"Não pode significar usar profissão para combater leis de que discordo"
Uma farmacêutica hospitalar recusa entregar os medicamentos requeridos por um médico porque se destinam a efetuar uma interrupção de gravidez (IG); um enfermeiro recusa "tirar sangue" a uma mulher que vai a uma consulta de IG; um médico recusa fazer-lhe uma ecografia para confirmar a gravidez e datá-la.
Estes casos, ocorridos no Serviço Nacional de saúde (SNS), e reportados pelo DN na investigação que o jornal tem, desde fevereiro, vindo a publicar sobre o acesso ao aborto legal, configuram recusas legítimas baseadas no direito dos profissionais de saúde à objeção de consciência?
E se a recusa nada tiver a ver com interrupção de gravidez e se aplicar, por exemplo, a uma transfusão de sangue? É admissível como objeção de consciência?
Mais: poderá admitir-se que todos os profissionais de um sistema de saúde público se declarem objetores a um determinado cuidado? E se, não sendo todos, forem tantos que esse cuidado de saúde legalmente assegurado se torna quase inacessível ou de acesso inaceitavelmente árduo? Onde se traça a fronteira? Como se resolve?
Por estranho que possa parecer, não há, quase 40 anos após a objeção de consciência (OC) fazer a sua estreia num diploma legal sobre cuidados de saúde - a chamada "primeira Lei do Aborto", que em maio de 1984 excecionou de criminalização a interrupção de gravidez em determinadas circunstâncias -, uma resposta clara; depende de a quem se pergunta.
Pode nem haver resposta - foi o caso com o Ministério da saúde e com a Ordem dos Médicos. Questionados desde março sobre a matéria, nunca deram troco ao jornal. Ou a resposta ser perplexidade, como sucedeu com a administradora hospitalar e ex-ministra da saúde Marta Temido: "Desconhecia existirem situações como as descritas." Sublinhando nunca ter tido, "em todos os anos de administradora hospitalar, um problema com objeção de consciência, uma queixa", admite no entanto que a OC é "uma realidade pouco estudada e pouco aprofundada".
Tanto assim é que, apesar da sua vasta experiência no setor da saúde, que tutelou de 2018 a 2022, se espantou com todos os exemplos de objeção de consciência comunicados pelo jornal e, sobretudo, com a existência de profissionais de saúde objetores a transfusões. Facto confirmado ao DN pela Ordem dos Enfermeiros, que, como a dos Farmacêuticos, exige aos profissionais nela inscritos que lhe comuniquem formalmente as declarações de objeção (a Ordem dos Médicos desde 2016 deixou cair essa exigência): "Atualmente existem 10 enfermeiros registados como sendo objetores de consciência no âmbito da transfusão de sangue e hemoderivados."
Uma objeção de que também o jurista André Dias Pereira, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, membro de várias organizações nacionais e internacionais de Bioética (é vice-presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida/CNECV, o órgão independente de consulta do Estado), nunca ouvira falar. E que considera não fazer sentido: "O direito à recusa de transfusão é do doente. Profissionais de saúde não podem objetar a uma transfusão necessária. Se há enfermeiros ou médicos que são Testemunhas de Jeová [congregação cristã que recusa as transfusões] escolham especialidades em que não haja transfusões."
A posição de Dias Pereira não é no entanto unânime entre os bioeticistas; Helena Pereira de Melo e Rui Nunes, ela jurista e ele médico (e membro do CNECV), discordam em absoluto. "A objeção de consciência pode aplicar-se a qualquer ato médico", diz o segundo. "Um objetor pode objetar a tudo, a objeção de consciência é ato a ato."
E não pode, argumenta Helena Pereira de Melo, "ser sujeita a definição. Não posso dizer que reconheço a liberdade de consciência, pensamento e religião de um profissional de saúde e não lhe reconhecer o direito de objetar a um determinado cuidado."
A jurista aplica tal princípio à colheita de sangue para análise: "As razões são individuais; a pessoa pode dizer "não vou colher porque é contra os meus princípios éticos" e pode não ter nada a ver com a interrupção de gravidez." Nunca se pode perder de vista, frisa esta professora da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, "estarem em causa um direito e uma liberdade fundamentais".
