"Dizemos aos pais: não tenham medo, para o bem e para o mal, estamos cá"
7 de março de 2020. Lena, Helena Figueiredo, enfermeira há 13 anos, tantos quantos tem daquela que diz ser a sua segunda casa, jamais esquecerá este dia, pois foi aquele em que na memória rebobinou vezes sem conta todos os gestos e procedimentos que realizou no dia anterior, quando soube que a menina que tinha sido levada para a unidade de infecciologia da Estefânia pelo INEM, para ser testada ao covid-19, estava positiva.
Foi a ela que calhou o primeiro caso positivo desta nova epidemia, podia ter sido a qualquer outro colega dos 27 que estão ao serviço na unidade. Até ali, todos os suspeitos tinham dado negativo e "a esperança era sempre essa, mas há um dia em que dá positivo", afirma. E quando assim é, o chão abre-se, por mais que digam e repitam a eles próprios: "Estamos cá para isto." A verdade é que são humanos e o medo faz parte e os receios também. "Senti quase pânico. Fiquei com um nó na garganta. Nesse dia já não consegui comer mais nada. Só revia todos os gestos e tudo o que tinha feito para ficar com a certeza de que não tinha infetado ninguém", conta.
O medo que sentia "não era tanto o de ter ficado infetada", mas mais de ser ela a contaminar os colegas, o filho, o marido, os pais e outros que com ela pudessem cruzar-se. Um mês depois desse dia, Lena, como as colegas lhe chamam, recorda a expressão assustada da criança e a revolta do pai quando ali chegou.
"A menina estava visivelmente assustada. Brinquei com ela. Expliquei-lhe o que ia fazer e disse-lhe que, independentemente de ser positiva ou negativa , sentia-se bem e só tinha de se focar nisso." Com o pai teve de ter a mesma atitude. "Ele vinha muito alterado, revoltado, e disse-lhe o que dizemos a todos os pais que entram aqui. Não tenha medo, para o bem e para o mal, nós estamos cá", mas sempre com a esperança de que aquele seria só mais um caso suspeito.
Mas não foi. Helena, de 35 anos, sentiu o que antes nunca tinha sentido como enfermeira: um "medo quase irracional", só ultrapassado por "um grande apoio familiar, pela sorte "de ter alguém em casa que me conforta e me diz continuamente 'és forte', 'vai ficar tudo bem'". Só ultrapassado também "por trabalhar numa equipa muito unida, coesa, em que todos se apoiam uns aos outros, quando um está mais fragilizado, o outro avança. Temos um elo muito forte, que nos torna um elo maior. É como se fôssemos uma rede e é isso que nos faz ultrapassar o medo".
Se assim é, também se deve à chefe que têm, Ana Oliveira, de 48 anos, enfermeira há 26. Quase todos naquela unidade, "só estive quatro anos afastada". Ana tem ar de menina, o sorriso sempre nos lábios e uma voz tranquila. "Sou mesmo assim, mas também tenho os meus dias", confessa a rir, ficando um pouco atrapalhada quando os elogios vêm das colegas. "Ela é líder e uma boa líder", diz Elsa Neves, 50 anos, enfermeira há 26 e há 25 naquela unidade. "Somos uma equipa coesa. Todos nós somos amigos além de colegas de trabalho, mas também pela líder que ela é. A Ana consegue ter toda a calma e autocontrolo para nos manter a funcionar, dar-nos força. Quando estamos mais em baixo, consegue manter-nos unidos e motivados." O que faz que todos, mesmo nas alturas mais difíceis, saibam que estão a exercer em rede e "com satisfação, o que é muito importante neste serviço nos dias de hoje", reforça. Além do mais, "tem um sentido de humor muito assertivo, nas situações mais complicadas é capaz de as desfazer com uma piada".
A equipa de enfermagem da unidade de infecciologia do Hospital Dona Estefânia tem 30 elementos, "três estão ausentes, por baixa médica, licença de maternidade e uma teve de ficar em casa por não ter com quem deixar os filhos nesta fase. Dos 27, "a maioria é da velha guarda", diz Ana. Só sete são muito jovens e estão em integração.
As idades vão desde os 22 aos 50 anos e todos dividem-se em três turnos, manhã oito pessoas, tarde e noite, cinco. Sempre equipas mistas, mais velhos e jovens. "A mais nova tem 22 anos. É uma recém-formada. Saiu da escola e veio para cá. E apanhou logo com esta situação" - Ana fala de Catarina, a jovem que naquele dia estava de folga. O mesmo aconteceu com os enfermeiros da equipa. "Temos quatro homens, um entra agora às 16.00, os outros estão fora." Para Ana, a equipa que lidera tem mostrado neste combate ao covid-19 aquilo que ela já sabia que era: "Uma equipa excecional, sempre disponível, não se queixa. e todos temos medos e famílias, mas apoiamo-nos uns aos outros."
