Pandemia: efeito na saúde mental de crianças e jovens poderá prolongar-se
Novo normal. Rotinas, prioridades. Muita coisa mudou na vida de crianças e jovens desde março de 2020 e todas as restrições e alterações que enfrentaram vão ter consequências na sua vida futura.

Inês Cruz
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A pandemia mudou rotinas, prioridades e tornou as crianças e os adolescentes mais dependentes das tecnologias. Contudo, entre a quase ausência de atividades desportivas e o fim de convívios entre pares, há "aspetos positivos a retirar" destes meses de "novo normal".
Crianças e adolescentes mais individualistas, com menos atividade desportiva e um maior uso de novas tecnologias são algumas das consequências dos períodos de isolamento social dos últimos meses. Segundo o pedopsiquiatra Nuno Pangaio, "será difícil pedir às crianças que voltem a sentir-se espontâneas e brinquem umas com as outras sem restrições ou medos depois do que lhes estamos a pedir agora". "Os relacionamentos já vêm numa dinâmica de mudança bastante pronunciada. Penso que esse processo tenderá a acelerar bastante com estes anos de pandemia no sentido de maior individualismo em detrimento do grupo e da comunidade", diz o especialista ao DN, quando questionado sobre a possibilidade de mudanças comportamentais a longo prazo.
Segundo um estudo da Escola Superior de Enfermagem de Coimbra, inserido no programa de prevenção de comportamentos suicidários em meio escolar Mais Contigo, relativo ao ano letivo 2019-2020, 20% das crianças e dos adolescentes têm, pelo menos, uma perturbação mental. No nosso país, quase 31% dos jovens têm sintomas depressivos, a maioria moderados ou graves. O cenário poderá ter-se agravado com o período de quarentena e o isolamento social. "O isolamento é sempre uma contingência nefasta. Pode, em circunstâncias específicas, adiar a resolução de problemas contextuais, mas o isolamento frequente ou persistente é algo que tende sempre a prejudicar a saúde mental das crianças", sublinha Nuno Pangaio.
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Atos simples como, por exemplo, festejar um aniversário ou jogar uma partida de futebol deixaram de ser possíveis ou foram condicionados. Inês Cruz assinalou o seu 18.º aniversário em plena quarentena, a 13 de março. A jovem estudante de Gestão, na FEP (Faculdade de Economia da Universidade do Porto) recorda a data com alguma amargura. "Por um lado, estou consciente de que isto não é mais do que uma fase passageira e que daqui a uns tempos voltaremos, gradualmente, às nossas antigas rotinas. No entanto, fico frustrada pelo facto de a pandemia ter ocorrido neste momento marcante da minha vida: 18 anos e transição entre o secundário e a faculdade. Todas as medidas preventivas vieram afetar muito os meus planos e eventos, entre os quais, o cancelamento do baile de finalistas, das festas de 18 anos e da vida académica (festas universitárias e praxe)", explica.

Inês Cruz
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A jovem escolhe a palavra "saudade" como o elemento mais marcante dos últimos meses "muito duros". "O que mais me afetou, ao longo da pandemia, foi a impossibilidade de estar com os meus amigos e familiares quando e como queria. De facto, tivemos de nos adaptar a este novo regime e todos os convívios e festas foram cancelados, levando a que as saudades aumentassem", sublinha. O regime de aulas, essencialmente à distância, também não agrada à caloira que teve de "implementar estratégias de concentração". Ainda assim, consegue destacar "coisas positivas". "Passei mais tempo de qualidade com os meus pais e isso foi muito bom", conclui.
Nuno Pinto Martins, fundador da Academia Educar pela Positiva, também destaca o maior tempo de convívio entre pais e filhos como o grande ganho da pandemia. Contudo, afirma que, "de uma forma geral tanto as crianças como os adolescentes sofreram com esta situação, sobretudo durante o confinamento". "Desde logo pelas mudanças drásticas de rotinas a que a pandemia obrigou. Os mais novos tiveram de lidar com os medos e ansiedades dos pais e dos educadores - perante o natural desconhecimento relativamente ao vírus - e também com novas regras mais rígidas, designadamente na escola, que limitaram os contactos e os afetos. Regras que, muitos deles, não tinham capacidade para entender. Foi igualmente difícil para os adolescentes, sobretudo por serem obrigados a restringir os contactos sociais, numa fase em que o convívio com os pares é essencial para o desenvolvimento da individualidade", explica.
As novas tecnologias também ganharam mais espaço nas rotinas de crianças e jovens, que "adquiriram mais destreza tecnológica", mas perderam contactos sociais reais. "É sempre difícil tirar conclusões em tempo real dos fenómenos sociais. No entanto, dado o percurso de utilização das tecnologias por parte das crianças e dos jovens portugueses que temos observado nas últimas décadas, estou em crer que este aumento e consequente dependência das tecnologias para as tarefas e rotinas do quotidiano apresentam mais fatores negativos do que positivos, como, por exemplo, a indisponibilidade para tarefas mais sociais e relacionais ou até de momentos de introspeção e planeamento", alerta o pedopsiquiatra Nuno Pangaio.
Pandemia afasta jovens do desporto federado
Diogo Cruz, de 15 anos, atleta de basquetebol da Juvemaia, tinha três treinos por semana antes da pandemia e um ou mais jogos ao fim de semana. Exercita-se, agora, online, uma vez por semana. "Não posso treinar e isso afeta-me bastante", confessa. Apesar de ressalvar "o esforço que as equipas fizeram para manter o espírito desportivo vivo", o adolescente confessa não estar a gerir muito bem "a falta de competição". "Acho que existe um esforço conjunto dos treinadores e staff das equipas, mas como atleta estou triste por não ter treinos presenciais. Entendo as circunstâncias, mas com os cuidados que estávamos a ter deveríamos continuar, pelo menos, os treinos" conclui.