Na verdade, contrapõe ainda outro bioeticista - o psicólogo Miguel Ricou, membro do CNECV e coautor de dois estudos recentes sobre objeção de consciência -, estão em causa dois direitos conflituantes, o do profissional às suas convicções e o do cidadão que deseja aceder a um determinado cuidado garantido pelo SNS.
"É preciso salvaguardar todos os valores envolvidos. Não se pode simplesmente dizer "têm direito à objeção" e pronto, como se fosse um direito inalienável e indiscutível, que está acima de tudo - não está. Não se pode permitir que ponha em causa os direitos das outras pessoas", opina Ricou. "O que legitima a possibilidade da objeção é a existência de valores que são controversos na sociedade. Porém é preciso não esquecer que os profissionais de saúde trabalham para as pessoas, não para si próprios."
Desde logo, para Ricou, a ideia de uma OC "caso a caso" é impensável: "A declaração de objeção tem de ser prévia, os objetores têm de estar inscritos, por duas razões: para as pessoas não serem confrontadas com um objetor - por uma questão de tempo, de custos, e de dignidade -, e para organização dos serviços. E a OC tem de se referir a um ato muito específico. No caso da IG, por exemplo, é ao abortamento, não pode ter a ver com exames preparatórios, etc."
De acordo com o psicólogo na rejeição de uma visão hiper-liberal da OC, outra especialista em Bioética, a enfermeira Lucília Nunes, presidente do Conselho Jurisdicional da respetiva Ordem de 2004 a 2008 e ex-membro do CNECV, lembra que "a OC em saúde quando nasceu foi para proteger a liberdade e a dignidade dos profissionais, mas não a qualquer preço e de forma absoluta." E aponta o problema de base: "É uma figura que aparece em múltipla legislação, como se toda a gente soubesse o que é, quando não há nada que a defina, nem quais são as exceções".
Vamos então ao enquadramento legal que permite visões tão díspares e irreconciliáveis, e tão grande desconhecimento da realidade da respetiva aplicação, por parte de especialistas e responsáveis da área da saúde. Sendo o direito à objeção de consciência em geral - para, desde logo, o serviço militar - reconhecido na Constituição (artigo 41º, "Liberdade de consciência, de religião e de culto") e na Lei de Liberdade Religiosa (2001), está também consagrado na versão atual, de 2019, da Lei de Bases da saúde.
A qual dita, na base 28, artigo 4º: "Os profissionais de saúde têm o direito e o dever de, inseridos em carreiras profissionais, exercer a sua atividade de acordo com a legis artis e com as regras deontológicas, devendo respeitar os direitos da pessoa a quem prestam cuidados, mas podendo exercer a objeção de consciência, nos termos da lei".
Ora em termos de leis respeitantes à saúde a OC apenas é admitida nos diplomas relativos a interrupção de gravidez, à procriação assistida e à morte medicamente assistida/eutanásia. Nestes, exige-se, como preconiza Ricou, que os objetores se identifiquem como tal; no caso da IG e da eutanásia essa declaração é escrita e tem de ser entregue à hierarquia nos estabelecimentos nos quais trabalham.
Ainda no que respeita à IG até às 10 semanas por vontade exclusiva da mulher, os objetores estão interditos pela Lei 16/2007 de 17 de abril de participar na chamada "consulta prévia", assim como no acompanhamento que possa existir durante o "período de reflexão".
Não há, "nos termos da lei", mais especificações sobre OC. Ou seja, nada se estabelece sobre a que atos em concreto, em relação com os cuidados em causa, se pode aplicar, e a quais, se alguns, não pode. Nem mais legislação ou regulamento que elucide sobre aplicação e limites da objeção de consciência. Não há sequer uma decisão judicial nacional, uma deliberação do regulador - a Entidade Reguladora da Saúde. Nem tão-pouco um parecer do CNECV; nada.
