Stereossauro, nome de Tiago Norte como DJ e produtor musical, lembra-se bem daquela primeira vez em que tocou Verdes Anos, de Carlos Paredes, ao vivo. Foi há cerca de oito anos, depois de um dia ter estado a conduzir com essa música em loop na cabeça e, ao chegar a casa, a ter produzido.."Eram quatro da manhã numa rave. A seguir vinha um DJ techno e aquela era a última música que eu ia tocar. Assumidamente, eu estava: 'Vou pôr isto e vai matar a pista. Ninguém vai gostar mas whatever, é a minha última música.' Foi um grande momento. Não estava nada à espera. Com o passar dos anos a versão foi ficando mais popular e, hoje em dia, o público canta a melodia que eu estou a fazer. Muitas vezes o [DJ] Ride [com quem há muito forma a dupla de scratch Beatbombers] está ao meu lado, baixa o volume, e ouve-se o público a cantar. Nem tem letra e eles cantam", diz ao DN..Mesmo sem que ele o soubesse, Verdes Anos abria um caminho que agora veio ter ao Bairro da Ponte, nome do último disco de Stereossauro, editado no início do mês. Aquele é um bairro onde o fado encontra o hip hop ou a eletrónica e onde samples de Amália a cantar É da Torre mais Alta se misturam com a voz de Camané a cantar versos de Capicua. É justamente assim que abre o disco, com Flor de Maracujá..Ana Moura, Gisela João, Carlos do Carmo ou o guitarrista Ricardo Gordo encontram-se neste bairro com o mundo do hip hop de Ace, NBC, Nerve, Capicua, Papillon, Sr. Preto (Chullage) e Slow J. Aqui também cabem Dino D'Santiago, Paulo de Carvalho, Rui Reininho ou The Legendary Tigerman. Cada um foi chegando e tomando o seu lugar o disco que será apresentado dia 28 no LUX Frágil..Na base de tudo isto está, ainda, Carlos Paredes. Quando a Valentim de Carvalho lhe propôs registar a sua versão de Verdes Anos, que levou também à final do Festival da Eurovisão em 2018, Stereossauro devolveu-lhes outra pergunta: "E se fizéssemos um disco a acompanhar o Verdes Anos?".A editora deu-lhe livre acesso aos seus arquivos e ele mergulhou neles para ali encontrar o que quisesse entre toda a obra de Amália. "Se tivesse feito essa pergunta há sete anos se calhar não tinha tido a mesma resposta. É um processo longo.".Depois da recolha nos arquivos, Stereossauro conta que levou para casa "20 vezes mais do que precisava". "Levei imensas pistas que depois tive de separar, organizar. Havia temas inéditos, havia gravações em que se ouvia as vozes deles em estúdio, uma em que Amália põe os guitarristas a cantar. Sentes-te como se estivesses ali no meio.".O encontro com o fado não era óbvio no seu percurso. "Terá sido pelos 20 anos, quando comecei a produzir instrumentais de hip hop. Com a pesquisa dos samples comecei a interessar-me mais pelo fado." Na casa em que cresceu praticamente não se ouvia fado. "Não havia muito essa tradição." Antes de começar a sua pesquisa propriamente dita, que durou anos, achava que só havia dois temas no fado: "Desgosto amoroso ou desgosto amoroso." Descobriu depois que havia bem mais do que isso..Pedimos-lhe que descreva esse encontro com a música portuguesa. "É daquelas coisas que é um bocado cliché, mas o fado não se explica. Realmente há ali qualquer coisa que eu acho que todos nós sentimos, uma ligação de pertença muito forte. Identificamo-nos também quando ouvimos certas músicas da Amália, como a guitarra do Carlos Paredes, parece que é uma tradução da portugalidade numa mão-cheia de notas. É uma coisa que se sente.".A maioria dos cúmplices deste disco são pessoas com quem Stereossauro já tinha trabalhado. Há exceções, "artistas que gravitaram para o disco", como Ana Moura ou Carlos do Carmo. Conheceu a fadista quando esta lhe deu os parabéns pela atuação na final da Eurovisão. "Aproveitei logo a deixa", recorda..Era preciso ainda uma música, que viria a ser Depressa demais, onde Ana Moura encontra DJ Ride, com letra escrita pelo próprio Stereossauro. "A letra é especial. É sobre a minha mãe, que morreu quando eu tinha uns 20 anos. Era um assunto que eu tinha fechado numa gaveta e não fazia intenções de ir lá outra vez. Tinha de ser uma letra com uma carga emotiva grande. Não vais entregar qualquer coisa à Ana Moura. Tinha de ser um assunto importante. Percebi que para entregar algo com significado tinha de escavar dentro", conta..O encontro com Carlos do Carmo foi ainda mais inesperado. Stereossauro entregou a música que Camané interpretaria ao manager do fadista, Becas, como é conhecido no meio. Esperou por uma resposta, e ela chegou: "O Camané gostou muito e o meu pai também, e quer entrar no teu disco." Tiago Norte ficou desconcertado: "O teu pai? Quem é o teu pai?" Ora, o pai de Becas é Carlos do Carmo..Stereossauro resolveu pegar num tema do reportório de Carlos do Carmo, Cacilheiro. "Fiz uma versão nova, uma coisa mais latino-americana." Pelo meio, convocou a guitarra de Legendary Tigerman (Paulo Furtado), avisando-o de que não tinha garantias de que a música seria gravada ou que Carlos do Carmo a aprovaria.."Estava à espera de um 'não' redondo. Pensei: 'Ele vai detestar isto.'" Não foi o que aconteceu. Becas ligou-lhe: "Ele adorou e quer ir para estúdio gravar.".Quando Carlos do Carmo chegou ao estúdio, Stereossauro recorda que "ele começou a falar e toda a gente automaticamente ficou a ouvir. Estávamos a aprender com quem de direito, com a pessoa que te pode dizer o que devia ou não ser o fado. Uma das coisas que me contou foi que esta música originalmente era uma bossa nova do Paulo de Carvalho que nunca chegou a ser gravada assim. Foi adaptada para fado para o Carlos do Carmo. E o que o convenceu foi eu ter levado de certa maneira a música para aquilo que tinha sido a sua origem: uma cena sul-americana. Sem saber como eu fui lá ter outra vez"..Esta é uma das histórias do Bairro da Ponte. Para o seu criador, "o bairro é o teu lugar, a tua pertença, o que te identifica. É a tua identidade. Essa é uma ideia muito forte tanto no hip hop como no fado".