A história de Besta é vagamente inspirada no caso verídico de Edward Paisnel, um agressor sexual em série que durante toda a década de 1960 assombrou a população da ilha de Jersey, no canal da Mancha. Contudo, e aparte o valor de tal referência, não se espere daqui um filme ao estilo de uma investigação policial, com um mecanismo narrativo a preceito. Em nenhum momento esta intoxicante primeira longa-metragem do britânico Michael Pearce estabelece como ângulo restrito a figura de um criminoso. Afinal, não é isso que interessa particularmente. A "besta" do título é menos uma personagem identificada do que uma pista para a nossa leitura da atmosfera malsã que se vai criar a partir da conjuntura de um romance..Assim, a verdadeira protagonista do filme é uma jovem mulher, Moll (Jessie Buckley), sufocada no seu dia-a-dia pela mãe passivo-agressiva e controladora (uma impecável Geraldine James), mas também pela experiência pouco saudável naquela pequena comunidade. E se à primeira vista o que se deduz da personagem é a antítese da indisciplina, com uma amostra do perfil de alguém tímido e amedrontado, que na sua própria festa de aniversário surge como uma mera figurante no jardim, o que vamos perceber mais à frente é que há, de facto, qualquer coisa obscura reprimida dentro dela..O verniz começa a estalar no momento em que, nessa festa, a mãe lhe ordena que vá abrir champanhe para comemorar o anúncio da gravidez da irmã - algo feito de modo perverso para desviar ainda mais as atenções dos convidados em relação à aniversariante. Aí ela sai de casa e vai festejar sozinha para um bar, acabando, no dia seguinte, por regressar à morada acompanhada por um estranho sedutor de quem nem sequer sabe o nome..Este, Pascal Renouf (Johnny Flynn), qual brisa refrescante, emerge literalmente da paisagem com um charme marginal que parece enfeitiçar a jovem, tornando-se o namorado que qualquer família da boa sociedade rejeita pela provocadora falta de maneiras. Mas com a consequente rebeldia e liberdade emocional da protagonista, que traz uma espécie de inaudita sensação de estar a viver um conto de fadas, vem uma nuvem escura: há um serial killer à solta na ilha e é sobre Pascal que as autoridades locais fazem recair as principais suspeitas....A partir daqui, o filme concentra-se na incerteza da culpa dele e na transformação progressiva e imprevisível de Moll - cuja intérprete, Jessie Buckley, merece todos os adjetivos, de espantosa para cima -, trabalhando a forma como a suspeição ganha contornos psicológicos ambíguos e secretos. Não sabemos bem se ela acredita na inocência dele, mas vemos que a paixão veemente a leva a descobrir um novo território de sentimentos e impressões até então bloqueados pela ausência de qualquer aventura, para além do mais, sensorial..Besta cresce assim, sorrateiramente, como um corpo estranho no panorama da mais recente cinematografia britânica, recusando-se a óbvias convenções narrativas e procurando uma linguagem sensível a vários géneros (um pouco de thriller, drama e romance), com um quê de Suspeita, de Hitchcock. Por outro lado, e tirando partido da vivência insular, é um filme alicerçado na expressão da natureza - a energia das ondas marítimas, a pacatez das dunas, a floresta, os penhascos -, que se conjuga com a metamorfose interior da protagonista. À medida que o tempo passa, vemo-la cada vez mais telúrica, mais próxima da terra, onde procura sujar-se como forma de catarse, enquanto se sugere que também está a escavar algo dentro de si... E a beleza nociva de tudo isto é que o mistério por resolver dá lugar a uma suspensão laborada com inteligência dramática. Michael Pearce quer fazer de nós detetives da alma..*** Bom