O que há são variadas resoluções de instâncias europeias, incidindo sobre OC no que respeita a cuidados relacionados com saúde reprodutiva. Nomeadamente, decisões do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH). As quais estipulam que o direito dos profissionais de saúde à objeção não pode prejudicar ou limitar o direito à saúde dos outros cidadãos, e que nesse conflito entre direitos o segundo deve prevalecer.
Uma delas, Pichon e Sajous contra França, tem 22 anos e diz respeito a dois farmacêuticos franceses que na respetiva farmácia recusavam vender a pílula contracetiva. Condenados pelos tribunais franceses por recusa de serviço, recorreram para o TEDH, invocando o artigo 9º ("Liberdade de pensamento, de consciência e de religião") da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. O tribunal de Estrasburgo, porém, recusou o recurso, vincando que sendo a venda de contracetivos legal e só podendo ocorrer numa farmácia, por meio de prescrição médica, os farmacêuticos não podiam dar precedência às suas convicções religiosas e impô-las a outrem como justificação para não os venderem.
Noutro acórdão muito mais recente, de 2021 (Grimmark e Steen contra a Suécia), em que estavam em causa dois obstetras impedidos de trabalhar no SNS sueco por se recusarem a fazer abortos, os juízes europeus consideraram "proporcional" o facto de a Suécia (como a Finlândia, a Bulgária e a República Checa) não reconhecer o direito à OC para a IG e só admitir, no sistema público, profissionais não objetores para esse cuidado de saúde.
Mais uma vez estiveram em causa os direitos consagrados no artigo 9º. Seguindo a prescrição contida no respetivo número dois - "A liberdade de manifestar a sua religião ou convicções, individual ou coletivamente, não pode ser objeto de outras restrições senão as que, previstas na lei, constituírem disposições necessárias, numa sociedade democrática, à segurança pública, à proteção da ordem, da saúde e moral públicas, ou à proteção dos direitos e liberdades de outrem" -, o TEDH estatuiu que a limitação da liberdade dos obstetras se justifica, uma vez que de acordo com a lei sueca um funcionário é "obrigado a desempenhar todo o tipo de trabalho que faz parte da descrição da função".
Apesar do caráter vinculativo destas decisões, a ideia com que se fica perante várias posições colhidas para este artigo, nomeadamente as das Ordens profissionais e da tutela, é de que aquelas são resolutamente ignoradas - seja por desconhecimento ou discordância.
Vejamos as normas deontológicas de médicos, enfermeiros e farmacêuticos sobre OC.
"O médico tem o direito de recusar a prática de ato da sua profissão quando tal prática entre em conflito com a sua consciência, ofendendo os seus princípios éticos, morais, religiosos, filosóficos, ideológicos ou humanitários", lê-se no Estatuto Deontológico dos Médicos, artigo 11º.
Igual latitude se encontra no dos farmacêuticos - "O Farmacêutico tem o direito de recusar a prática de ato profissional quando tal prática entre em conflito com a sua consciência e ofenda os seus princípios éticos, morais, religiosos, filosóficos, ideológicos ou humanitários."
Quanto aos enfermeiros, encontram a definição de objeção num regulamento específico da sua Ordem sobre OC, de 2017, no qual se estipula: "Considera-se objetor de consciência o enfermeiro que, por motivos de ordem filosófica, ética, moral ou religiosa, esteja convicto de que lhe não é legítimo obedecer a uma ordem concreta, por considerar que atenta contra a vida, contra a dignidade da pessoa humana ou contra o código deontológico."
O único limite para a OC nos estatutos das três ordens é o risco para a vida e saúde do paciente. Quando existir esse risco, o profissional deve, mesmo se objetor para um determinado cuidado de saúde, prosseguir com ele.
Deve então concluir-se que, no caso de o profissional considerar não existir esse risco - porque, por exemplo, há outro profissional que pode desempenhar o ato em causa, ou outro hospital/centro de saúde, mesmo se longínquo, onde o paciente se possa dirigir -, qualquer cuidado de saúde previsto na lei ou ato com ela relacionado pode ser objeto de recusa com base na objeção de consciência?