Diogo Cruz
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Segundo Nuno Pangaio, "é habitual observar que as crianças, tal como os jovens ou os adultos, sentem a frustração natural da perda temporária das suas atividades preferenciais, desde a brincadeira espontânea do recreio até à saudável competição desportiva individual ou coletiva", até porque, "as atividades supletivas são habitualmente escolhidas pelas crianças e os jovens por lhes serem queridas e aprazíveis e, por isso, a sua relevância é enorme para minimizar o impacto negativo das contingências pandémicas.
Um impacto negativo sentido, também, na rotina das gémeas Alexandra e Catarina Melo, de 14 anos, atletas de voleibol do Vitória Sport Clube, em Guimarães. Antes da pandemia, tinham quatro treinos semanais com a duração de duas horas cada. Passaram a ter um ou dois treinos presenciais. com a duração de um hora e alguns por videoconferência e, agora, voltam a uma paragem total. As irmãs confessam-se "tristes e desmotivadas pela falta de treinos e jogos de competição com outras equipas". Também sentem que não estão "a progredir a nível técnico".
A mãe, Elizabeth Pires, enfermeira, acredita que o problema ultrapassa a falta de treinos e de competição e se sente, também, nas atividades paralelas: "Havia muitos momentos de partilha, lanches e festas de Natal, Carnaval e pequenos retiros em que conheciam outras jovens como elas, de outras localidades, que partilham o gosto pelo voleibol e infelizmente devido à covid, tudo isso ficou em standby. Também Simão Santos, de 12 anos, da Geração Talentos Benfica, de Chaves, já não pode "jogar à bola". "Tinha sido chamado à seleção distrital de sub-12 e o facto de não ter jogos de competição mexeu um pouco com ele", explica a mãe, Marisa Santos.
Os principais desportos coletivos registam, esta época, uma diminuição de 78,4% no número de atletas federados inscritos, mas Simão Santos, apesar de se sentir "triste", não faz parte dessa lista.
António Carlos Rodrigues, Fundador e CEO da empresa ACR"SOCCER, não tem, nos atletas que representa, qualquer desistência. "É normal, pois os nossos atletas já têm contratos de formação com os clubes e aí a ligação é muito mais profunda, mas agora que voltámos à estaca zero, os miúdos quase têm a certeza de que já não dá para salvar a época. A Federação Portuguesa de Futebol tinha arranjado um campeonato para os sub-21 que também foi cancelado. Os miúdos estão muito tristes e os que estão deslocados vão regressar às suas casas e terão aulas à distância. Os clubes já decidiram que será assim para os que estão longe das suas famílias. Para os mais velhos, de 17/18 anos é ainda mais difícil. Já namoram, por exemplo, e já construíram uma vida longe de casa", explica.
António Carlos Rodrigues refere ainda estar a ter "trabalho a dobrar", com " apoio psicológico aos atletas" para o qual não estava preparado. "Isto pode hipotecar o futuro desportivo de muitos atletas. Têm de manter o foco e ter muita resiliência, mas não é fácil quando falamos em crianças e adolescentes", conclui.
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