Coronavírus. Internamento obrigatório em Portugal? Há quem defenda a solução

Portugal é dos poucos países da Europa sem poder para decretar quarentena compulsivamente. Há quem defenda a Constituição e há quem acredite que deve ser revista. O dilema voltou, com o vírus de Wuhan.
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Quando o C-130 da Força Aérea Portuguesa aterrou no Aeroporto Militar de Figo Maduro, na noite de domingo, mesmo que ainda não se conhecessem os resultados (negativos) dos testes médicos quanto à presença do coronavírus, havia um alívio inicial: os 20 passageiros que viajaram de Wuhan, na China, onde deflagrou o surto do vírus 2019-nCoV, aceitaram, todos, permanecer em quarentena.

Este isolamento, motivado pelo perigo de contágio, não pode ser decidido por nenhuma entidade estatal. Em Portugal, ao contrário da maioria dos países europeus, o "internamento compulsivo" é limitado, pela Constituição, a uma só doença, a anomalia psíquica. Nenhum outro caso tem respaldo legal. É por esta razão que a ameaça do coronavírus trouxe de volta um debate antigo.

Francisco George, anterior diretor-geral da Saúde e atual presidente da Cruz Vermelha Portuguesa, considera que "é altura de deputados da Assembleia da República alterarem a alínea h, do número 3, do artigo 27.º da Constituição, no sentido de passar a ser permitido o internamento obrigatório por motivos de saúde pública. Inadiável."

Mas essa alteração é polémica. As suas consequências - benéficas e nocivas - têm sido debatidas por especialistas nos últimos anos. E são, como todos os dilemas, muito interessantes.

O bom senso chega?

José Poças é médico especialista em medicina interna, doenças infecciosas e medicina do viajante. Nesta especialidade recebeu, nas últimas semanas, vários portugueses que tinham viagem marcada para a China. "Tive de convencer pessoas a não viajar. Eu não teria qualquer hesitação... mas para muitas pessoas era a viagem de uma vida." Por isso, explica, o argumento de que basta "bom senso" não chega para lidar com uma situação deste tipo.

"O assunto encerra contornos do ponto de vista ético que é preciso acautelar - sou muito sensível a isso", pondera José Poças, um defensor da mudança na lei que permita o internamento compulsivo. "Essa lei já devia existir", defende. Por isso, na última madrugada enviou um texto que escreveu, há três anos, na revista da Ordem dos Médicos, para a ministra Marta Temido e para a comissão parlamentar de Saúde. Ali, com recurso a três casos clínicos que acompanhou, José Poças defende que estamos perante "uma realidade preocupante que exige das autoridades responsáveis novas e adequadas respostas."

Até agora, em Portugal, o bom senso permitiu que o internamento existisse no caso das suspeitas de perigo de contágio com coronavírus, mesmo não havendo lei. Para a ministra da Saúde, Marta Temido, a chegada do avião militar com 18 portugueses e dois brasileiros, no domingo, foi uma dupla vitória: conseguiu a quarentena, sem ter como a impor. As vantagens dessa situação foram resumidas, na conferência de imprensa que a ministra deu, logo após o desembarque em Figo Maduro: "Por razões de segurança, para os próprios e para a comunidade, durante os próximos 14 dias, todo o grupo ficará em isolamento profilático. Esta opção fundamenta-se na fase epidérmica em que nos encontramos a nível internacional, fase de contenção, está em linha com o que está a ser realizado por outros países e contou com a aprovação dos nossos concidadãos", explicou Marta Temido.

Portugal é um dos raros países da União Europeia que não têm qualquer base jurídica para decretar quarentenas, no caso de surtos de doenças infecciosas. Todos os países mais próximos (Espanha, França, Itália, Bélgica, Holanda) têm leis que permitem aos poderes públicos isolar doentes. E usaram-nas em casos recentes, como o do ébola ou do H1N1.

Eficaz ou perigoso?

Se o anterior diretor-geral da Saúde defende o internamento compulsivo em caso de doenças contagiosas, como o coronavírus, a atual mostra reservas. Para Graça Freitas, "o internamento compulsivo é para doentes, não é para pessoas saudáveis que estão em período de incubação e que não têm sintomas (...) Os doentes costumam procurar cuidados. Portanto, dificilmente um doente não só não procura cuidados como anda a contagiar os outros".