Parece que sim, atendendo aos esclarecimentos prestados ao DN. Comecemos pelo da Ordem dos Enfermeiros (OE). Quando em maio o jornal reportou a existência, no SNS, de enfermeiros que recusam tirar sangue para análise a mulheres que vão abortar ou já abortaram, assim como, no mesmo grupo profissional, de quem não aceite participar nas consultas de "seguimento" pós IG e colocar, por exemplo, dispositivos intrauterinos às mulheres que a elas comparecem, enviou à OE uma série de perguntas, nomeadamente sobre se esta considera que essas recusas estão abrangidas pela OC. A resposta foi afirmativa - "A objeção aplica-se a todos os atos que estão envolvidos naquilo que é o procedimento, antes e depois, da IVG [interrupção voluntária de gravidez]".
Portanto, se tirar sangue para análise e participar numa consulta de seguimento, ou seja de contraceção/planeamento familiar, são atos que estão "antes e depois da IG/IVG", entra tudo na OC. É o que resulta de um parecer de 2015 do conselho jurisdicional da OE.
"O direito à objeção de consciência estende-se a todos e quaisquer atos respeitantes a procedimentos ou cuidados inerentes à IVG. Os enfermeiros objetores não devem participar em consultas que se encontrem no âmbito dos procedimentos inerentes a este ato (...)", lê-se no parecer, que enumera no universo de cuidados abrangidos pela OC à IG não só aqueles que a lei interdita a objetores mas também os "seguintes". Ou seja, diz o documento, "deve considerar-se a objeção de consciência, relativamente às restantes consultas e procedimentos, a jusante do ato da IVG e que, de acordo com a lei, se enquadram no mesmo contexto."
O DN pediu a esta Ordem um esclarecimento adicional, sobre se afinal a objeção se aplica a atos ou a pessoas (na medida em que um enfermeiro que recusa colher o sangue a uma mulher que vai abortar ou colocar um dispositivo intrauterino à que abortou não objeta ao exato mesmo ato tratando-se de outra paciente) e qual nesse caso o fundamento da OC - mas a Ordem disse nada ter a acrescentar.
A Ordem dos Farmacêuticos (OF) demonstra ter uma visão idêntica à dos enfermeiros. Questionada sobre o caso, reportado pelo Expresso e pelo DN, da recusa de uma farmacêutica do Hospital da Horta (Açores) em entregar medicamentos abortivos ao auxiliar que, a pedido de um médico, os ia buscar ao dispensário do hospital (o qual recusou responder às perguntas do jornal sobre se a farmacêutica em causa se declarara formalmente, como exigido na lei, como objetora e se considera a recusa legítima), a OF informa que a profissional, apesar de estar a isso deontologicamente obrigada, não lhe comunicou essa objeção. Mas vê uma recusa nessas circunstâncias como legítima: "Os farmacêuticos têm o direito de invocar objeção de consciência desde que haja outro colega que possa assegurar a intervenção e que não coloque em causa a saúde ou a vida do doente."
Olhemos agora para a posição da OM: desde 1 de março questionada pelo DN sobre objeção na IG, e nunca tendo respondido às perguntas do jornal, colocou entretanto online, no seu site, com data de 23 de abril, um conjunto de perguntas e respostas, sob o título "FAQ - Objeção de Consciência em IVG". Trata-se, informa o bastonário Carlos Cortes, do "documento clarificador" sobre OC que, perante a insistência do DN no pedido de respostas, certificou no final de março estar a ser preparado.
Assim, à pergunta "o médico pode limitar a sua objeção de consciência em IVG a determinados atos?", a OM responde: "Pode delimitar para um ou mais atos ou para todos os procedimentos relacionados com a IVG." Não há qualquer especificação do que sejam "todos os procedimentos relacionados com a IVG". Mas se estivessem em causa apenas aqueles que a lei interdita aos objetores, mais o da interrupção propriamente dita, a resposta não seria aquela.
