O movimento dos zero polícias
O post foi colocado a 25 de maio no Instagram do denominado "movimento zero". Apelida Portugal de "olimpo para criminosos" e procura explicar porquê: "Portugal através dos seus eleitos governantes e do seu sistema judicial melindroso, [sic] deriva em políticas meramente sensacionalistas no combate à criminalidade violenta. Os valores registados no sítio da ONU, [sic] representam, entre outros, os homicídios intencionais. [Em] Portugal, como no resto da Europa, apesar de se verificar um decréscimo ao longo dos anos, mantêm-se regularmente valores acima da estimativa europeia. Só em 2018, a taxa de homicídios voluntários consumados aumentou 34,1%. (...)."
A ilustrar o texto, além de fotos de um homicídio recente na via pública, um gráfico do Gabinete de Drogas e Crime das Nações Unidas relativo a vítimas de homicídio intencional no qual duas linhas, uma respeitante a Portugal e outra à Europa ocidental, no período de 1990 a 2018, se cruzam, parecendo dar a ver, a partir de 2006, um aumento da taxa homicídio em Portugal face à do continente.
Para quem tenha o mínimo de noção da realidade criminal no país - como deveria ser o caso de um movimento que se propõe representar polícias - quer o texto do post quer o gráfico causam estranheza. E o facto é que examinando melhor a imagem deste último se percebe, apesar da sua pouca definição, que a escala respeitante à linha europeia começa em três e a de Portugal em 0,6; enquanto a primeira vai até nove, a segunda não passa de 1,6. Querendo tal dizer que a taxa de homicídios intencionais na Europa esteve sempre, nos 28 anos em apreço, muito acima do de Portugal.
O post corresponde pois a uma falsificação grosseira e a uma tentativa de burlar quem o leia: Portugal não manteve "regularmente valores acima da estimativa europeia"; pelo contrário. E trata-se de uma óbvia tentativa de burla porque não só o gráfico diz o avesso do pretendido como no respetivo site de origem, o do referido departamento da ONU - para o qual o post não faculta link -, está, logo sob o gráfico, um quadro com os números reais de homicídios e a respetiva taxa por 100 mil habitantes no país e na Europa ocidental (a Europa oriental tem uma contabilidade própria) de 1990 a 2018.
Assim, em 2006, o momento em que no gráfico, para um olhar apressado - o dos consumidores de redes sociais -, Portugal parece ter uma taxa de homicídio muitas vezes superior à da Europa, aquela foi de 1,5 (correspondendo a 155 vítimas) por cem mil habitantes contra 5,5 da europeia, quase quatro vezes mais. Em 2018, as taxas são, respetivamente, 0,8 (81 vítimas) em Portugal e 2,8 na Europa ocidental.
Não será pois surpresa que a alegação "só em 2018 a taxa de homicídios voluntários consumados aumentou 34,1%" se revele também pura mentira. Sendo certo que entre 2017 e 2018 se verificou em território nacional um aumento de 76 para 81 (mais cinco) no número de vítimas de homicídio intencional, a percentagem de aumento é de 6% - nada que se pareça com os 34,1% referidos. Mais: no período em causa, 2018 é o terceiro ano com menor número de homicídios, depois de 2016 e 2017. Aliás a taxa deste crime tem vindo a descer consistentemente em Portugal desde 1990.
Acresce que, contrariando a imagem que o movimento zero quer vender - a de um país onde o crime, e nomeadamente o crime violento, aumenta, como se lê no post, devido ao "desrespeito e desconsideração pelos agentes de segurança" - uma muito alta percentagem dos homicídios ocorridos anualmente em Portugal ocorre no contexto de violência doméstica.
Em 2018, por exemplo, de acordo com o Observatório de Imprensa de Crimes de Homicídio em Portugal da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, foi o caso de 32 dos homicídios registados; em 2019, terão sido 35; sempre mais de um terço do total de mortes intencionais. Valores que levaram a atual ministra da Justiça a, enquanto procuradora-geral distrital de Lisboa, denominar a violência doméstica de "terrorismo", pondo a hipótese de se tratar "do fator homogéneo com mais peso nos homicídios dolosos, considerando todas as pessoas que morrem por causa do laço doméstico". A este propósito diga-se que não raro existem vítimas mortais relacionadas com este contexto que não integram o "tipo" de vítima do crime de violência doméstica: a então procuradora dava o exemplo de uma advogada que estava a tratar de um divórcio e foi assassinada por isso, mas pode-se recordar também o guarda da GNR que em 2009, na sequência do homicídio de uma mulher pelo ex companheiro à porta do posto daquela polícia, em Montemor-o-Velho, seria também morto pelo mesmo criminoso.
Já o tal sistema judicial que o movimento zero acusa de "melindroso" - seja lá o que for que quer dizer com isso -, assegura ser o país, de acordo com o último relatório sobre prisões do Conselho da Europa, respeitante a 2018, o segundo com as penas mais longas em todo o continente; só o Azerbaijão tem um tempo médio de encarceramento superior. Enquanto a média europeia é de 10,6 meses, a portuguesa aumentou em 2018 para 32,4 meses.
Trata-se sem dúvida de um panorama típico de um "olimpo para criminosos" (outra expressão difícil de decifrar: quererão realmente dizer que quem comente crimes em Portugal é tratado como um deus?), sobretudo tendo em conta que, por mais que custe a quem inventou o movimento zero, o país está há muitos anos entre os mais pacíficos do mundo.
Num aspeto, porém, é capaz de se notabilizar pela negativa no que respeita à insegurança: o da existência de um alegado movimento de agentes das forças policiais que não só, como se constata, mente com quantos dentes tenha, esforçando-se por criar na população e nos próprios polícias a ideia de que vivem numa selva, como passa a vida a fazer ameaças mais ou menos explícitas à ordem constitucional e à democracia.
Num post de 2 de junho, por exemplo, lê-se: "Se continuarem, voluntariamente e conscientemente, a não quererem mudar o nosso rumo... É garantido que este sentimento que nos acompanha há décadas e que tem sido tão "corrosivo" à nossa dignidade vá inevitavelmente resultar numa manifestação coerciva da nossa insatisfação".
Mesmo descontando os óbvios problemas no domínio da língua portuguesa evidenciados pelos diversos textos, como interpretar isto senão como uma ameaça ao estado de Direito e à ordem constitucional? Sendo as polícias por definição um instrumento ao serviço da lei e da Constituição, obrigadas a respeitar os legítimos representantes do povo, por ele eleitos, como conceber que haja quem se apresente como polícia e assuma esta postura de rufia?
Como conceber que haja polícias neste alegado movimento - surgido, lembremos, como reação à condenação de agentes da PSP da esquadra de Alfragide por sequestro e agressões a jovens negros da Cova da Moura e adotando como sinal distintivo um gesto usado pelos defensores da supremacia branca - que nos últimos dias começou a identificar pessoas que nas redes sociais criticam as polícias, exibindo as suas fotos e nomes numa óbvia tentativa de intimidação, típica de organizações mafiosas?
Não há obviamente um único agente de autoridade digno desse nome numa agremiação com estas características, não sendo admissível que se continue a admitir que aldrabões se apresentem como tal, difamando os agentes policiais que dizem representar. Tardando ações de quem de direito - chefias das corporações, governo e justiça - é essencial que os media não continuem a aceitar noticiar iniciativas e comunicados de anónimos como se de uma real associação de polícias se tratasse. Ou há caras e nomes ou o repugnante movimento zero deve ser tratado como o zero que é.
Jornalista