Sociedade
07 julho 2021 às 10h41

"Dizem para 'deixarmos as crianças em paz'. Mas as crianças não estão em paz"

Uma grande parte da vida - passada na conservadora Chamusca - não soube o que se passava com ela. Agora sabe: é uma mulher trans e quer fazer a cirurgia de redesignação de género. Para a ajudar a pagar, mil pessoas doaram, em três dias, 15 mil euros. Um milagre de amor que a deixou "sem glândulas lacrimais" - mas que, lembra, não pode ser a solução para o direito à saúde das pessoas como ela.

Fernanda Câncio

"Isto não é só a melhor coisa que me aconteceu na vida como é uma vitória coletiva e uma muito necessária injeção de esperança na humanidade. (...) Acho que não consigo que percebam o que significa para mim decidir expor as fases mais negras da minha vida e ter essa parte da minha identidade celebrada por uma imensidão de gente. Uma imensidão de gente que me deu as mãos e disse que não estou e nunca mais estarei sozinha nisto."

Guadalupe, ou Guada, como se chama na sua conta no Twitter, escreveu isto depois de em três dias - entre a noite de quarta-feira 30 de junho (por coincidência, logo a seguir a saber-se que o Tribunal Constitucional chumbou uma norma da lei de identidade de género) e sábado 3 de julho - conseguir reunir, em resposta a um apelo nestas redes, mais do que a meta de 15 mil euros que tinha fixado para a subscrição pública de recolha de fundos para a sua cirurgia de redesignação de género.

Um "fenómeno de comunhão e solidariedade" que a fez "ficar sem glândulas lacrimais". "Pessoas que me conheciam desde sempre e lamentaram não me ter ajudado antes, pessoas que nunca me conheceram e torceram por mim como se me conhecessem intimamente desde sempre, adolescentes trans [abreviatura de transgénero] que me agradeceram pela esperança e força que esta onda de solidariedade por esta causa lhes deu." Uma onda que dá alento para mais luta: "Toda e qualquer pessoa que contribuiu para que isto acontecesse e que com este movimento está agora mais sensibilizada, educada e empática sobre e a comunidade trans e os nossos direitos (ou falta deles)."

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Um dos objetivos é precisamente conseguir que aquilo que ela fez - pedir dinheiro para fazer a cirurgia - deixe de fazer sentido por haver resposta no SNS que não implique esperar anos a fio, já que neste momento só há uma equipa, em Coimbra, a fazer este tipo de intervenção.

O preço das cirurgias deste tipo no privado é altíssimo - podem chegar, no caso dos homens transgénero (ou seja, que nasceram com características físicas do sexo feminino), a mais de 20 mil euros. A estimativa que fez para a sua, 15 mil, baseou-se na informação que lhe foi dada pelo cirurgião João Décio Ferreira, especialista em cirurgia de redesignação de género que trabalha agora exclusivamente no privado depois de durante muitos anos assegurar as cirurgias no SNS, e que deverá ser o médico a operá-la. Não antes de passar um ano e meio: apesar de ter já o valor de que crê precisar também há lista de espera para a intervenção no privado.

Muito rápido ainda assim face àquilo que Guadalupe esperava: "Pensei que fazendo agora o pedido de doações talvez daqui a ano e meio conseguisse ter metade do dinheiro para a operação." Em poucas horas, porém, o acumulado chegava a um terço. No fim, mais de mil pessoas deram quantias entre 300 e 2 euros através da plataforma de crowdfunding Gofundme, de MBway e de transferência bancária, numa roda de amor que a deixou, e a muitos dos que participaram, espantada.

Guadalupe, Amaro de apelido, tem 25 anos. Escolheu o nome que tão bem assenta à sua tez morena e rosto de anjo quando abriu o PDF "com todos os nomes legais", leu a lista e parou neste. "Fiquei tipo: é exatamente isto. Não é uma história muito romântica mas é a minha, então eu amo."

Foi "há oito ou nove anos", mas só agora, em 2021, passou a ser legalmente Guadalupe: "Imagina a felicidade." Não é fácil imaginar se não se passou por isso. Nada na história de Guada é fácil imaginar no sentido de saber o que sentiu e sente: a maioria das pessoas não faz a mínima ideia do que é estar no lugar dela. E por vezes, ou quase sempre, por ter noção disso, há um receio de perguntar, de dizer, a coisa errada.

