Corda completamente esticada. O governo vai demitir-se se o Parlamento aprovar em votação final e global o que na quinta-feira, só com os votos contra do PS e os favoráveis de PSD, BE, CDS e PCP, aprovou na especialidade: um decreto prevendo a reposição salarial total do tempo de carreira congelado aos professores (nove anos, quatro meses e dois dias)..O anúncio foi feito ontem numa declaração ao país pelo primeiro-ministro - declaração que decorreu depois de uma reunião de uma hora, em Belém, com o Presidente da República (PR) e depois de, durante a manhã, o núcleo de coordenação política do governo ter estado reunido em São Bento a analisar as consequências da aprovação do decreto..Costa conseguiu, porém, tirar pressão do PR e, ao mesmo tempo, não se antagonizar completamente com os partidos que desde o final de 2015 formam a geringonça (BE+PCP+PEV)..Quanto ao PR - que se manteve em silêncio absoluto -, Costa salvaguardou a sua posição quando anunciou que se demitirá no momento da votação final e global do diploma. Ou seja: o chefe do governo não vai sequer esperar pelo momento seguinte, que é a decisão do PR de promulgar (ou não) o decreto. Portanto, mesmo que Marcelo Rebelo de Sousa decida vetar o decreto - devolvendo-o ao Parlamento ou enviando-o para o Tribunal Constitucional (TC), algo que, aliás, nunca fez -, a demissão do governo já estará consumada. E quanto ao TC, uma coisa é garantida: se não for o Presidente a acionar a sua atuação, será o grupo parlamentar do PS a fazê-lo, embora, neste caso, só seja possível uma fiscalização sucessiva da lei, ou seja, sem que o TC tenha prazos para decidir..Nuances dentro do governo.Já quanto aos partidos que formam com o PS a maioria de esquerda, o primeiro-ministro protegeu-os dizendo que, na votação na comissão, BE e PCP fizeram o que sempre defenderam. Dito por outras palavras: "Se alguém foi incoerente, foram os outros dois partidos [PSD e CDS] que se juntaram ao Bloco de Esquerda e ao PCP.".A forma como António Costa fez questão de proteger os partidos à esquerda do PS revelou, aliás, que nesta matéria nem toda a gente pensa da mesma maneira dentro do governo. É que, ontem de manhã, em declarações à Rádio Renascença, o ministro dos Negócios Estrangeiros - membro do núcleo duro de coordenação política do governo - tanto "malhava" por igual na direita como na esquerda: "Não consigo compreender como partidos que fizeram acordo com o PS para que haja esta solução de governo, que têm aprovado propostas no âmbito desse acordo, que tiveram o PS a ceder em posições importantes para acolher as suas propostas, possam hoje pôr em causa a sustentabilidade desta solução, numa coligação negativa com as forças da direita", dizia, quanto ao BE e ao PCP. E quanto ao PSD e CDS acrescentava: "Também não consigo perceber como partidos da direita, que estão sempre a agitar o fantasma da suposta bancarrota, possam alegremente (...) aprovar uma medida que significa 800 milhões de euros anuais em despesa permanente.".Os primeiros sinais da crise.No mesmo sentido se pronunciou o presidente do PS e líder da bancada socialista, Carlos César, dizendo ser já antecipável que, depois desta crise, dificilmente se poderá repetir na próxima legislatura a solução da geringonça - forma também de lançar veladamente o discurso da maioria absoluta: "Não creio que possa haver um futuro para um projeto apoiado por esses partidos, com o PS a assumir responsabilidades de governo, se esse sentido de responsabilidade não for retomado por parte do PCP e do BE.".Os primeiros sinais da crise surgiram no dia 16 de abril, por via de uma notícia da Rádio Renascença, dando conta de que o governo ponderava demitir-se se viesse a ser aprovada uma norma no Parlamento prevendo a contagem total do tempo de carreira congelado aos professores. Fonte do gabinete do primeiro-ministro refutava essa hipótese - mas concordava com a ideia de que um diploma destes tornaria "insustentável" a ideia de finanças públicas equilibradas..António Costa explicou que se demitirá porque o pagamento integral do que foi congelado aos professores obrigará o executivo a alargar essa medida a outros corpos especiais da função pública (militares da GNR e das Forças Armadas, por exemplo), implicando isso um acréscimo anual de despesa na ordem dos 800 milhões de euros. E mais 800 milhões de euros/ano de despesa implicarão, segundo acrescentou, cortes no investimento público ou aumentos "significativos" de impostos..Decreto desconhecido.Para a decisão de avançar para a ameaça de demissão contou também o que o Presidente da República já havia dito sobre o assunto. Há algumas semanas, numa entrevista na RTP a propósito dos 45 anos do 25 de Abril, Marcelo Rebelo de Sousa insistiu no argumento do precedente: que doravante, num momento de grave crise económica, qualquer governo que decida congelar salários terá depois, necessariamente, de prever a sua reposição integral (esse mesmo governo ou outro a seguir). O conteúdo concreto do diploma votado na especialidade permanece desconhecido. O articulado resultou de uma negociação entre PSD, BE, CDS e PCP quase "palavra a palavra", tendo estado ontem os serviços parlamentares a "compor o puzzle"..Posições extremadas.António Costa esticou a corda completamente, mas, nos partidos que aprovaram o decreto na especialidade, a resposta foi num tom igual: também ninguém cede..A uma só voz, os líderes de PSD, BE, PCP e PEV insistiram em desmentir o argumento de António Costa segundo o qual o decreto implicará já despesa adicional neste ano (o chefe do governo falou mesmo na necessidade de um Orçamento Retificativo). Também salientaram, em uníssono, que o decreto apenas obriga o governo a negociar com os sindicatos a reposição salarial integral, mas sem que haja um prazo para essa negociação se conclua..Rui Rio colocou as ameaças de demissão apenas à conta de uma peça de "teatro" do primeiro-ministro para tapar o facto de a campanha para as eleições europeias estar a correr mal ao PS. Assunção Cristas falou em "fantochada" e Jerónimo de Sousa disse que a pressão do primeiro-ministro é "inaceitável", recusando o PCP "ultimatos" (palavra, aliás, também usada por Catarina Martins)..Marcelo em silêncio, eleições em julho?.Em Belém, a crise apanhou o Presidente da República acabado de chegar de uma visita à China. Marcelo ontem não falou publicamente nem está previsto que o faça nos próximos dias. Na terça-feira partirá para Itália, para participar numa reunião da Cotec..A votação final global no plenário da Assembleia da República deverá ser agendada para 15 de maio. Se o primeiro-ministro confirmar nesse dia a ameaça de demissão e Marcelo for ultrarrápido a convocar eleições antecipadas, estas deverão decorrer a 14 de julho, o primeiro domingo possível depois de passarem os 55 dias constitucionalmente obrigatórios para o PR marcar a data.