Ihor Homeniuko e o murro no estômago do ministro
"Partilho da vossa angústia e indignação". Eduardo Cabrita não se poupou nas certificações de surpresa e dor face ao caso de Ihor Homeniuk, o ucraniano que morreu a 12 de março no Centro de Instalação Temporária do aeroporto de Lisboa, e de cujo homicídio qualificado estão indiciados três inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Não se poupou também nas contradições, imprecisões e anúncios vagos.
Se afirmou "haverá autores, haverá que apurá-lo. Haverá no plano administrativo da responsabilidade disciplinar, haverá coisas que estarão entre a negligência grosseira e o encobrimento gravíssimo", também achou sem relevância que o cadáver tivesse ficado mais de três horas na posse do SEF, justificando-o com as comunicações com o MP (um telefonema e um mail, este enviado três horas e 19 minutos após a declaração do óbito); justificou que aquela polícia tivesse dito ao MP e à embaixada da Ucrânia que o homem morrera de "doença súbita" e "problemas epiléticos" com a existência da declaração de óbito assinada por um médico do INEM, que diz "paragem cardiorrespiratória na sequência de crise convulsiva"; e certificou: "Não há ações orquestradas pelo SEF nem isto é o padrão de atuação do SEF ou de qualquer outra entidade pública."
Pois lamento: encobrimento, que é algo que o ministro põe a hipótese de ter ocorrido e que qualquer pessoa que esteja a seguir o caso conclui que aconteceu, é "ação orquestrada". É a existência de um conluio, de um pacto, entre várias pessoas, neste caso funcionários de uma polícia, para esconder a verdade. Não se arranja ação mais orquestrada que essa - e está longe de ser incomum nas polícias que tutela, como inúmeros casos ao longo de mais de quatro décadas provam. Portanto ou o ministro acha que pode ter havido encobrimento e portanto ação orquestrada, ou está a dar uma no cravo e outra na ferradura: quer parecer severo e indignado mas ao mesmo tempo defender a corporação, algo a que infelizmente todos os governos nos habituaram, habituando assim as polícias a que não haja consequências.
E isso é tanto mais indesculpável quando se Eduardo Cabrita só soube, como garantiu, da possibilidade de a morte de Ihor se dever a crime no dia da detenção dos três inspetores, tem todos os motivos para se sentir enganado pela polícia que tutela. Aliás, quando diz "jamais estive numa situação que mais contrariasse aquilo que são os valores fundamentais do Estado democrático" e ter recebido a notícia da detenção dos três inspetores "como um murro no estômago" de que poderá estar a falar senão da existência da tal ação orquestrada?
O ministro sabe que num local como o aeroporto de Lisboa, onde trabalham a todo o tempo pelo menos duas dezenas de inspetores sob a direção de um inspetor coordenador de turno, numa estrutura fortemente hierarquizada, não era possível morrer uma pessoa em custódia sem que o referido coordenador soubesse - e se deslocasse ao local da morte. E que não é de todo crível que esse coordenador não tratasse de perceber as circunstâncias da morte, quem tinha estado com o morto e porquê - era ver o registo das entradas e as imagens de videovigilância -, como tinha sido tratado, se fora alimentado, etc. Não é sequer admissível que não tentasse ouvir os inspetores que tinham estado com Ihor naquela manhã (agora detidos) e não avisasse os superiores: a direção de fronteiras de Lisboa (que foi demitida a 30 de março) e/ou a direção nacional. Terá sido também ao coordenador, Francisco Anjos - senão a alguém acima dele - que terá cabido a decisão de informar o MP e em que termos, assim como de não chamar a PJ nem preservar o local para possível investigação.
O que terá apurado o coordenador e o que terá sido dito à hierarquia não sabemos. Mas sabemos que o relatório que recebeu, 49 minutos após a morte, assinado por um dos dois inspetores que estavam com Ihor quando ele morreu (e que chamaram o INEM), não faz qualquer menção aos sinais de agressão que seriam depois verificados na autópsia e ao facto de o detido ter estado sem alimentos (de acordo com os testemunhos) desde as nove da manhã. E que a comunicação para o MP, enviada com seu conhecimento, fala de "doença súbita".