Por exemplo não falamos do "nome morto", o nome de rapaz que lhe puseram quando nasceu, numa família da Chamusca, Ribatejo, que descreve como "pobre e conservadora, metade refugiados africanos, metade agricultores ribatejanos", na qual havia já uma rapariga, a irmã mais velha. O nome morto está morto. O que não está é a memória do que foi crescer transgénero sem saber o que isso era, quem era, o que se passava, que havia mais, muito mais pessoas assim, pessoas que se sentem num corpo outro - que ela não era um erro nem tinha de calar, esconder, ter medo. Uma parte dessa história, desse sofrimento, assumiu-a quando fez o apelo no Instagram e no Twitter. Mas ninguém, a começar por si, esperava que o seu relato comovesse tanta gente.

Nascida no final do século XX num país da Europa ocidental, com uma Constituição que proíbe a discriminação em função de uma série de características ditas "suspeitas" (aquelas que ao longo da história da humanidade têm demonstrado ser causa de perseguição, como a religião, a "raça", o género ou a orientação sexual - a identidade de género não foi ainda acrescentada à lista) Guadalupe narra o que foi para ela, criança trans, crescer num meio em que essa realidade não era reconhecida por ninguém e quando ela própria desconhecia o que a fazia sentir "errada".

"Durante o meu crescimento, sempre senti que era socializada como qualquer rapariga cis [de "cisgénero", ou seja, de alguém que se identifica com o género que lhe foi atribuído à nascença, com base nas características sexuais físicas]. Tanto quanto sabia nada significativo nos separava, não sentia que algo nos divergisse, embora a sociedade já me dissesse que não era como as outras, o meu cérebro infantil não o compreendia. Foi com o início da puberdade e o desenvolvimento de características sexuais secundárias que comecei a sofrer agressivamente com disforia de género [discordância entre a identidade de género e o género atribuído à nascença] embora ainda estivesse longe de saber sequer o que era. A sociedade cisheteronormativa tinha claramente parado de me ver como rapariga. Não fazia ideia do que se passava, só sabia que algo estava errado, que me sentia errada. Que não estava na verdade, a sociedade sim interpretava e tratava-me duma forma errada, mas ainda não o sabia. Não entendia porque é que tinha sido violentamente separada do resto das raparigas. Era obrigada a partilhar espaços com rapazes e a nunca me sentir segura, a ser constantemente discriminada, assediada e agredida. Não só por eles mas por todos que me rodeavam, desde colegas a professores a funcionários e família."

Por muito tempo, prossegue, "o fator que mais agravava o meu sofrimento era não saber sequer o que se passava e porque me sentia tão mal por existir. Ninguém educa uma criança ou um adolescente sobre como ou o que é ser trans ou não-binário [o termo "não-binário" designa as pessoas que não se identificam como masculinas ou femininas]. É uma jornada solitária que fazemos sós. Depois mesmo quando já tinha alguma consciência do que se passava, não tinha nenhum apoio. Nem financeiro nem emocional. A minha família sempre foi pobre e conservadora. Metade refugiados africanos, metade agricultores ribatejanos. Mais tarde inclusive fui expulsa de casa dos meus pais. Nos meus early teens [no início da adolescência] fiquei extremamente deprimida, depressão essa que se tornou crónica e com a qual ainda batalho. Refugiava-me no sucesso escolar, porque a disforia de género e o ambiente familiar só me levavam a automutilar-me e tentar suicidar-me. Escrevi cartas de despedida três vezes."

As pessoas que responderam ao seu apelo não enviaram só dinheiro: foi inundada de mensagens. "Fiquei surpreendida por haver pessoas muito mais velhas, de 70 anos ou mais, a falar comigo, tanta união de pessoas tão diferentes. Familiares que não sabiam de todo sobre o assunto e com quem não falava há anos. Foi quando recebi esses contactos que percebi que o impacto era maior que o que me diz respeito a mim. Os três grupos de mensagens que me tocaram mais foram o das pessoas para quem eu tinha morrido e que do nada apareceram a dar-me o seu apoio, o das pessoas trans que me agradeceram pela visibilidade e sensibilização - houve um adolescente trans que me disse 'isto mudou a minha vida, ver familiares meus a partilhar as tuas palavras deu-me coragem para me assumir' - e o dos pais que me disseram 'lamento toda a falta de apoio que tiveste'."

No meio do turbilhão que foram aqueles dias, não deu conta da decisão do Tribunal Constitucional. Fica chocada, apesar de o acórdão não se pronunciar, como era pedido aos juízes pelos deputados do PSD e CDS/PP que solicitaram a apreciação de inconstitucionalidade, sobre a questão específica das normas antidiscriminação de crianças e adolescentes transgénero na escola, mas apenas sobre uma questão técnica - a de o governo não ter alegadamente poder para estabelecer regulamentação na matéria, por se tratar de direitos fundamentais, e dever ser o parlamento a fazê-lo.

