O império do futebol das sociedades, dos ativos e dos biliões de euros está ironicamente agarrado aos antigos adeptos. Os que assomam aos mais altos planos das cidades e ouvem os sons de um jogo de futebol como se fosse uma "peladinha" de rua entre amigos. Está solitário o império do futebol-negócio, está solitário o império do futebol português pós-25 de abril, o FC Porto. O Dragão saído da imaginação de Jorge Nuno de Lima Pinto da Costa. Quando o presidente do FC Porto subiu à cadeira de sonho, em 1982, os camarotes do povo do futebol num país de futebol, forçados e apaixonados, eram os carros, os prédios, os postes de iluminação, as árvores. Eram postos verticais de uma mole horizontal na relação com o jogo mais espantoso do mundo. Eram sócios, não detentores de lugares anuais; eram pessoas que se perdiam de amores e ódios pela bola. Eram empresários, operários e funcionários que tiravam da boca para dar ao emblema da terra. Após 86 dias de interrupção (provocada pela Covid-19), voltou a rolar o futebol profissional. O futebol-negócio que sobrevive à automação total através das emoções dos seguidores de equipas, e do seu dinheiro como consumidores de um mercado global. As varandas, as janelas e as rotundas foram as bancadas para o segundo jogo (pouco antes, tinha terminado o Portimonense 1-0 Gil Vicente) da 25.ª jornada da I Liga. Às 18:00, tudo se parecia com o "antigo normal" - gente a fazer corredores humanos nas vias públicas, cidadãos comuns a falar com jornalistas e a pedir que os filmassem. O ultra-mediatismo de um negócio que vive luxuosamente, a partir do nível do FC Porto para cima (ver contas da UEFA e da FIFA),. Mas era uma expressão postiça - lá dentro, no estádio, menos de 100 profissionais, do lado de fora, grupos de 15 a 20 pessoas, umas com máscara, outras sem máscara. E as ruas de acesso ao estádio estavam azuis. Branco e azul e azul e branco. Às 19:43, o autocarro do FC Famalicão aproximou-se do palco sob um coro de "Fama, Fama, Fama". Cinco minutos exatos depois era a vez do dragão móvel furar a multidão - "Porto, Porto, Porto". Ir a um jogo para ficar de fora, com um perímetro de segurança de 500 metros, requer muita paixão ou muito amor de perdição (mote do Famalicão tomado do título de um romance publicado em 1861, seminal na obra de Camilo Castelo Branco e, pois claro, do romantismo). Até porque nem cafés ou restaurantes podiam franquear para ver o jogo na televisão. Por razões de segurança, estava tudo fechado. Tudo? Não, a Casa do FC Porto de Vila Nova de Famalicão estava aberta. "Vamos transmitir o jogo, mas temos a lotação reduzida a um terço. Para aí umas trintas pessoas no total. Ainda temos duas ou três mesas disponíveis, mas há pouco começámos a pedir 5€ de consumo mínimo, para evitar grandes aglomerados. Já recusámos a entrada a algumas pessoas, para estar um ambiente mais tranquilo", contava quem atendeu o telefone. Esta supremacia portista, comum aos maiores clubes portugueses (Benfica e Sporting são os outros), irritava um Fama Boy, nome da claque do clube minhoto. Ainda faltava quase uma hora para o apito inicial, ouvia-se o "antigo normal" que transitou para o "novo normal": os petardos lançados numa rotunda próxima do estádio. "Tudo tranquilo", comentava um agente de segurança. "É só o Porto. O Famalicão não interessa", lamuriava-se o apaniguado do clube minhoto, encostado às barreiras que delimitavam o perímetro de segurança. "É pequeno, não é? Está aqui a polícia toda de Famalicão. Olhe, mandam mais do que nós aqui em casa. É uma vergonha", sentenciava. De facto, o que mais se ouvia era os guturais sons da tribo portista. "Poorto. Poorto, Poorto". Até ao primeiro golo do Famalicão, às 22:27. Aí, o estrondoso apoio dos dragões cobria a cidade e chegava ao estádio, confirmavam os jornalistas radiofónicos..Regresso ao presente.As rádios a retomar protagonismo numa era em que é preciso pagar tudo e mais um par de botas para se acompanhar a equipa - a não ser que se pertença a um grupo organizado, em que há descontos, digamos, de fidelidade. O que até dava para fazer viagens à infância, aos famosos anos oitenta do século passado. Na altura, Pinto da Costa era um príncipe, depois passou a rei Dragão, mas esta época revive climas mais típicos dessa era, há quase 40 anos. Tempos de verões quentes nas Antas, com ruturas (do próprio Pinto da Costa, então chefe do departamento de futebol, função que agora é dividida por vários títulos modernos e funções multiplicadas pelo avanço científico e tecnológico) para regressar triunfal e para a presidência. Um cargo em que tem sido encarado, e não só pelos portistas, como um líder infalível e incontestado. A folha de títulos, do presidente mais medalhado da história do jogo, atestam a competência. Mas nos últimos cinco anos o Benfica ganhou quatro campeonatos, as vitórias garantem mais dinheiro, e em casa em que não há pão... De tal forma são tempos extraordinários que nas eleições de sábado vai enfrentar pela primeira vez em 38 anos dois concorrentes na corrida à presidência. Na verdade, mal enfrentou um verdadeiramente em todo este tempo. Racionalmente, quem se arrisca a ser envergonhado numa corrida frente ao presidente com mais êxito do futebol mundial?.Voltando ao presente e ao jogo, Corona - ai, a ironia dos trocadilhos - empatou e notou-se que já não havia tanto fogo de dragão na rua. Mas os festejos fizeram-se sentir e bem, mesmo assim..O sublinhado foi feito pouco depois, quando Pedro Gonçalves fez o golo do triunfo famalicense. Famalicão estremeceu com o volume e a intensidade das celebrações nas ruas, prédios. Na rua..É sempre na rua que os impérios sentem a solidão - por oposição à exuberância do povo que protesta ou celebra. O império do negócio-futebol voltou a ter jogos para vender, mas todos se queixam da ausência de adeptos, contrastando outras manifestações do entretenimento nacional com espectadores com o vazio das bancadas. "Filhos da put@", desabafava um portista no final do jogo, passando inquieto com dois camaradas de emblema numa rua contígua ao Estádio Municipal de Famalicão em que se ouvia o Amor de Perdição que serve de mote ao clube minhoto (e que de Camilo Castelo-Branco). A cidade esvaziava-se de visitantes. E enchia-se de orgulho famalicense: foguetes subiram e estouraram no céu carregado de Famalicão, mal o apito final soou. Afinal, foi a segunda vez que o clube bateu o FC Porto em casa - a outra tinha sido em 1947, ainda Jorge Nuno não tinha cumprido dez anos de idade.