Um mítico ladrão da Paris de Napoleão é o mote para um filme de ação moderno. Jean-François Richet é o realizador deste conto sobre Vidocq, interpretado por Vincent Cassel, o maior ator francês da sua geração. Em Paris, Cassel falou com o DN e mostrou-se orgulhoso desta majestosa superprodução que vai estrear-se na quinta-feira nos cinemas..Vidocq era um ladrão que se reinventou como chefe da polícia parisiense. Alguma vez sentiu que se reinventou na vida? Nunca senti necessidade de me reinventar. Todas as vezes que parto para um projeto, eu e o realizador tentamos que o resultado seja diferente, novo. Nessa medida, sou um tipo sempre a abrir novas portas - às vezes pensas que consegues, outras não....Mudar completamente de rumo nunca lhe passou pela cabeça? Quando era muito jovem tive essa necessidade, quis ser outra pessoa e até desejei ir para África ajudar o próximo. Depois percebi que para mudar não é preciso ir para tão longe. Bem, a vida é o que é e resta-nos aceitar como somos. Profissionalmente, aprendi que o melhor é esforçar-me o menos possível e continuar a fazer o que fazia. Agora tenho mais prazer enquanto ator, antes sofria em demasia. Tinha aquele complexo de que para fazer arte era preciso sofrer, está a ver? Mas a vida continua dura e temos de continuar em busca do sofrimento. Agora consigo ter prazer, as pessoas esquecem-se daquilo que é mesmo importante. Antigamente, era um ator que me preparava muito, que estudava imenso, mas cada vez mais percebo que o truque é saltarmos sem medo para os papéis. E ao saltar agora com espontaneidade para as personagens percebo outro tipo de coisas... Estar livre e tirar partido disso é que conta. Ser ator é apenas instinto, tudo o que está para trás não conta..Acredita que este retrato de uma Paris do passado pode ter reflexos na Paris dos nossos dias e com tudo o que se passa em torno do ativismo e dos coletes amarelos? Estamos a falar do passado para falar do presente..Ao longo dos anos foi escolhido muitas vezes para encarnar homens com uma aura de perigo e violência. Sente que carrega essa marca? Este Vidocq não foge à regra... Todos vivemos da fama da nossa personalidade. Vamos lá: também todos fomos criados para ser bem-comportados, por isso ter feito todas essas personagens e filmes perigosos terá sido uma forma de deitar cá para fora todas as minhas frustrações. Estou certo de que uma grande parte de nós é animalesca e, se a soltarmos, acabamos por colocar em risco os outros e nós mesmos. Fazer essa coleção de homens violentos ajudou-me a libertar e a ajudar-me a amansar. De alguma forma, a representação foi uma terapia para mim, especialmente quando aceitei certos papéis por querer mesmo fazer o filme. Essas são as escolhas do coração. Antigamente, não era esse tipo de papéis que queria fazer. Houve mesmo uma altura em que olhava para trás e achava estranho. No começo nunca imaginei que iria por essa direção tão escura. Queria ser um cómico, mas depois comecei a ganhar reconhecimento, a perceber que o público gostava do meu trabalho. Aí acalmei-me, percebi que não era um perdedor e que podia viver uma vida para lá dos filmes. Antes era só o trabalho, nem tempo tinha para relações. Deixei de estar obcecado em ser um Mastroianni, um De Niro. Agora, continuo a admirar imensos atores, mas deixei de ser fã..Isso tem a ver com o poder influenciador do cinema? Os filmes só me influenciaram quando era jovem. Aí um filme poderia ser uma referência para aquilo que queria ser...Mais tarde, vêm os filhos, o divórcio, outras histórias de amor, morte de amigos e tudo o resto, ou seja, um backround que se torna mais forte que as referências do cinema. Mas quando era puto o La Dolce Vita, Touro Enraivecido, os filmes do Antonioni, fizeram-me sonhar. Agora quando os revejo fico muito nostálgico - a vida ficou mais importante do que os filmes. Se assim não fosse, tornar-me-ia num nerd, sobretudo porque esses eram filmes que acabavam por romantizar a vida real. Sou dos que acreditam que a realidade é mais importante do que a ficção, exceto quando um realizador faz poesia e apresenta em imagens aquilo que as palavras não o conseguem..Sente que hoje as pessoas já não dão tanta importância aos ídolos? Talvez não amem tanto os atores, não sei... Nem sei se ainda há alguém a sonhar com cinema. Os jovens provavelmente sonham com popstars, cantores... Os ídolos talvez estejam nas séries de televisão..A França ainda é um dos últimos bastiões do cinema, mas a força da Netflix também está a fazer-se sentir, não? Já não se pode dizer França. Há net, streaming e ponto final. Pomos um filme na Netflix e num dia sete milhões de pessoas já o viram! Neste momento, tudo mudou. Se quiseres ficar à tona, tens de abraçar essa mudança. Por exemplo, a nova nouvelle vague talvez se esteja a passar na televisão. Antes não era fã das séries, achava que tínhamos de perder muito tempo, mas agora como que se abriu uma caixa de Pandora - é cá uma liberdade! Está lá a criatividade que o cinema perdeu. Na televisão ou no streaming não há pressões nenhumas. O investimento é maior e não há restrições: podemos dizer fuck, mostrar mamas e pilas, filmar orgias e está tudo bem. No cinema, essa liberdade está perdida. O sistema mudou, já não se pode falar de fazer um filme para ganhar dinheiro. Isso é obsoleto..A dada altura foi viver para o Brasil. Começou a ver Paris e o cinema francês de uma outra forma? Saí e não saí. Paris é uma cidade maravilhosa para sair e depois estar sempre a regressar..Mas é a mesma cidade que o viu crescer? Sim. É também a cidade da revolução e agora a mesma cidade dos coletes amarelos. Nós continuamos a protestar, continuamos a querer mudar o sistema. Isso, para mim, é um orgulho. A causa dos protestantes dos coletes amarelos é uma causa maravilhosa. Eles estão a protestar contra a fundação do sistema. Não estão contra o Macron, estão contra os últimos seis ou sete governos. Governos que trabalham para o sistema dos bancos - as pessoas fartaram-se. Cada vez que abres aqui uma porta já estás a pagar uns dez euros...