vem um polícia com uma caçadeira na mão e eu digo 'não dispare, não fizemos nada!', mas ele apontou para o chão e disparou. A bala bateu no chão e saltou para a minha perna. Fiquei estupefacto, virei-me para o Flávio e ia dizer 'isto tudo para quê?' quando fui atingido diretamente na coxa. O agente disse: 'Este tem que ficar.' Ele e outro agente atiraram-me para o chão e senti uns joelhos em cima do peito, a apertar-me contra o pavimento. Senti falta de ar e disse ao agente que não conseguia respirar. Ele disse: 'Preto do car****, hoje vais morrer mesmo!'", contou..Disse ainda que, quando foi "arrastado" para dentro da esquadra, foi "atirado" para cima da "roda de uma viatura", mas logo ouviu alguém dizer que "a merda" era "para o chão" e para o chão foi "atirado". "Ficámos deitados no chão com sangue à nossa volta", recordou.."Disseram-nos várias vezes que nós, os africanos, temos de morrer. Que se a legislação permitisse nos executariam, que devíamos estar pendurados pelos pés. O polícia que me baleou duas vezes fez um disparo que fez ricochete e atingiu-me na perna. Quando me viro para dizer ao Flávio, ele dá um segundo tiro na perna. Dentro da esquadra há um hall que tem uma secretária e mandaram-me contra um pneu. Mas depois o polícia disse: 'Não, a merda tem de estar no chão'", acrescentou ainda..Flávio Almada.Igualmente com 35 anos, vive na Cova da Moura. É rapper, ativista e mestrando de Estudos Internacionais no ISCTE e agente de Educação Familiar na ACMJ - apoia crianças no seu estudo.."A primeira coisa que me vem à cabeça é a negação da humanidade aos africanos. Para aqueles agentes fardados nós não éramos pessoas", contou ao DN..O seu testemunho constituiu um dos momentos mais duros deste julgamento. Quando descrevia o que se tinha passado naquela esquadra, as humilhações, a violência física e verbal, as suas palavras foram carregadas de emoção, algumas entrecortadas com lágrimas. A sessão teve de ser interrompida minutos depois, quando chorou convulsivamente ao recordar a forma como os agentes tinham tratado Rui Moniz, uma das vítimas, que tem uma das mãos paralisada por causa de um AVC que sofreu. "Parecia um inferno", recordava..Rui Moniz.26 anos. Não foi detido nas mesmas circunstâncias dos jovens que se dirigiram até à esquadra: Rui tinha descido do bairro até uma loja de telecomunicações, ao lado da esquadra de Alfragide - momentos depois de ter visto Bruno Lopes a ser detido na Cova da Moura e a ser levado na carrinha da PSP. Por esta altura, a PSP já tinha detido os outros jovens do bairro..Eis o que contou aos coletivo:."Saí da loja e ia a voltar ao bairro quando ouvi umas sirenes atrás de mim. Virei-me e vi três polícias na minha direção. Um deles disse 'Olha, ainda por cima é amputado.' Levei logo uma cacetada na mão que me atirou o telemóvel para o chão. Depois um soco no olho e atiraram-me para o chão. Fui arrastado até à esquadra. Lá dentro comecei a apanhar mais, socos, pontapés, chapadas. Pediram-me a identificação mas tive medo de tirar. Um dos polícias tirou-ma do bolso, olhou e disse: 'Fod*** ainda por cima é português' e o outro disse 'português não, pretoguês.'"."Depois perguntaram-me o que tinha acontecido ao braço e eu disse que tinha sido um AVC [aos 7 anos, Rui sofreu um AVC que lhe deixou um braço paralisado e uma perna quase imobilizada, desde então que usa uma tala presa no antebraço com ligaduras e que se move coxeando]. 'Tiveste um AVC e não morreste? Desta vez vais ter um que te vai matar', disse o outro agente. Um deles puxou-me as tranças, que usava na altura. Depois mandaram-me deitar no chão - e foi quando vi que já lá estavam os outros - com a cabeça virada para baixo. Tentaram algemar-me o braço com a tala, mas não conseguiram e prenderam-me ao banco. Todos os polícias que passavam pisavam-me e esfregavam o pé. Comecei a ficar aflito do peito, com falta de ar. Não posso, por causa da doença, estar assim virado para o chão. Pedi ajuda a um agente, disse que estava aflito. Deu-me um pontapé na cabeça e mandou-me baixar a cabeça."."Tenho medo de estar na rua com os amigos, medo de passar na frente da esquadra [segundo contou, desistiu de um curso de jardinagem que estava a tirar porque no caminho passa pela esquadra de Alfragide], medo dos agentes aparecerem. Ainda no outro dia [já depois dos incidentes de 5 de fevereiro de 2015] passaram numa carrinha e gritaram 'filho da puta'. Ignorei e baixei a cabeça.".Só várias horas depois de detido é que conseguiria fazer o telefonema para a mãe de Rui [que também foi presente a tribunal]. Dirigiu-se imediatamente até à esquadra, com um tacho e medicamentos debaixo do braço, mas não a deixaram entregar a medicação ao filho..Bruno Lopes.Conhecido no bairro como Timor, Bruno Lopes tem 27 anos e é músico de hip hop..Não foi detido na rua da Cova da Moura onde os polícias dizem que foi, nem houve pedras contra a carrinha policial, como alegam os agentes. Contou que se estava, juntamente com o primo, a rir da conversa dos agentes que ali passavam e que um deles o questionou sobre o motivo do riso..Explicou ao tribunal que este o mandou encostar à parede, partindo-lhe o nariz com uma bastonada, deferida do lado do punho de ferro. "Perdi os sentidos momentaneamente e quando acordei estava a ser arrastado pelos braços para me meterem na carrinha", relatou numa das audiências.."Bateram-me com o cassetete, davam pontapés. Diziam-me para me candidatar ao Estado Islâmico. Chamavam-nos pretos, macacos, que iam exterminar a nossa raça", disse..Paulo Veiga.Tem agora 23 anos - 19 quando tudo aconteceu - e é servente de construção civil em França, para onde emigrou há oito meses, fruto da insegurança que sentia no seu bairro, após os incidentes de 2015. Naquele dia, foi até à esquadra de Alfragide, juntamente com Flávio, Celso, Angelino, Fernando e Miguel.."Quando chegámos, foi um terror. Mandaram-nos para o chão. Cada polícia que entrava insultava-nos e batia-nos", contou. Lembrou o tempo em que "parava no bairro até tarde, bebia um copo e dava uma volta". "Deixei de conseguir fazer isso. Tenho medo que me apanhem e me batam", desabafou..Miguel Ângelo Reis.Com 22 anos - tinha também 19 na data dos acontecimentos - Miguel Ângelo está desempregado e solteiro. Foi um dos jovens que se dirigiram até à esquadra policial para saber da situação de Bruno Lopes.."Sempre que passavam por nós davam-nos um pontapé", recordou. Uma das agressões terá deixado Miguel sem um dente e o estado físico em que se encontrava depois das alegadas agressões foi suficiente para, quando transportado para a esquadra da Damaia para ser fotografado, ele e Flávio terem ficado de fora. "Disseram que não estávamos em condições", explicou.