Parece pois dever interpretar-se a visão da OM como igual à das outras ordens - entra tudo o que o médico ache que deve entrar. Nomeadamente a ecografia de datação e as consultas de seguimento/planeamento familiar. Ou seja, tudo o que diz respeito à mulher que vai abortar ou já abortou. O que conduz à mesma pergunta colocada à OE: a objeção refere-se a um ato ou também (ou até sobretudo) às pessoas que querem cometer ou já cometeram esse ato?
É que, como admitiu ao jornal o obstetra Yuriy Schmakto, diretor do serviço da especialidade no Hospital da Horta, "há pessoas que não gostam mesmo das mulheres que abortam". Schmakto exemplificou com enfermeiros que recusam sequer entrar numa sala onde está uma dessas mulheres. Situação semelhante relatou ao DN uma enfermeira de um hospital do centro do país: "Há colegas que nem dizem boa tarde a essas mulheres."
Atitude à qual Lucília Nunes apresenta uma objeção escandalizada: "Não é por uma pessoa ter feito IG e eu não concordar com isso que vou deixar de a respeitar. Porque aí não estou a objetar ao ato mas à pessoa." Mas esta professora de Ética na Escola Superior de saúde do Instituto Politécnico de Setúbal, no qual é a responsável pelo Departamento de Enfermagem, não se pronuncia apenas quanto à falta de respeito evidenciada nas situações descritas; também discorda do entendimento que a OE transmitiu ao DN sobre um ato como o de retirar sangue para análise poder estar abrangido pela OC.
"Tirar sangue para análise a uma mulher que vai fazer IG não é um ato que concorra para a finalidade a que o enfermeiro objeta, que é a interrupção; não é um ato de interrupção. A objeção não pode ter essa abrangência, é para a IG, não para todos os atos anteriores ou posteriores. Acho um exagero recusarem tirar sangue para um controlo analítico e acho inconcebível a recusa de participar numa consulta posterior, que é uma consulta de literacia para a saúde; não vejo mesmo razão, porque o ato já foi realizado. Não se pode dizer que se pode objetar antes, durante e depois -espanta-me que haja quem defenda isso e esse parecer de 2015, que não conhecia, preocupa-me, porque é a OE que estabelece os princípios éticos da profissão."
E Lucília Nunes volta à ideia de que o que está em causa nessas recusas é uma objeção à pessoa: "As recusas de prestação de cuidados de saúde a montante e a jusante do ato a que se objeta são discriminatórias, no sentido mais puro da ideia de discriminar, separar - mas é também no sentido de serem estigmatizantes."
Pelo menos dois Supremos Tribunais europeus já se debruçaram sobre OC e o que inclui e exclui, dando razão a Lucília Nunes.
Numa decisão de maio de 2021, o Supremo italiano determinou que os profissionais de saúde objetores não podem recusar monitorizar/cuidar das mulheres que vão abortar ou que abortaram. Referindo-se particularmente aos médicos, o tribunal estatuiu que têm o direito de recusar participar nos procedimentos abortivos, sejam eles cirúrgicos ou medicamentosos, mas não o de negar assistência antes e depois, uma vez que o direito à saúde das mulheres tem de ser sempre protegido e assegurado. Em dezembro de 2014, o Supremo do Reino Unido deliberara num sentido semelhante, no caso de duas enfermeiras de um hospital escocês, objetoras de consciência para a IG, que não queriam ser obrigadas a supervisionar e apoiar outros profissionais que participassem em IG ou administrassem cuidados a pacientes que as fizessem.
Na sua análise, o tribunal fixou a interpretação da norma sobre objeção de consciência da lei que desde 1967 descriminalizou a interrupção de gravidez naquele país, e que permite aos profissionais de saúde não "participar em qualquer tratamento autorizado por esta lei em relação ao qual tenham uma objeção de consciência".
