Quadros de Natal
Autor anónimo
A Adoração do Cristo-Menino
c. 1515
Pintado circa 1515, este quadro pertence à colecção do Metropolitan Museum of Art, de Nova Iorque. Intitula-se A Adoração de Cristo-Menino e é um óleo da escola flamenga, desconhecendo-se o seu autor, que se pensa ser um discípulo de Jan Joest van Calcar.
Segundo diversos investigadores, o quadro constitui a mais antiga representação artística da síndrome de Down conhecida em todo o mundo. No rosto e nas mãos, o anjo ajoelhado à esquerda da Virgem Maria apresenta traços característicos de trissomia 21, de acordo com artigos publicados em prestigiadas revistas académicas, como o Journal of Medical Genetics ou o British Medical Journal.
A síndrome de Down, como é sabido, foi descrita cientificamente por John Langdon Haydon Down em 1866. Contudo, o facto de a sua primeira representação em todo o mundo ter sido feita através da arte, ademais num quadro da Natividade, é algo tão intrigante quanto fascinante, para crentes ou não crentes.
Hugo van der Goes
Tríptico Portinari
1475-76
Actualmente na Galleria degli Uffizi, em Florença, o Tríptico Portinari, pintado em 1475-76, é uma das mais belas representações da Natividade que o século XV produziu.
O seu patrono, Tommaso Portinari, viveu e trabalhou em Bruges durante mais de quarenta anos, como agente da casa bancária da família Medici. O quadro destinava-se ao altar da igreja do Hospital de Santa Maria Nuova, em Florença, que fora construído em 1288 por um dos antepassados de Tommaso, Folco Portinari, pai da Beatriz amada e cantada nos versos de Dante.
Na tela a óleo, de grandes dimensões (253 cm x 304 cm), estão representados Tommaso e a sua mulher, Maria di Francesco Baroncelli, acompanhados dos três filhos: Antonio, Pigello e Margarita.
A composição é densa e complexa. Nela vemos ao centro três pastores em adoração ao Menino, o qual, ao contrário das representações convencionais, não repousa num berço ou na manjedoura, mas está deitado no chão, cercado por uma auréola de raios resplandecentes. Diz-se que este modo de figuração se inspira no relato das visões místicas de Birgitta Birgersdotter, Santa Brígida, padroeira da Suécia e uma das padroeiras da Europa, da nossa Europa.
Além dos pastores, da Virgem e de Jesus, vemos Santo António, São Tomás, Maria Madalena, Santa Margarida. E vemos os Reis Magos a caminho de Belém e também muitos anjos com vestes de várias cores, cada qual com um significado preciso.
No Tríptico Portinari existem dezenas de alusões simbólicas, como a das flores aos pés da Virgem: lírios escarlates, íris, cravos brancos e roxos, alguns dos quais colocados num vaso de majólica, do tipo albarello, usado nas farmácias dos hospitais, pois era importante lembrar que aquela pintura se destinava à capela de um hospital, o mais antigo de Florença, fundado no século XIII, ainda hoje em funcionamento.
Notícias recentes dão conta de que em Santa Maria Nuova, o hospital que já albergou esta assombrosa pintura, foram abertos há dias novos postos para despistagem e tratamento da covid-19, a pandemia que nos flagelou neste ano que agora termina.
Talvez mais espantoso do que isso é sabermos hoje, graças à descoberta de um historiador belga do século XIX, que o autor desta tela, o flamengo Hugo van der Goes, viveu atormentado pela depressão e chegou mesmo a tentar o suicídio. Segundo os relatos dos médicos da época, Van der Goes sofria de uma ansiedade profunda por causa da sua obra, pois sentia não ter o talento nem o tempo necessários para igualar as pinturas dos grandes mestres.
Num tempo, como o nosso, em que vivemos cada instante sob o espectro da loucura, devorados pela ansiosa incerteza sobre como será o futuro, talvez seja uma lição, uma reconfortante lição, sabermos que também o genial criador do Tríptico Portinari padeceu o sobressalto da dúvida e da angústia, mas foi capaz de produzir uma das mais belas representações da Natividade - do seu e de todos os séculos.
Orazio Gentileschi
Repouso na Fuga para o Egipto
1615-1621
Por questões de género, e de génio, o nome de Artemisia Gentileschi (agora objecto de uma grande retrospectiva na National Gallery, de Londres) é hoje muito mais conhecido do que o do seu pai.
Ainda assim, Orazio Gentileschi tem o devido realce na história da pintura, que começou por cultivar em Roma e depois em Génova, que aprimorou por influência do grande Caravaggio, que desenvolveu em Paris e em Londres, onde morreu em 1639.
A marca de Caravaggio detecta-se, desde logo, num dos seus quadros mais radiosos, Anunciação, um óleo de 1623 do ciclo da Natividade, onde é flagrante a semelhança com uma pintura do seu mestre, A Morte da Virgem, de 1606. Poderá parecer estranho que, para retratar um dos acontecimentos primordiais e mais belos da vida da Virgem, a anunciação do anjo, Orazio tenha escolhido uma pintura alusiva à sua morte, mas essa estranheza desvanece-se se pensarmos que também a imagem de Jesus-criança enfaixada em panos, propagada pela tradição dos ícones, contém uma alusão antecipada à hora da sua morte. Nascimento e morte, sinais de um tempo circular, em eterno retorno.
Outro quadro deveras espantoso de Orazio Gentileschi, ainda que menos conhecido, mostra a Sagrada Família em repouso durante a fuga para o Egipto. Num plano mais recuado, as nuvens do céu. De seguida, um muro a ameaçar ruína, de onde surge a cabeça de um burro, enquadra José, extenuado, de cabeça tomada para trás, e Maria, também esgotada, prostrada no chão, a amamentar o filho numa posição pouco habitual.
Num ano de tantos cansaços, em que o desalento tomou conta de nós mais vezes do que a conta, lembrei-me deste quadro, pintado em 1615-1621 e actualmente na Birmingham Art Gallery (há outra versão no Museu do Louvre).
Porque o Natal é tempo de repouso - bem o merecemos! Mas também para que saibamos que, por maiores que sejam o cansaço e o desalento, sempre triunfará a esperança - e, com ela, o advento de um novo ano.
Bom Natal, Festas Felizes.
Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.