Escuteiro e aluno de 19 a matemática: Bruno de Carvalho antes do Sporting
Bruno de Carvalho esgota os adjetivos: populista, manipulador, intenso, abrasivo, obstinado, perigoso, leal, irascível, obsessivo, "louco".
Aos 46 anos, este homem, aclamado e destituído do cargo de presidente do Sporting em apenas quatro meses, agora detido para interrogatório - volta nesta quarta-feira ao tribunal do Barreiro para ser ouvido pelo juiz - sob pesada suspeita, convoca amigos e inimigos desde o primeiro dia.
Em 2011, desconhecido da maioria dos sócios, apresentava-se pela primeira vez a eleições. Porém, já amigos e adversários, em declarações ao DN, coincidiam num ponto - "o rapaz é de fibra".
Parecia ser, de facto. Aos 9 anos fugia à mãe, funcionária do gabinete de Pinto Balsemão na Assembleia da República e na sala vazia do plenário improvisava discursos inflamados para uma plateia de sportinguistas imaginada. Aos deputados que o apanhavam em flagrante e elogiavam o rasgo e previam uma carreira política respondia, messiânico, que o esperava o Sporting.
Aos 20 anos e ao longo de 20 dias, assentava arraiais diante da Porta 10 A do Estádio José de Alvalade, reivindicando uma homenagem do clube ao avô, o escritor Eduardo de Azevedo, autor de A História e Vida do Sporting Clube de Portugal. Venceu. Impressionado com a determinação, Sousa Cintra aceitaria receber o rapaz e fazer a homenagem.
Aos 39 anos, desconhecido e contra uma maioria de pesos-pesados concentrada noutras candidaturas, precisaria apenas de duas semanas para baralhar os dados e disparar nas sondagens, que o davam como um dos dois favoritos às eleições de 2011. Perderia para Godinho Lopes. Por um triz.
Aos 41 anos tornava-se o 42.º presidente do Sporting, cumprindo o desígnio sonhado desde miúdo, dando início a um trajeto de cinco anos que, apesar de vitorioso em várias modalidades, terminaria em tragédia - o ataque de Alcochete, a rescisão de atletas essenciais à equipa, a desvalorização de ativos, a queda em bolsa das ações da Sporting SAD, o desmoronamento da estrutura familiar. Tudo isto com ele barricado no cargo.
Os primeiros sinais foram dados em posts impetuosos no Facebook, mas a grande mudança aconteceu a partir da assembleia geral de fevereiro - é a opinião coincidente de alguns dos colaboradores mais próximos. Em fevereiro de 2018, Bruno de Carvalho prometera que se demitiria caso não obtivesse da assembleia geral pelo menos 75% de votos favoráveis à alteração dos estatutos e ao novo regulamento disciplinar. Cerca de 6400 sócios do Sporting não deixaram margem para dúvidas, expressando-lhe inequívoco apoio, com 87,3% e 87,8% dos votos, respetivamente. A votação pela continuidade dos órgãos sociais atingiu os 89,55%. Vitória estrondosa.
A um pavilhão rendido, o presidente prometia "paixão, compromisso e glória". O discurso populista fechou com um ataque aos media e o apelo ao boicote a jornais e televisões. "Não comprem mais jornais, não vejam mais televisões portuguesas a não ser a Sporting TV e os nossos comentadores que abandonem aqueles programas vergonhosos de paineleiros e cartilheiros." Destas palavras à tentativa de agressão aos jornalistas presentes foi um passo. Curto.
Ninguém imaginava que quatro meses depois, de novo em assembleia geral, o orador aclamado fosse destituído da presidência do clube.
Muitos se perguntam agora como foi possível deixar Bruno de Carvalho nesta escalada. "O presidente chegava e dizia isto vai ser assim. E era ponto final." Por vezes, "fingia que ouvia, mas não passava disso mesmo", comentam, em uníssono, alguns dos colaboradores.