"A coisa que mais odeio na direita conservadora é o "deixem as crianças em paz"", comenta. "As crianças não estão em paz. As crianças como eu não estão em paz. Estão a passar coisas piores se calhar que o que eu passei. Isso toca-me visceralmente."

Respira fundo. "É preciso mudar as coisas na escola. Educar, informar as crianças, falar sobre o assunto. Não se pode não falar sobre as coisas por achar-se que os miúdos vão ficar trans - só se já forem. As pessoas trans existem há séculos, sem haver educação sobre o assunto. E se o meio é homofóbico e transfóbico as crianças vão absorver."

Só vê uma explicação para "tanta falta de empatia" - a de quem quer manter esse silêncio e essa fobia: "Têm medo de que cada vez mais crianças e pessoas fujam da norma que eles querem preservar. Têm medo de ser confrontados com a realidade."

Um dos temas que tem sido mais debatido - e que suscitou mais protestos daqueles que clamam "deixem as crianças em paz" - é o do acesso das crianças e adolescentes trans às casas de banho e balneários do género com que se identificam. Guadalupe fala da sua experiência: "Frequentar os espaços dos rapazes, as casas de banho, os balneários, era horrível. Não me despia, queria sempre sair dali o mais depressa possível." E não tinha com quem falar disso. "Não falei sequer com a minha irmã das minhas dúvidas, dos meus medos. Nunca senti abertura para falar com alguém, não confiava em ninguém a esse ponto - não confiava que não fossem usá-lo contra mim. Só queria sobreviver, não tinha energia para mais nada. Analisava o que me rodeava e achava que não tinha nenhuma hipótese ali. Estava numa comunidade tão retrógrada que a única opção que me apresentavam era "és um homem gay". E eu sabia que não era verdade." Mas não tinha outras referências. "Durante aqueles anos a única vez que vi uma mulher trans a ser representada foi num programa da tarde na TV, estava ali como um adereço, uma coisa desumanizada."

Nem se terá dado conta disso, mas tinha dez anos quando a transgénero Gisberta Salce Júnior foi assassinada por um grupo de jovens no Porto. Seria só na faculdade - entrou para Veterinária e está agora a fazer a tese de mestrado - que encontraria "informação e apoio" e as "suas pessoas". Muitas mais agora que através do Instagram e sobretudo do Twitter, onde tem mais de oito mil seguidores, descobriu que há tanta gente que pode também ser dela. Foi aliás no Twitter que conheceu o namorado de quem, anunciou há pouco tempo, está noiva.

Quanto ao desejo de fazer a cirurgia de redesignação de género, é antigo. "Sempre quis fazê-lo e cada vez é mais urgente. Tem a ver com a relação com o corpo, mas também com a perceção social que as pessoas têm de ti - essa parte é muito importante para mim." Explica porquê: "Tenho tido a sorte e o privilégio de muitas pessoas acharem que sou cis e cada vez estou mais confortável socialmente. Mas tenho medo de que as pessoas na rua notem que sou trans, porque isso põe um alvo em mim."

Embora, reconheça, não tenha medo de que as pessoas lhe associem o nome e o rosto à causa trans. Reflete: "Se perguntares: se vivêssemos num mundo sem papéis de género, com maior fluidez, quererias fazer a operação?" Não sei o que quereria e sentiria. Percebo a ideia de que as pessoas trans quererem tanto corresponder aos papéis de género é contraditório com o movimento que tenta aboli-los e tornar-nos mais livres, mas não me sinto mal por isso. Já tenho tantas lutas relativas à experiência trans, lutem vocês por isso."

Ri. A luta dela é ser feliz e pugnar pela felicidade das pessoas como ela, "que isto não acabe aqui". Porque, sublinha, teve "uma sorte do caralho" mas "uma questão de saúde que afeta tanto a comunidade trans não pode estar entregue a sorte e privilégios. Saúde é um direito básico que deve ser acessível a todos, com qualidade, e as pessoas trans devem ser incluídas nessa equação." Tem medo, diz, "de que as pessoas fiquem muito confortáveis com o sentimento de "missão cumprida". Quero tentar usar isto como oportunidade para avançarmos mais."

E promete: "Quero envolver-me mais politicamente, tentar chegar a mais pessoas que possam ajudar a mudar as coisas, sensibilizar mais gente."