"Tratamento", para o tribunal, é "o processo de tratamento no hospital para a interrupção de gravidez"; "participar" é "tomar parte [diretamente/"hands on"] nesse processo"; o processo de IG é aquele que se inicia com a administração de medicamentos que induzem a interrupção, normalmente terminando com a expulsão do embrião ou feto, e restantes materiais, incluindo os cuidados médicos e de enfermagem diretamente relacionados com cada etapa desse processo, assim como os cuidados necessários logo a seguir. Não inclui, opinaram os juízes, os cuidados básicos de enfermagem que se seguem ao ato, e de um modo geral todos os que não eram crime antes de a lei de 1967 ser aprovada (como a lei portuguesa, a britânica exceciona da criminalização o aborto em certas circunstâncias).
O mesmo acórdão considera que a objeção de consciência de um médico tem apenas a ver com a IG propriamente dita, não podendo aplicar-se sequer à certificação, por parte de um médico, da idade gestacional da gravidez e sobre se a situação se enquadra na previsão legal. Significando que uma ecografia de datação não está abrangida.
Fará sentido: afinal, uma mulher grávida que pensa terminar a gravidez e vai submeter-se a uma ecografia pode nunca avançar para o aborto, por ter ultrapassado o prazo ou por mudar de ideias -e pode até ter uma gravidez ectópica e estar em risco de vida.
Talvez se deva então utilizar o método de precisão do Supremo britânico na análise do enquadramento legislativo português: será que, opiniões à parte, este acomoda uma visão tão absolutamente liberal e extensiva, verdadeiramente a la carte, da OC como a manifestada pelas ordens profissionais?
Marta Temido considera que não. "Creio que as ordens não têm legitimidade nem cabimento legal para fazerem essa interpretação extensiva, e que a OC só é declarável em relação à interrupção da gravidez, à procriação assistida e à eutanásia, cuidados de saúde em relação aos quais existem disposições legais que a permitem."
Baseando a sua interpretação na já citada Lei de Bases e no facto de esta remeter o reconhecimento do direito de OC para "os termos da lei", Temido não vê "enquadramento legal para declarar objeção a outros cuidados de saúde, como transfusões de sangue", duvidando igualmente da legitimidade das citadas recusas avalizadas pelas Ordens - não colher sangue para análise a quem vai fazer uma IG e não entregar uma caixa de medicamentos a um auxiliar do hospital. Nesta perspetiva, essas serão OC ilegítimas. Como, depreende-se, será ilegítima, por ilegal, qualquer OC que não tenha sido objeto de declaração prévia à hierarquia de um estabelecimento de saúde.
Precisamente, uma das perguntas enviadas ao ministério dirigido por Manuel Pizarro e à Ordem dos Médicos é sobre se reconhecem a existência de usos ilegítimos da objeção, e em caso afirmativo como os definem, e que consequências preveem - uma vez que constituirão incumprimento não justificado do dever profissional e laboral.
O jornal dava como exemplos as declarações de vários médicos, efetuadas em fevereiro ao Observador, atestando existirem objetores à IG que assim se declaram não por razões de "consciência" mas para evitar mais trabalho ou porque não acham interessante, do ponto de vista clínico, fazer abortos. O facto de estes serem motivos habituais para objeção à IG no SNS fora já exposto no trabalho científico de Miguel Areosa Feio (o qual se debruça sobre as dificuldades de acesso ao aborto legal em Portugal). Também outros estudos científicos internacionais apontam tais motivações - assim como a pressão dos pares e de direções hospitalares, que inclui a discriminação dos profissionais de saúde que fazem abortos.
Como sabido, nem ministério nem OM responderam. Já Lucília Nunes, que como professora de Ética é confrontada com questões deste tipo, não hesita: "As pessoas perguntam: "Ah, tenho macas no corredor, posso invocar a objeção de consciência?" Respondo que não, porque a invocação da objeção é um ato particular, privado, em relação a algo que a sociedade aceita no geral e é legal e correto mas o próprio não quer fazer, por razões de consciência moral. Não é objetar a trabalho."
Aqui chegados, parece incontroverso que Miguel Ricou tem razão quando diz que "falta literacia sobre este assunto". Defendendo que o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida faça um parecer sobre OC, o bioeticista apela: "É preciso refletir sobre isto, pôr os profissionais a discutir. Se calhar nunca perceberam que ao declarar objeção podem estar a prejudicar alguém." Mas, prossegue, apelar à reflexão não basta: "Tem de haver uma lei sobre objeção de consciência genérica. E organizarem-se os serviços para que as pessoas tenham, efetivamente, acesso aos cuidados de saúde previstos na lei."