A verdade é que nenhum deles se demitiu. Houve até quem aceitasse assumir funções já depois de consumado o ataque ao centro de estágio. Foi o caso de Fernando Correia, sócio 211, diretor do jornal do Sporting durante 18 anos e o mandato de seis presidentes. "Aceitei ser o porta-voz da SAD, fi-lo pelo Sporting, mas essa foi uma imensa asneira da qual me arrependi", refere agora, referindo-se a Bruno de Carvalho como "alguém instável, muitas vezes descontrolado". Alguém com resposta pronta agressiva e sem meia-medida. "Labrego, trolha e aldrabão", assim etiquetou o presidente do Sporting de Braga.
Francisco Amaral Leitão, o amigo que melhor e há mais tempo o conhece, "não reconhece o Bruno irascível, o Bruno mandão". Explica: "As pessoas que o acham mandão sabem muito bem que ele estuda os dossiês melhor do que os outros, prepara-se melhor do que os outros, apresenta melhores argumentos."
Fala a amizade forjada nos bancos do liceu Maria Amália, imaculada, apesar das diferenças clubísticas (Francisco é benfiquista): "Sei que há quem jure a pés juntos que ele é o mandante do ataque em Alcochete. Pois eu sou capaz de jurar a pés juntos que ele não tem nada que ver com o que ali se passou."
Apanhado de surpresa pela detenção do amigo, ainda na semana passada tinham combinado um almoço para breve. "Não falei com ele desde que foi detido, mas quero fazê-lo ainda hoje [ontem], nem que seja por sms, porque imagino que não esteja a ser nada fácil." Avisa, porém, que "é um erro pensar-se num Bruno derrotado. Esse Bruno não existe". E lembra a presunção de inocência.
"Não, nunca irei perguntar-lhe se está ou não inocente. Sei que está." Francisco antecipa a pergunta. "Vocês só conhecem uma fatia da personalidade do Bruno e julgam que o conhecem todo. Não, ele tem um lado humano muito interessante." Quer "na solidariedade com os amigos" ou "na dedicação incondicional à família, sobretudo às filhas". Lamenta. "A dedicação ao sonho de sempre fez sofrer toda a família", provocou a derrocada, também, da estrutura familiar, nomeadamente do terceiro casamento, com Joana Ornelas, uma funcionária do clube de quem tem uma filha, celebrado em festa anunciada aos quatro ventos.
Francisco não encontra explicação para "certos posts no Facebook" e, admite, "as coisas podiam ter sido feitas de outra maneira". "Nem sempre concordamos a cem por cento e durante estes anos, por razões profissionais, perdemos algum contacto. Mas torço muito pelo Bruno e por mim ficava lá 30 anos."
Mantém o retrato traçado ao DN, há sete anos. "O Bruno é determinado, obstinado, muito inteligente e trabalhador, sempre ciente do que quer e para onde vai. Não conheço ninguém mais tenaz."
Bruno Miguel Azevedo Gaspar de Carvalho nasceu em Moçambique a 8 de fevereiro de 1972. Com o curso superior de Gestão (Instituto Superior de Gestão) e o mestrado de Gestão do Desporto de Organizações Desportivas da Faculdade de Motricidade Humana e do Instituto Superior de Economia e Gestão, foi presidente da Fundação Aragão Pinto e teve negócios na área da construção e remodelação, com ligações à Rússia e Moçambique.
Em 2009, "metódico e paciente", aceitou de bom grado tomar em mãos a secção de hóquei em patins do clube como quem diz, "eu posso esperar". Dois anos depois, avançou com uma candidatura porque, disse então, "o Sporting não pode esperar mais".