Por isso, explicou Graça Freitas, a situação portuguesa responde aos problemas: "Os que não estão doentes e podem estar a contagiar ficam em confinamento. Mas é um confinamento que é negociado com as pessoas. E são-lhes dadas as condições para esse confinamento."

Num artigo de opinião, no Público, Francisco George argumentou de outra forma: as quarentenas, ou internamentos ordenados pelo Estado, são "medidas quase sempre impopulares, mas que parecem confirmar a sua eficácia ao reduzirem consideravelmente a probabilidade de exportação da epidemia (50% a 75%)". Essencial, para George, "é impedir o crescimento descontrolado da magnitude do problema e, portanto, a sua extensão pandémica (isto é, a propagação simultânea pluricontinental)".

Embora a Ordem dos Médicos não tenha uma posição oficial sobre o assunto, também entre os especialistas há visões diferentes, como vemos. No passado, quando o tema foi alvo de um abaixo-assinado de médicos, que pediam a revisão constitucional que permitisse o internamento compulsivo como forma de impedir a propagação de doenças como a tuberculose, essa iniciativa foi considerada "muito pouco aceitável do ponto de vista ético" pelo então bastonário da Ordem dos Médicos, Germano Sousa. A mudança constitucional, para Germano de Sousa, poderia lançar a ideia de que estaria a ser autorizada uma "espécie de campos de concentração" para doentes ou apenas suspeitos de poderem facilitar o contágio de uma doença.

Outros médicos explicaram, na altura, que a obrigatoriedade do internamento podia ser contraproducente, por dissuadir alguns doentes de aceder ao serviço de saúde. O Observatório Português dos Sistemas de Saúde considerou ainda que a medida podia ser "discriminatória".

Liberdade ou contingência?

À possível eficácia da quarentena, a responsável parlamentar do PS pela área da Saúde, e cronista do DN, Maria Antónia de Almeida Santos, responde com a privação de liberdade que uma medida dessas traria. "O internamento obrigatório seria impensável, só para situações muito extremas que eu nem consigo imaginar."

Mas o constitucionalista e ex-eurodeputado do PS Vital Moreira tem uma opinião diferente. O internamento compulsivo "não tem cobertura constitucional, mas devia ter", explica, em declarações ao DN. "Desde que validado por um juiz", acrescenta.

Nas suas célebres e estudadas anotações à Constituição, Gomes Canotilho e Vital Moreira apontam este problema: "A Constituição deixou por resolver um problema com tanta ou mais delicadeza jurídico-constitucional e jurídico-penal, que é o internamento compulsivo de perigo de pessoas portadoras de doenças infetocontagiosas e, por conseguinte, suscetíveis de cometerem crimes de perigo."

É que Portugal tem outra especificidade legal. A Constituição não dá ao Estado nenhum poder de decretar internamento médico (para estas doenças contagiosas), mas a lei atribui responsabilidades aos cidadãos que as propaguem. O artigo 238.º do Código Penal pune com prisão até oito anos o crime de "propagação de doença".

É um crime raro nos nossos tribunais. Mas é uma arma para a argumentação dos serviços de saúde, quando tentam convencer doentes, ou suspeitos de contágio, a permanecer em isolamento. Em 2009, durante o surto de H1N1 (gripe A), o Ministério da Saúde emitiu um comunicado em que explicava os riscos legais: "Os cidadãos não podem ser compelidos a aceitar tratamentos e/ou internamentos compulsivos, mas em situações que podem colocar em risco a saúde de terceiros os incumpridores poderão ser responsabilizados por crime de transmissão de doença contagiosa."

Para os defensores da alteração constitucional, que permita o internamento obrigatório nos casos de propagação de doenças infetocontagiosas, há um outro argumento: a Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais decreta que "toda a pessoa tem direito à liberdade e segurança. Ninguém pode ser privado da sua liberdade, salvo nos casos seguintes e de acordo com o procedimento legal: (...) e) Se se tratar da detenção legal de uma pessoa suscetível de propagar uma doença contagiosa."

Há numerosas teses de mestrado em Direito sobre este tema, que apontam vários outros problemas: porque se deve fazer uma exceção da "anomalia psíquica", por exemplo...

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