É exatamente o que prescrevem resoluções do Parlamento Europeu (PE) e da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, assim como deliberações do Comité Europeu dos Direitos Sociais (outro organismo do Conselho da Europa, que por duas vezes, como o DN já reportou, condenou a Itália por dificuldades no acesso ao aborto legal devido à enorme percentagem - mais de 70% no caso dos médicos - de profissionais de saúde objetores): se admitida, a OC tem de ser regulada e monitorizada.
Um exemplo é o "Relatório Matic", resolução do PE de 2021 que urge os Estados-membros a "criar e aplicar medidas regulatórias e de implementação eficazes de modo a assegurar que a cláusula "de consciência" não (...) interfere com o direito dos cidadãos a acesso efetivo a cuidados e serviços de saúde".
Como grande parte das aludidas deliberações europeias, esta diz respeito à IG e outros cuidados de saúde reprodutiva que afetam sobretudo mulheres, frisando que "por vezes a prática nos Estados Membros permite que os médicos, e às vezes instituições como um todo, recusem providenciar cuidados médicos com base na "cláusula de consciência", levando à negação da IG (...), pondo em perigo as vidas e os direitos das mulheres (...)."
A descrição serve a Portugal como uma luva: de 2009 a novembro de 2023, nove hospitais e um centro de saúde encerraram as consultas de IG a pretexto da OC. Eram até dezembro já 14 (um terço do total com serviço de obstetrícia) os hospitais sem essa consulta. Porém a primeira contabilidade oficial de objetores no SNS só ocorreu em 2023, 16 anos após entrar em vigor a lei que impõe a declaração de OC antecipada, e na sequência da investigação do DN. Duas auditorias paralelas, da Entidade Reguladora da Saúde (ERS) e da Inspeção Geral das Atividades em Saúde (IGAS), permitiram concluir que mais de 85% dos obstetras do SNS objetam à IG por exclusiva vontade da mulher. E que - di-lo a ERS - os hospitais nem sequer efetuam a monitorização a que a estão obrigados: não exigem as declarações aos objetores. Nem a pouca regulação prevista na lei é cumprida.
Uma falta que não incomodou o ministro da saúde cessante, Manuel Pizarro. Malgrado enquanto eurodeputado ter aprovado o relatório Matic, e como governante reconhecido que as dificuldades de acesso à IG expostas pelo DN - e confirmadas pelas auditorias citadas -, se devem ao grande número de médicos objetores, o socialista, que é médico, sobre objeção de consciência não só repetiu que "tem de ser absolutamente respeitada" como aventou que poderia ser decidida "caso a caso".
Abandonando o cargo sem anunciar qualquer medida para resolver os problemas de acesso que em fevereiro garantiu se resolveriam "em semanas", e sem ter regulamentado a lei da morte medicamente assistida - outro cuidado de saúde no qual a OC se pode constituir como obstáculo -, Pizarro chegou mesmo a, em entrevista à RTP, já após conhecidas as auditorias da ERS e IGAS, declarar que haver no SNS uma lista de objetores (para a IG e, depreende-se, a eutanásia) "talvez não seja necessário".
Curiosamente, a posição do socialista Pizarro vai ao encontro da alteração à lei da IG efetuada pela maioria PSD/CDS-PP em setembro de 2015, no último dia da legislatura. Interditava-se o registo das declarações de objeção e a sua utilização para decisões administrativas, efetivamente impedindo a monitorização da OC. Tal interdição seria revogada pela maioria PS-BE-PCP-Verdes-PAN saída das eleições de 4 de outubro desse ano mas, como a auditoria da ERS demonstra, é como se estivesse em vigor.
Miguel Ricou franze o sobrolho: "Como é que se organizam serviços de modo a garantir que há acesso à saúde se não se souber quem é e quem não é objetor? Claro que tem de haver registo. Até porque se, na prática, os profissionais nem têm de se declarar objetores, o que temos é uma recusa de tratamento - que nada tem a ver com objeção e não é admissível."