Em 1975, a família deixou Moçambique. Perto dos 4 anos, Bruno de Carvalho, titular de nacionalidade portuguesa e moçambicana, chegaria a Lisboa ainda a tempo de brincar nos jardins de São Bento e visitar o palácio na companhia do tio almirante Pinheiro de Azevedo, irmão do avô e primeiro-ministro do governo provisório da altura. "Era muito pequeno, mas lembro-me dessa fase, uma fase muito conturbada politicamente, e eu tive uma grande ligação a esse tio-avô", contou em 2011.
Dos tempos da infância e da escola preparatória Marquesa de Alorna guarda a imagem de "miúdo irrequieto", ouvinte espantado das façanhas de Pireza e Mourão, marcos da linha avançada da equipa nos anos 30, relatos entusiasmados do pai: "Quando o meu pai me dizia que o Sporting tinha sido campeão sete vezes em oito anos eu ficava fascinado, o que eu gostava de assistir a uma coisa assim." Ainda criança, começou a colecionar, já obsessivo, "tudo o que dizia respeito ao Sporting". Aos 14 anos (1986), sócio do clube, morava num apartamento em Telheiras e, no quarto com vista para o Estádio José de Alvalade "não havia um único pormenor que não fosse alusivo ao Sporting", lembrava o benfiquista Francisco. O candidato confessava: "É verdade, era um quarto verde de cima a baixo, com muitos cartazes e cachecóis, que eu nunca fui de deixar nada pela metade." Teve uma adolescência "preenchida, despreocupada e feliz". Foi escuteiro dos 10 aos 14 anos, jogador de râguebi dos 14 aos 16 e campeão regional de luta livre, um ano mais tarde.
Na escola secundária Maria Amália Vaz de Carvalho, e ao longo dos cinco anos de escolaridade obrigatória, "o espírito de liderança invulgar" do rapaz deu nas vistas. "Sempre muito extrovertido e popular, com grande estima, mais determinado e mais teimoso do que qualquer outro, aluno de 18 e 19, sobretudo a Matemática, Geografia e Inglês", descreveu o amigo.
Em meados dos anos 80 surgiram em Portugal as primeiras claques organizadas e o movimento entusiasmou Bruno de Carvalho. Aderiu em 1985 à Juventude Leonina, a principal claque de apoio à equipa, fundada pelos filhos do ex-presidente João Rocha. Durante cinco anos, "vivi na claque tempos fantásticos, com a claque assisti a momentos que não posso esquecer, como aquele dia mágico dos 7-1 ao Benfica". Em 1990, foi para a Torcida Verde: "A experiência de viver os jogos com as claques foi determinante para o conhecimento real do clube como sócio e adepto", contava o então candidato. Contacto determinante, também, para montar a máquina de propaganda e de apoio, fortíssima, nas redes sociais e nos sites ligados ao Sporting, nos quais Bruno de Carvalho angariava avanço diário em relação aos adversários.
O interesse pelo futebol e ambição de fazer carreira no dirigismo desportivo, objetivo traçado em criança, levou-o a estudar a modalidade. Em meados da década de 2000, frequentou o curso de Treinador da Associação de Lisboa, e, mais tarde, o Curso de Treinador da UEFA. "Fiz esses cursos a pensar no Sporting e no benefício que esses conhecimentos podiam trazer-me, a mim, e ao clube, um dia mais tarde. Mas são mais-valias importantes para o meu trabalho na fundação que presido, criada a pensar nas crianças e nos jovens desfavorecidos e deficientes."
Começou a trabalhar cedo. Criou a Bruno Carvalho, Lda., uma empresa do setor de construção e remodelação que vendeu em 2009 para fundar, na mesma área, a Soluções Atelier. "Não tenho segredos nem medo de nada", diz aos que o acusam de uma vida empresarial menos transparente. E esclarece quem o julga "um perigo para o clube, um aventureiro desconhecido". "Não tenho grandes defeitos nem especiais virtudes; sou sensato, colaborante e leal. Na mentira e na traição, intransigente. Não perdoo." Francisco, o amigo, confirma.