Quem policia a polícia das polícias?

O escândalo da morte de Ihor Homeniuk tornou clara, se não o era já, a importância do organismo que fiscaliza as polícias. E se a investigação da Inspeção Geral da Administração Interna neste caso satisfez, a sua atuação em geral está muito longe disso. É tempo de encontrar outra fórmula.
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A primeira vez que ouvi falar de um órgão independente fiscalizador das polícias ao qual os cidadãos podiam apresentar queixa de abusos de poder foi a meio dos anos 1980, quando, estagiária no Expresso, entrevistei o então provedor de Justiça, Ângelo de Almeida Ribeiro, no âmbito de um trabalho sobre violência policial. Falou-me com entusiasmo da Police Complaints Authority, uma comissão independente britânica que investigava os casos de alegada violência policial: era um sonho dele, e passou a ser também meu.

Quando dez anos depois, após o homicídio e decapitação de Carlos Rosa em maio de 1996 num posto da GNR, o governo Guterres finalmente criou o que apresentava como um organismo para "a defesa dos direitos dos cidadãos e potenciador da dignificação das entidades policiais", a Inspeção-Geral da Administração Interna (que o governo anterior, chefiado por Cavaco Silva, tinha posto no papel em vésperas das legislativas de 1995), pensei, quer pelo perfil do homem que foi escolhido para a dirigir - o magistrado Rodrigues Maximiano - quer pelo do então ministro da Administração Interna, Alberto Costa, que finalmente a democracia e o Estado de direito iam entrar nas forças policiais.

Depois de durante anos me deparar, nas várias investigações que fiz sobre homicídios perpetrados por polícias, com a total opacidade e animosidade das corporações, como com a ausência de registo de casos de morte, de queixas de violência e de uso de armas de fogo (apesar de os regulamentos a tal obrigarem) e, nos julgamentos de agentes a que assisti, com o corporativismo obsceno de colegas e chefias, esperava mudanças a sério. E houve: passado algum tempo, os relatórios da IGAI tinham listagens dos mortos causados pela atividade policial e davam conta do resultado dos inquéritos atinentes a esses casos.

Mais: após uma série de mortes causadas por disparos policiais sobre veículos em movimento, a IGAI deu a conhecer em 2005 (e novamente em 2008, na sequência de mais uma morte nessas circunstâncias) a sua interpretação da lei - disparar nessas circunstâncias é disparar sobre pessoas e portanto só admitido em caso de real risco de vida para o agente ou terceiros; não há lá isso de "tentei disparar para os pneus para imobilizar a viatura e com tanto azar que acertei na cabeça de um dos passageiros, coisa que não me ocorrera de todo poder acontecer".

Vi até em 2006 um inspetor-geral da Administração Interna, o juiz Clemente Lima, falar da necessidade de acabar com o "xerifado que campeava" nas polícias. Mas Clemente Lima saiu - mais ou menos empurrado pelo então ministro da Administração Interna, António Costa - e a IGAI foi perdendo ímpeto, visibilidade e, parece-me, independência.

Até chegarmos a situações como a da investigação à carga policial de novembro de 2012, na qual dezenas de pessoas foram agredidas e detidas; após mais de dois anos de investigação, concluía a IGAI que tinha havido "abuso de poderes funcionais", agressões com bastão na cabeça e até na cara (o que é totalmente proibido), conduções ilegais à esquadra e até colocação em celas de pessoas que não tinha sido detidas formalmente, mais uma miríade de outros graves abusos, mas que como as caras dos polícias estavam "escondidas pelos capacetes e viseiras" nada podia fazer, tendo arquivado tudo.

Três anos depois, no famoso caso da esquadra da PSP de Alfragide, a IGAI voltava a primar pelo arquivamento: instaurou nove processos disciplinares e arquivou sete. No mesmo caso, como se sabe, o MP foi muito mais longe: acusou 18 polícias, tendo 17 ido a julgamento e sido condenados oito. A situação não é só bizarra; cria problemas práticos complicados, já que agora não se sabe o que pode a PSP fazer em relação aos agentes condenados na justiça cujos processos disciplinares tenham sido arquivados pela IGAI.

O problema, porém - e já seria muito mau - não está só nesta manifesta falta de proficiência. A instituição que era suposta tornar as polícias mais transparentes opacificou-se. Os seus relatórios são sempre "confidenciais"; para poder consultá-los é preciso pedir acesso por escrito e esperar por "despacho" - que pode vir ou não vir, sem que o critério se perceba.

Por exemplo o relatório sobre a morte de Ihor Homeniuk só chegou aos jornalistas porque foi junto ao processo criminal. E o DN está há semanas, sem sucesso, a pedir informação sobre as inspeções que foram ao longo dos anos feitas aos centros de detenção de estrangeiros do SEF (como aquele em que morreu Ihor), e às recomendações feitas na sequência delas. Na edição de hoje, relevamos o conteúdo de um desses relatórios - ao qual chegámos por outra via que não a IGAI - e constatamos que irregularidades e falhas encontradas em 2015 no centro de detenção do Porto voltaram a ser detetadas no de Lisboa, algumas das quais relacionadas com a morte de Ihor. Ou seja, as recomendações da IGAI ou não foram aplicadas ou só o foram no Porto - o que leva também a questionar a eficácia da sua ação e o tipo de seguimento que dela faz.

De resto, se o relatório sobre a morte de Ihor resulta bastante duro, ao propor 13 processos disciplinares, ficou aquém da total clarificação e imputação de responsabilidades: foi até um certo ponto na hierarquia do SEF e parou.

Algo que ficou bastante evidente quando o ministro da tutela, Eduardo Cabrita, anunciou, em dezembro, ter mandado instaurar mais um processo disciplinar - desta vez a um dos inspetores do topo da hierarquia do SEF, o chefe do gabinete de inspeção interna, João Ataíde. Encarregado de averiguar sobre a morte do cidadão ucraniano - quando alguém morre em custódia policial é obrigatório haver um processo de averiguações interno -, Ataíde nada encontrou de anómalo. Mas, como o DN noticiou em primeira mão, o relatório da IGAI, que ficou pronto em setembro, nem sequer menciona a obrigatoriedade desse processo de averiguações interno quanto mais o resultado do mesmo. Tão-pouco lá encontramos informação sobre o que souberam - e como, por quem e quando - a direção regional de Lisboa e a direção nacional do SEF das circunstâncias do óbito de Ihor. Apesar de a IGAI acusar o ex-diretor de Fronteiras de Lisboa, Sérgio Henriques, de ter orquestrado o encobrimento do caso, não se debruça sobre o que terá ou não dito aos seus superiores hierárquicos. Difícil de compreender, não?

Não há sistemas perfeitos e decerto haverá sempre falhas em qualquer polícia das polícias. Mas à sua inaceitável opacidade a IGAI junta uma suspeição permanente de falta de independência, por depender da mesma tutela política das forças que fiscaliza. Claro que a possibilidade de interferência existe sempre - mais que não seja pela dotação ou não de meios por parte dos governos - mas é altura de estudar os modelos de fiscalização das polícias doutros países e perceber se não há algo que funcione melhor. Olhar por exemplo para a sucessora da Police Complaints Authority, o Independent Office for Police Conduct. Num momento em que as polícias estão a ser invadidas por movimentos políticos perigosos, não dá para continuar a assobiar para o ar: é preciso agir.

Jornalista

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