Como líder, Ana diz que não tem uma máxima, um lema, que diariamente utilize para motivar a equipa, se tivesse, teria de ser "um por todos e todos por um", porque é assim que "funcionamos". Helena reforça: "Aqui sabemos que ninguém fica sozinho, quando um falha, falhamos todos, quando um ganha, ganhamos todos."
De Ana todos dizem que já por si transmite tranquilidade, mas, mesmo assim, ela confessa: "Tenho dias, procuro controlar-me ao máximo quando estou preocupada, porque nada pode passar para o serviço, para as crianças ou para os pais." Garante que nada faz de extraordinário para ser o que dizem ser - "uma boa líder" -, apenas "tento estar muito atenta a todos, aos que precisam de falar, de descansar, aos que têm dúvidas ou não estão satisfeitos. Falamos muito todos. Até temos um grupo no WhatsApp onde, mesmo depois do trabalho, conversamos, descontraímos, rimos, brincamos".
Ana Oliveira entrou no hospital da Estefânia quando se formou e ali ficou. Quando começou ainda "podíamos escolher para onde queríamos ir. E o meu sonho foi sempre cuidar dos outros, ajudar os outros, e a enfermagem coube na perfeição". Tem dois filhos de 4 anos, que registam o tempo antes, durante e depois do coronavírus. "Perguntam-me muitas vezes: 'Ó mãe, é amanhã que acaba o coronavírus?'" A epidemia mudou a vida da mãe e deles também. "Mudou não tanto profissionalmente, porque na unidade estamos habituados a este volume de trabalho, o que é mais difícil é a logística e as regras de proteção."
Ana sai todos os dias de casa bem cedo, leva os dois filhos de 4 anos aos pais, "não deveria acontecer, mas não tenho mais ninguém com quem os deixar". O marido está em casa a recuperar de uma operação, que o deixou imobilizado. Por isso diz que cada vez que sai da unidade nunca sente alívio, "nunca desligamos totalmente, há sempre um telefonema, uma mensagem que nos transporta para aqui", nunca sente alívio porque - tal como os colegas também sente - "e se levo o vírus comigo".
De manhã sai de casa, calça uns sapatos, chega ao carro calça outros para conduzir e entrar em casa dos pais, deixa os filhos, "não há abraços nem beijinhos, é o mínimo de palavras, é difícil", diz, franzindo o nariz, "mas tem de ser". Volta ao carro, segue até ao hospital, quando estaciona, calça outros sapatos que a levam até à unidade. Às 08.00 já tem de estar a postos para a equipa da noite passar o turno. Há dias que têm oito a nove horas, outros dez a 12. "Nunca se sabe, são as que são precisas nesta fase."
Neste ano pensava que não iria comemorar o dia 19 março, levou os filhos para casa dos pais ainda a dormir, sabia que iria sair tarde e que provavelmente já os apanharia a dormir, "Foi o que aconteceu", mas foi surpreendida pelos colegas no meio de tanta pressão e deste vírus tão virulento, Ana teve a sua festa dos 48 anos, com flores e tudo a que tinha direito. "Foi muito bom. Para ano cá estaremos para festejar a dobrar", diz emocionada.
Agora é o covid-19, mas Ana já ali estava quando se prepararam para a gripe A e para o ébola, "houve muita agitação, mas nada que se compare aos riscos que corremos agora. A unidade tem de estar sempre preparada para estas situações, somos referência em pediatria no país", diz, realçando: "É por isto que também é importante o sermos unidos e o estarmos sempre atentos uns aos outros. Alivia muito, ajuda a que dia a dia consigamos superar os nossos medos e receios." Elsa recorda ainda mais para trás, "a SARS já cá estava, mas nada teve esta dimensão ou este receio."
A unidade de infecciologia da Estefânia é uma referência na pediatria. Ali estão quatro quartos de pressão baixa, hoje todos ocupados por crianças com covid-19 e pelos pais que as acompanham. A enfermaria está só destinada a esta doença e o hospital teve de criar dois circuitos, um para estes doentes, outro para os restantes, mas há algo que não se alterou na rotina. A música que ecoa das colunas no teto. "Há sempre, sobretudo à tarde, é a nossa administrativa que trata disso, anima, alivia, deixa-nos bem-dispostos", explicam-nos.
Na sala de enfermagem, o quadro preso à parede está recheado de notas, o telefone não para e o intercomunicador é usado vezes sem conta para falar com os pais. "Rita, Rita", chama pelo intercomunicador Joana Santos, de 40 anos, há 18 como enfermeira naquela unidade.
Rita é a mãe de uma das crianças que ocupam o quarto mesmo à frente da sala, mas as duas portas que as separam para cercar o vírus não lhes permite falar de viva voz. Só quando diz: "Rita, mãe da..." é que Rita reage, levanta a cabeça para o teto, como à procura do sítio para onde tem de falar, e Joana pergunta-lhe: "Comeu? Tomou o comprimido, sente-se melhor da dor de cabeça?" Ela acena com a cabeça.
