Pelo crivo de Michiko Kakutani passaram muitos livros e entre os que não desfez ainda não tinham chegado às livrarias estão alguns dos grandes romancistas das últimas décadas: David Foster Wallace, George Saunders, Jonathan Franzen, Ian McEwan, Martin Amis ou Zadie Smith..Antes de ganhar este poder de fazer e desfazer escritores, Kakutani foi jornalista no The Washington Post, na Time e no The New York Times. Aqui, em 1983 e até há menos de um ano, dedicou-se à crítica literária e a colecionar inimigos e ódios..Foi um alívio para o mundo editorial o fim da sua voz escrita, tendo neste ano passado para o outro lado ao publicar um ensaio sobre a era Trump: A Morte da Verdade. Uma análise cáustica sobre a nova América pós-Obama..A ex-crítica literária aceitou dar uma entrevista ao DN a propósito deste seu trabalho, mesmo que tivesse imposto como condição só responder a cinco perguntas. Assim foi!.Todos os livros têm uma razão de ser.A Morte da Verdade só podia ser escrito neste tempo político?.Eu escrevi A Morte da Verdade em resposta ao ataque aos factos, razão e veracidade cometido pelo candidato Trump e pelo presidente Trump e a sua administração. Mas tais desenvolvimentos alarmantes dificilmente se limitam aos Estados Unidos. As mentiras e os "factos alternativos" desempenharam um papel significativo no referendo do Brexit; nas campanhas para eleições recentes em todo o mundo, muitos países foram inundados por uma enxurrada de desinformação russa; e a propaganda fascista e de extrema-direita tem proliferado em toda a internet. A Morte da Verdade explora as consequências preocupantes deste ataque à verdade para as democracias liberais. O livro examina também as dinâmicas sociais e políticas que alimentaram esse desenvolvimento, incluindo a crescente polarização da política acelerada por bolhas de filtro na internet, o fim da verdade objetiva como um conceito filosófico (graças, em parte, ao pós-modernismo e ao relativismo moral), a indefinição de fronteiras entre política e entretenimento, e a sobrecarga de dados criada pela Internet, que permite que as pessoas selecionem a informação que ratifique as suas crenças preexistentes..Escrever A Morte da Verdade durante a "tempestade Trump" não alterou o seu exame à realidade vivida nos EUA?.Durante a sua campanha e a sua presidência, Trump tentou impor a sua própria realidade à América e ao mundo - seja a falsa alegação de que teve a maior multidão de todos os tempos na sua investidura, ou a insistência de que ele e a sua campanha não estiveram de conluio com a Rússia, ou a afirmação de que tornou a América grandiosa novamente. Trump denuncia a imprensa como fabricante de "notícias falsas" quando é a sua administração que promove falsas narrativas e mentiras descaradas. Ele chegou a declarar que "o que vocês estão a ver e o que vocês estão a ler não é o que está a acontecer". Isto é perigoso e orwelliano - uma tentativa demagógica de sugerir que Trump é o único árbitro da realidade, ecoando as palavras arrepiantes do emissário do Big Brother em 1984, que declara: "O que quer que seja que o Partido afirme ser verdade é a verdade. É impossível ver a realidade exceto através dos olhos do Partido.".Na conferência de imprensa no rescaldo das intercalares viu-se Trump a provocar os jornalistas. Que jornalismo vai sobreviver a este mandato?.Tem havido uma impressionante produção de jornalismo de investigação feito por jornalistas de inúmeros meios de comunicação como The New York Times, The Washington Post, The New Yorker, NBC e CNN. Os jornalistas estão a investigar os laços financeiros da administração Trump e da Organização Trump com governos estrangeiros. Eles estão a trabalhar todos os dias para descobrir o papel desempenhado pela Rússia e o dinheiro obscuro nas eleições de 2016. E têm vasculhado registos judiciais e financeiros para desvendar os conflitos de interesse generalizados dentro da administração Trump. Na verdade, a imprensa e o poder judicial independente estão entre as poucas instituições que obrigam os políticos a prestar contas no atual clima de política tribal e partidária..Diz que Trump se define a si próprio através das pessoas e instituições que ataca. Além do legado de Obama, o que será destruído na história da América?.Além de tentar destruir as especificidades do legado do presidente Obama em questões cruciais como a saúde, a reforma da justiça e as alterações climáticas, Trump tem atacado os ideais fundamentais que caracterizaram quase dois séculos e meio da democracia americana - da promessa de liberdade, igualdade e liberdade de religião ao acolhimento de imigrantes e à separação de poderes que protegem a Constituição. Ele atacou opositores políticos e jornalistas chamando-lhes "inimigos do povo", e, ao atacar continuamente a imprensa, o poder judicial, os serviços de informação e as agências governamentais que não cumprem suas ordens, ele enfraquece a fé nas próprias instituições que defendem a democracia..A democracia americana recuperará de uma hipotética segunda administração Trump?.Espero que não haja um segundo mandato de Trump. Mas, mesmo que ele seja um presidente de mandato único, o país levará muito tempo a recuperar dos danos que ele causou. Como mencionei acima, Trump subverteu as instituições democráticas essenciais e a confiança pública no governo com as suas mentiras incessantes, a disseminação de teorias de conspiração e os ataques a qualquer um que o questione ou que se lhe oponha. Ele ajudou a popularizar o fanatismo e o ódio da direita radical e inflamou as divisões raciais e políticas. Entretanto, ele diminuiu o estatuto dos Estados Unidos no mundo e sabotou os ideais democráticos que os Estados Unidos, por mais imperfeitos que fossem, representavam. Ele elogiou ditadores como Vladimir Putin e Kim Jong-un, enquanto provocava atritos com aliados como a Alemanha, o Canadá e a França. Ele escarneceu de alianças multilaterais como a NATO e retirou os Estados Unidos do acordo climático de Paris. As consequências da sua presidência tóxica serão sentidas por muitos anos - talvez décadas - tanto a nível interno como externo..A Morte da Verdade - A Falsidade na Era de Trump.Michiko Kakutani.Editorial Presença, 168 páginas