Como se resolve? "Tem de passar a ser critério de admissão não se ser objetor. E só se poder declarar objeção se houver alternativa no sítio", responde o psicólogo, que no limite não rejeita solução "à sueca", de inadmissibilidade da OC.
Lucília Nunes concorda. "Primeiro está o cuidado às pessoas; não vou obrigar uma gaiata a andar 30 quilómetros até outro centro de saúde porque não lhe quero dar uma pílula do dia seguinte. Se num serviço inteiro só há objetores de consciência, alguém tem de o fazer. Ou contratam alguém, ou alguém prescinde da sua objeção."
Também o bioeticista Rui Nunes, se reconhece o direito de um objetor "objetar a tudo", não veria com maus olhos "uma norma legal que fizesse depender a objeção de consciência da continuidade atempada da assistência médica". Isto porque, diz este catedrático da Faculdade de Medicina do Porto, "não se pode pôr entraves aos direitos inalienáveis de terceiros". No que respeita à IG, defende que "todos os hospitais devem ter consulta, têm de se organizar em conformidade, os diretores de serviço não podem lavar as mãos." Admite até que "as administrações dos hospitais coloquem como condição na admissão de diretores de serviço que estes não tenham objeção de consciência a nada."
Seja como for, concorda André Dias Pereira, "as pessoas têm direito a serviços médicos, e o SNS tem o dever de assegurar equidade, com o máximo de justiça distributiva possível. Não pode haver zonas do país sem acesso."
Proclamações que soam revolucionárias quando se sabe de hospitais açorianos que há mais de uma década mandam as mulheres abortar em Lisboa. E de profissionais de saúde tão absolutamente convictos de ter o direito de impor o seu arbítrio ao da pessoa e da lei que o escrevem com todas as letras, como José Carneiro e Daniel Brito em "Os desafios do médico objetor", artigo publicado em 2023 na Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar: "Na "balança da decisão" não pode pesar mais a vontade de um doente (para um ato que não é um direito humano consagrado) do que os direitos do profissional de saúde, incluindo a sua consciência (...)".
Não se estará aqui muito longe do que o bioeticista mexicano Gustavo Ortiz-Millán descreve como uma instrumentalização do direito à OC para combate político: "Quando [em 2007] os conservadores da Cidade do México perderam a batalha da descriminalização do aborto até às 12 semanas no parlamento e no Supremo Tribunal, mantiveram a esperança de ganhar a batalha pela OC - mesmo se o direito ao aborto estava garantido na lei, queriam assegurar que, na prática, não haveria nem médicos nem outros profissionais de saúde disponíveis para o garantir."
A OC pode funcionar assim, como resume o artigo Conscience Wars in the Americas/Guerras de Consciência nas Américas (Latin American Law Review, 2020), como "um esforço para continuar a luta sobre a legitimidade do direito ao aborto". E quem diz ao aborto diz a qualquer outro cuidado de saúde considerado "controverso". Note-se por exemplo que a 29 de maio, logo após a aprovação da lei da morte medicamente assistida, o Movimento Ação Ética (MAE) disponibilizou no seu site "uma minuta para que os médicos e os restantes profissionais de saúde possam subscrever uma declaração de objeção de consciência para a prática da eutanásia e do suicídio assistido". Um claro manifesto de "resistência" e de "contagem de espingardas", ainda que um dos líderes do MAE, o constitucionalista Paulo Otero, garantisse não se tratar de "um apelo à desobediência civil".
Uma visão contra a qual se ergue Miguel Ricou: "Objeção de consciência é eu não fazer, não é impedir uma pessoa de fazer. Ser profissional de saúde não pode significar negar um tratamento que está disponível, que é garantido legalmente. Não pode ser "vou usar a minha profissão para combater uma lei com a qual não concordo". Não pode ser o aproveitamento de um buraco na lei, uma inexistência de regulação, para se fazer o que se quiser."