Joana sempre quis trabalhar com crianças, mas nunca tinha pensado em ser enfermeira. "Gostava da Biologia e da Ciência e arrisquei a enfermagem. Foi um caminho e uma paixão que fui construindo", confessa. E ao fim destes anos não se lembra de coisas más na profissão, prefere guardar as boas, sobretudo as que chegam dos pais. "Aqui, temos a função de tratar dos filhos e cuidar dos pais. No fundo, somos a rede deles, temos de lhe dar apoio e tornar o tempo que aqui estão também o mais confortável possível, aliviar-lhes a ansiedade. Às vezes, dizer-lhes 'já espreitei o exame, está tudo bem, o médico já vem falar consigo", é o suficiente para os acalmar."
Naquele dia havia sete crianças internadas na unidade, durante a manhã tinham passado por ali umas dez a 12 para fazer testes de despistagem à doença. Ao todo, e desde a epidemia, 154 crianças foram testadas, 49 deram positivo, 24 ficaram internadas e seis atingiram o estado grave, duas eram, curiosamente, a mais velha que por ali passou, 18 anos, e a mais nova até agora, de 4 meses.
A equipa de enfermagem admite que já passou por situações complicadas de ter de apoiar procedimentos que normalmente só se fariam em bloco, mas que dada a situação tiveram de ser feitos ali, "como a colocação de um cateter central". Mas outras houve que foram complicadas, não pelos procedimentos, mas por terem de dizer aos pais: vai ou fica? "Foi das coisas que mais me custaram, dizer a uma mãe no meio corredor, quando o filho já positivo à doença foi trazido pelo INEM: 'Tem de decidir, ou fica ou vai embora.' Custou muito, ela foi, porque tinha mais três filhos em casa", conta Helena. A criança, de 9 anos, ficou, "é muito esperto", mas também estavam a mimá-lo.
Através do monitor na sala de enfermagem vão controlando todos os quartos. É preciso estar sempre a ver se estão bem ou se precisam de alguma coisa. Pelos vidros, as crianças mostram os desenhos que fazem. Carla Carvalho sai da sala onde esteve a despir-se depois de ter estado num dos quartos a tratar de uma criança.
Está a transpirar, mas ri-se, "levo mais tempo a despir-me do que a vestir-me. Temos de estar muito atentas, a pensar no que estamos a fazer para cumprir todas as regras e nada ficar infetado".
Depois de sair de um quarto, volta sempre ao vidro para mostrar a quem está do outro lado quem lá esteve. "Faço sempre um sorriso, temos de lhes dizer muitas vezes que por detrás das máscaras estamos a sorrir, eles é que não veem", comenta.
Dentro do quarto só lhes veem os olhos, e é através deles que mostram tranquilidade e boa disposição. "Os mais velhos já percebem o que se está a passar, os mais novos não. Para os bebés, é como se estivéssemos mascarados, quando lhes limpamos as secreções, choram, mas depois riem", conta Carla, que se emociona ao falar no dia em que entrou num quarto, acenou e a mãe da criança a tratou pelo nome. "A criança perguntou à mãe: 'Como sabes que é a Carla?' Ela respondeu-lhe: 'Pelos olhos.' Fiquei sem palavras, são estas coisas que compensam."
Carla tem 42 anos, há 20 que é enfermeira e que está naquela unidade. É casada, tem três filhos, que teve "de mandar embora para os meus sogros em Viseu. Fiquei só eu e o meu marido, mas custa muito não os ver, não os poder abraçar", afirma com lágrimas nos olhos.
Helena ri-se. "És uma chorona", dirigindo-se para a abraçar. "Ai, não nos podemos abraçar", riem-se as duas. No intercomunicador, Carla chama pela mãe do Francisco. "Está tudo bem? Não se preocupem que eu vou com vocês." Francisco tinha acabado de chegar de outro hospital e tinha de fazer uma TAC.
No chão foram colocadas compressas grandes embebidas em lixívia para que a cadeira de rodas que o ia transportar até ao serviço de radiologia ficasse desinfetada e pudesse atravessar o corredor. "O que esta doença tem de mais assustador é não se saber tudo a 100%", afirma a enfermeira-chefe.
Dora é das mais novas, tem 26 anos, mas ainda há Mariana, de 25, Catarina de 22, Verónica de 28 e Renato também de 24. Todos em integração na unidade, alguns há poucos meses. Dora está ali há dez meses. Tinha feito seis meses noutro hospital. Nunca imaginou chegar e apanhar com "uma epidemia. É muito exigente, mas também muito desafiante". Não esconde que sente algum receio, mas assume que tem de "levar as coisas com tranquilidade e a equipa gere a situação com muita calma. Há momentos para sermos profissionais e levarmos as coisas muito a sério, mas também há outros para descontrair e rir um pouco. Senão seria incomportável".
Uns aprendem com os outros e todos são valorizados. Este poderia ser também um dos lemas da enfermeira-chefe Ana Oliveira. "E o que procuro fazer sempre."