São mais rápidos, mais baratos e mais eficazes do que os tribunais judiciais, mas 17 anos depois de terem sido criados ainda são pouco conhecidos. Dos quatro iniciais, há agora 25, que ainda não abrangem o país inteiro. Aos julgados de paz chegam dívidas de condomínio e de arrendamento, mas também problemas com transportadoras aéreas, operadoras de telecomunicações, companhias de seguros ou processos movidos pela EMEL e Carris. Tratam dos pequenos conflitos que dão grandes dores de cabeça às pessoas. Mais de 115 mil portugueses já recorreram a estes tribunais extrajudiciais que nasceram para "tentar a paz", como define Cardona Ferreira, juiz conselheiro e presidente do conselho dos julgados de paz..Casos como o dos dois homens que, no início do mês de maio, se encontraram frente-a-frente no tribunal de Lisboa para tentar chegar a acordo sobre uma dívida, como o DN testemunhou, não são comuns, mas a tentativa de resolver a bem o conflito e evitar o julgamento é sempre a estratégia adotada..A conversa decorre em inglês e em português, de um lado um irlandês que exigia uma dívida, do outro o devedor, um português, que a reconhecia mas queria reduzir o valor. Até que se ouviu a frase: "Não é pelo dinheiro, é pela traição. Se estavas com problemas, pedias ajuda", disse o proprietário de três apartamentos em Lisboa, em regime de alojamento local. Era o português quem geria as casas, mas emigrou para França e deixou o amigo pendurado. Não só ficou, de repente, sem alguém para lhe cuidar do negócio como tinha dinheiro a receber - perto de oito mil euros. Houve tensão mas conseguiu-se um acordo e ainda um pedido de desculpas. Ambos cederam..Caso não tivessem chegado a acordo, o julgamento poderia ser marcado para o dia seguinte. Além de ser incomum esta rapidez, é-o ainda mais a informalidade em que tudo decorre. O juiz de paz não usa beca e os advogados dispensam as togas. "Há quem se esqueça que somos juízes", reconhece João Chumbinho, juiz de paz e coordenador do tribunal de Lisboa, um dos primeiros a ser criado..Os outros foram Seixal, Oliveira do Bairro e Vila Nova de Gaia e o último, já neste ano, não foi uma criação de raiz mas um alargamento do agrupamento, na Madeira - o do Funchal também abarca Santa Cruz, um concelho de "grande conflitualidade", como descreve João Chumbinho, que está no julgado de paz da capital desde o início. "Recebemos 120 processos no primeiro ano, agora recebemos esse volume por mês", enquadra..Desigualdade. Falta cobertura em todo o país.Em 17 anos, os julgados de paz cresceram, embora não o suficiente - nos Açores, por exemplo, não existe nenhum e nos concelhos limítrofes de Lisboa, como Amadora ou Oeiras, não podem recorrer ao da capital. Também ficaram mais conhecidos, mas ainda assim aquém da taxa de eficácia que exibem e que ronda os 97 por cento. A partir de 2013 foi alargado o teto máximo no valor das ações, de cinco mil euros para 15 mil euros..Há mais vantagens para quem tem processos simples e pode evitar os tribunais judiciais. Os julgados de paz não encerram para férias judiciais e há julgamentos aos sábados de manhã. A taxa única é de 70 euros. Se houver acordo, o valor é dividido em dois (cada parte paga 35 euros), e se o processo ficar resolvido ainda na fase de mediação (não obrigatória, mas aconselhável) o custo total é de 25 euros. Estes tribunais, por tratarem de processos menos complexos, são também mais rápidos, a média de resolução é de 90 dias, "mas já houve alturas em que foi de 60 dias", recorda o coordenador do julgado de paz de Lisboa..O tribunal fica na zona de Telheiras, em Lisboa - até ao final do ano mudará de instalações, para a zona da Baixa -, e é um rés-do-chão de um bloco de apartamentos. Aqui trabalham dois juízes de paz, João Chumbinho e Sofia Coelho, e uma dezena de funcionários. Estes juízes são licenciados em Direito e recebem formação no Centro de Estudos Judiciários. Quando abrir um novo concurso já há candidatos formados - neste momento a bolsa de suplentes conta com 12 candidatos. Só podem concorrer maiores de 30 anos..Dívidas de condomínio resolvidas "em quinze dias".Desde 2002, ano da criação dos julgados de paz, estes tribunais já receberam 115 821 processos (findos são 111 811). Os últimos dados são de 2018 e referem 8161 processos recebidos - em 2017 foram 7775 (findos chegaram aos 8590) - e há ainda 4010 pendentes..Em 2018, a maioria dos processos tratados tinham um valor da ação de até 750 euros e 11 por cento (884) eram referentes a valores entre os 7500 e os 15 000. Os casos que opõem particulares são os mais frequentes, logo a seguir estão as questões de condomínio e em terceiro lugar as questões ligadas a empresas. Só em Lisboa, e no ano passado, o julgado de paz recebeu 1506 processos. Desde 2002 já foram 18 192..Os processos mais comuns são os relacionados com não pagamentos de quotas de condomínio. São também "os que se resolvem mais facilmente. As pessoas sabem que o processo vindo aqui parar em 15 dias está resolvido", diz João Chumbinho..Há também muitos processos relacionados com atrasos em voos e pedidos de indemnização civil. EMEL e Carris também recorrem a estes tribunais - a primeira para cobrar o arranjo dos pilaretes nos bairros históricos, por exemplo, e a segunda para pedir indemnizações civis aos condutores que deixam os carros mal estacionados e causam prejuízo à empresa. "São valores na ordem dos 600 euros. Geralmente chegam a acordo", diz o juiz de paz..China interessada na experiência portuguesa.Operadoras de telecomunicações, seguradoras e empresas - Lisboa já recebeu o caso de um drone que não funcionava - mas também "muitos" problemas com arrendamentos. "Rendas por pagar, não cumprimento do pré-aviso de libertação do locado, falta de obras", descreve Sofia Coelho, há um ano no julgado de Lisboa, depois de ter passado por Oliveira do Bairro e Sintra. "Tribunais iguais, mas problemas diferentes, porque pessoas diferentes também", diz a juíza..Também podem ser aqui resolvidas as ações relacionadas com pedidos de indemnização civil pela prática de determinados crimes - "há uma desinformação enorme" sobre esta possibilidade, admite João Chumbinho, tais como ofensas à integridade física simples, danos simples, injúrias, difamação, entre outros..Não se sabe quando abrirá um próximo julgado de paz nem em que localidade, mas o certo é que a experiência portuguesa de quase duas décadas é já um exemplo lá fora. "Por duas vezes já recebemos a visita da República Popular da China - com perguntas muito concretas sobre o funcionamento destes tribunais", revela o coordenador do julgado de paz de Lisboa. Espanha, Brasil e França são outros dos países que também já visitaram os julgados de paz portugueses e que os encaram como um case study..Onde estão os 26 julgados de paz?.Lisboa, Oliveira do Bairro, Seixal, Vila Nova de Gaia, Miranda do Corvo, Terras de Bouro, Vila Nova de Poiares, Tarouca, Santa Marta de Penaguião, Cantanhede, Porto, Aguiar da Beira, Trofa, Sintra, Coimbra, Santa Maria da Feira, Odivelas, Palmela/Setúbal, Aljustrel, Proença-a-Nova, Oeste, Carregal do Sal, Funchal/Santa Cruz, Belmonte, e Cascais.