"Ela conhecia dois desde bebés", diz amiga de Gis

Gostava ao menos que eles dissessem o que se passou, porquê aquela reacção. Gostava de os ouvir dizer porquê." Esta amiga de Gisberta Salce Júnior não tem, no entanto, "grande esperança" no julgamento que hoje se inicia no Tribunal de Menores e Família do Porto. Nem no que respeita ao "castigo", já que está ciente de que não há representantes da vítima neste tipo de processo e os menores arriscam, num tipo de processo que visa não a sua penalização mas reinserção e reeducação, um máximo de três anos de internamento em instituições educativas fechadas (sendo que o Ministério Público pede um ano e meio em regime semiaberto), nem quanto à "explicação" do crime, já que o processo vai decorrer à porta fechada.

A explicação é-lhe tanto mais premente quanto esta transexual, que viu Gisberta pela última vez 15 dias antes de lhe saber da morte, assegura que aquando do reconhecimento do corpo e da missa que se seguiu as famílias de dois dos rapazes que vão ser agora julgados se lhe apresentaram, provando, com fotografias, que Gisberta era sua conhecida de longa data. "Mostraram-me fotos até da Gis em casamentos lá da família... Era íntima deles, conhecia os rapazes desde bebés. Fiquei ainda mais chocada." As famílias terão asseverado que os jovens em causa teriam sido "forçados" por outros, mais velhos, a entrar "naquilo". "Diziam que eles não estavam envolvidos, que só faziam parte do grupo... É normal. Quem é que quer acreditar que um filho seu participou naquele horror?"

Família de Gis não vai assistir

Os sentimentos desta amiga da vítima são partilhados pela família de Gisberta, nascida Gisberto Salce Júnior há 46 anos, em São Paulo, Brasil, e partida aos 18 anos para a Europ, onde esperava encontrar um ambiente mais favorável à sua identidade de transgénero. O sobrinho Abimael Salce Júnior, de 32 anos, responde ao DN entre dois jogos da Copa do Mundo num tom pausado, grave. "Nós não vamos conseguir ir aí para Portugal, não temos condição financeira. Mas vamos tentar acompanhar, estamos numa última tentativa com as associações daqui a ver se conseguimos assinalar a nossa presença."

Abimael diz que ainda foram feitos contactos para a constituição de um advogado, mas até agora saíram gorados. Em todo o caso, o julgamento que hoje se inicia e deverá prolongar-se por uma semana não permite, pelas características de que se reveste, que a vítima seja de algum modo representada. Tal só é possível ou em processos criminais - como o que poderia ocorrer contra o único jovem do grupo inicialmente responsabilizado que tem 16 anos e é, portanto, imputável, tendo cumprido mais de dois meses de prisão preventiva e sido libertado por os testemunhos dos outros rapazes indicarem que teve uma "participação diminuta" no crime, estando agora, segundo o MP, o seu caso a aguardar a conclusão do julgamento destes seus companheiros -, ou em processos cíveis, para a demanda de indemnização.

O facto de as audiências ocorrerem à porta fechada também causa alguma perplexidade na família de Gis. "Mesmo se estivéssemos aí talvez nem nos deixassem assistir." É que na sala de audiência da 3.ª secção do 2.º Juízo só estarão os juízes, os menores e os seus pais (ou tutores) e os advogados. A decisão, tomada pelo juiz-presidente do colectivo, Carlos Portela, e apoiada pelos advogados de defesa, é sustentada pela eventualidade de a presença de público e jornalistas "ser susceptível de afectar o equilíbrio psíquico e psicológico dos menores aquando dos seus depoimentos". O Conselho Superior da Magistratura nomeou um funcionário judicial para fazer um resumo diário à comunicação social.

Intenção de matar ou não

Afinal, quase todas as dúvidas que se colocaram desde o início do caso, aquando da descoberta do corpo seviciado de Gisberta dentro de um fosso cheio de água num edifício inacabado do Porto, estão ainda por esclarecer e não se circunscrevem à motivação de um crime que já foi classificado, pelo Parlamento Europeu, como "de ódio homofóbico" (ver caixa, em baixo).

O MP considera, na conclusão do " inquérito tutelar educativo" efectuado, que os treze jovens, entre os 13 e os 15 anos , não tiveram intenção de matar. Indicia-os, assim, pelos crimes de homicídio na forma tentada, com dolo eventual, e de ocultação de cadáver, igualmente na forma tentada. Baseia essa decisão no facto de que, apesar de os jovens terem agredido violentamente Gisberta ao longo de dois dias, 18 e 19 de Fevereiro, submetendo-a a sevícias sexuais (introduzindo-lhe um pau no ânus, por exemplo), ela ter acabado, como provou a autópsia, por morrer afogada, quando os jovens a lançaram ao fosso alegadamente no intuito de ocultar o que eles julgariam ser já um cadáver.

Mas este entendimento do MP, que em si mesmo surge como algo contraditório (se os jovens admitem que lançaram o corpo ao fosso para o ocultar, porquê a "forma tentada"?) parece entrar em choque frontal com os factos que a investigação e, nomeadamente, as confissões dos jovens, terá carreado para o processo. Se, como noticiou o Público, a vítima terá pedido ajuda antes de ser lançada no fosso e os jovens que nele a deitaram não podiam, assim, ignorar que estava viva, como sustentar que não tinham intenção de a matar?

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