Sabemos também algo muito revelador: que alguém fez, a 14 de março, uma denúncia anónima à PJ na qual se contraria a versão da morte de Ihor que o SEF propalou pelo menos até 18 de março - quando comunica a ocorrência à Inspeção Geral da Administração Interna como, mais uma vez, decorrente de doença ou causas naturais. Por que existiria uma denúncia anónima para outra polícia num caso ocorrido sob custódia policial, a não ser porque o seu autor achava (ou tinha a certeza) que não adiantava fazê-la ao SEF?
De resto, porque é que a inspeção interna ao caso que Cabrita nos garantiu ter sido ordenada logo no dia 13 pela direção nacional do SEF parece não ter encontrado nenhuma suspeita de crime? Tal inspeção só poderia ouvir as mesmas testemunhas - por exemplo os seguranças da empresa Prestibel que trabalham no CIT - que à PJ contaram ter visto e ouvido as agressões e os sinais delas em Ihor, assim como chocantes comentários dos agressores - "Hoje já nem preciso de ir ao ginásio"; "Ele agora fica sossegado". Ouviu essas testemunhas? Que perguntou? Que descobriu? Que andou afinal a inspeção do SEF, que é uma polícia criminal, a fazer?
"Negligência grosseira ou encobrimento gravíssimo" - o diagnóstico do ministro parece acertado. Agora falta ter consequências; que mais uma vez, como costuma suceder neste tipo de casos, não se concentre tudo nos elementos indiciados do crime e não se feche os olhos ao resto. O resto que é o que permite que algo assim - quer a morte de Ihor se tenha devido a agressões quer à ausência de assistência e cuidados médicos (foi deixado algemado, numa sala fechada, durante umas oito horas) - suceda.
Não há como negar que se for verdade que três inspetores foram ao CIT na manhã de 12 de março agredir Ihor só o fizeram porque sabiam que podiam. E se sabiam que podiam temos de concluir que não foi a primeira vez - que o fizeram ou viram fazer. Como temos de concluir que se é verdade que um deles trazia consigo um bastão extensível - cujo uso por inspetores do SEF o ministro, acaloradamente, garantiu ser ilegal por não fazer parte do equipamento -, é porque sabia que podia (dois inspetores garantiram ao DN que o seu porte é comum e vários colegas os têm "à cintura", sem que alguma vez isso tenha sido questão).
Como não há como negar que quem no SEF lida com os detidos no CIT sabe que está perante pessoas desprotegidas. Que dificilmente acedem ou sequer sabem que podem aceder à assistência jurídica que a lei lhes garante - algo mais que denunciado pela Provedoria de Justiça, pela Ordem dos Advogados e por inúmeras organizações de defesa dos direitos humanos. Que por serem espoliadas dos seus telefones (com que direito? Sob que pretexto?) têm grande dificuldade em contactar com a família ou alguém a quem possam pedir socorro ou fazer alguma denúncia.
Pessoas que são tratadas como estando em prisão preventiva sem que tenham sequer o direito essencial de serem presentes a juiz quando a sua detenção exceda 48 horas - os juízes "despacham" a extensão da detenção por mail, fazendo absoluta fé no que lhes diz aquela polícia; foi o que sucedeu com Ihor, que morreu já no período dessa extensão, validado por uma juíza por mail.
Perante este caldo para todos os abusos, tantas vezes denunciado, até pela provedora de Justiça, que em 2018 chamou aos CIT a "verdadeira terra de ninguém contemporânea", quem pode realmente admirar-se com "uma situação que contraria os valores fundamentais do Estado democrático"?
Não decerto o ministro: a situação dos CIT contraria e há muito todos esses valores. Pelo que a única forma de garantir que não haja outros Ihor é reformar o sistema. A começar pela lei e pela definição do estatuto daquelas pessoas: se as tratam como presos - a lei de 1994 que cria os CIT remete no que respeita a quem ali está detido para os artigos de uma lei de 1979, entretanto revogada, atinentes aos presos preventivos -, têm de ter pelo menos os mesmos direitos que os presos. Acesso a um advogado, serem presentes a um juiz, receber visitas, fazer telefonemas. O mínimo que gostaríamos que fosse garantido a qualquer português no estrangeiro - a qualquer pessoa neste mundo.
Jornalista