2020 sentou mais 350 mil portugueses por dia em frente à TV. A maioria a pagar
O recolhimento para todos e o isolamento profilático e a quarentena para muitos empurraram os portugueses para o sofá e para os ecrãs. Em 2020, foram mais 349 mil pessoas por dia a assistir televisão, num aumento de consumo sem precedentes para os quase dois milhões e 300 mil diários. Destes, 196 mil, mais de metade, começaram, em ano de pandemia, a pagar para ver quer através de canais por subscrição (mais 123 mil do que em 2019) e a usar a TV para visionamentos como o streaming, inserido na categoria "Outros" (mais 73 mil pessoas diárias).
As emissões em sinal aberto - a RTP, SIC, TVI - cresceram em audiência na ordem dos 15,6%, registando um aumento de entradas diárias de 153 mil espectadores, atingido o milhão e 139 mil médio diário. Porém, este acréscimo de auditório não inverteu a tendência da divisão do mercado que se regista em Portugal, com a televisão generalista a perder, na média anual de 2020, cerca de 1% de quota de mercado (para os 50,2%) face a 2019.
O cabo, canais pagos que se instalaram, no terceiro trimestre deste ano, em nove de cada dez lares nacionais, também recuou, embora se fale numa perda "pouco significativa" de três décimas face a 2019. Ou seja, mesmo com mais gente a pagar para ver televisão (já são 4,2 milhões no total nacional), o bolo não cresceu à mesma proporção.
O segredo está, então, no aumento exponencial do uso da televisão para outros fins como as plataformas de streaming (HBO, Netflix e outras) e jogos. Este universo cresceu, nos últimos 12 meses, 31,7%, fixando uma média de 303 mil e 600 entradas diárias.
Esta divisão do auditório entre os canais com a quebra nas generalistas em sinal aberto não as faz, contudo, arredar pé, muito menos a desistir, de investir em conteúdos novos. Paira, aliás, no ar a ideia de mudança e de embate de audiências feroz, sobretudo entre SIC e TVI, para os primeiros dias de 2021. Uma troca de palavras e números frequentes que tem ganhado expressão desde a mais impactante, ruidosa e milionária mexida da televisão nacional quando, em julho último, Cristina Ferreira, apresentadora, diretora e agora acionista da Media Capital, se mudou da SIC para a TVI. Caso, aliás, que corre em tribunal.
Entre novas produções, os canais em sinal aberto preparam-se para estrear novos, mas já conhecidos, formatos: A Máscara, a novela Amor, Amor e o regresso diário do magazine policial Linha Aberta, na SIC, o Big Brother Duplo Impacto, as manhãs e as tardes da TVI e juntar a séries e filmes portugueses que chegam pela mão da RTP como Variações. Tudo isto nos primeiros quatro dias do ano e a somar a emissões especiais de continuidade e cenários renovados em todos os canais.
Se compararmos com o ano passado, em igual período só houve um arranque em antena: A Máscara, na SIC, e exatamente no primeiro dia do ano. A diversidade, nesse feriado, chegava através da exibição de filmes, que estão agora mais afastados da programação dos generalistas (cinco na SIC, três na TVI).
Opões que implicam investimentos, embora a tónica dominante evocada por fontes das estações aponte para gastos em linha com o já praticado noutros anos, com recursos já existentes nos canais. Se o segredo é alma do negócio, o volume de investimento não se fica atrás. A verdade é que a 3 e 4 de janeiro de 2021 é quase impossível dar descanso ao comando entre os generalistas, tanta é a estreia e reformulação dos programas diários previstas [segunda, 4 de janeiro]. A grande atenção concentra-se, aliás, em Manuel Luís Goucha, que, aos 65 anos, diz adeus a quase três décadas de programas matutinos (primeiro na RTP1 e depois na TVI) para se mudar para as tardes de Queluz de Baixo. Uma aposta com margem de risco num país televisivo resistente a mudanças de rostos nos horários nos quais se celebrizaram.
"A TV generalista nunca teve tanta concorrência, mas, nos últimos anos, nunca foi tão vista como em 2020. A pandemia deu-lhe uma nova centralidade e relevância acrescida", analisa Nuno Santos. O diretor-geral da TVI lembra também que "é certo é que, com menos receita, é necessário produzir mais barato, ser mais criativo, procurar soluções alternativas para financiar os projetos como, por exemplo, o conteúdo patrocinado". "É o que temos feito e faremos", promete.
Para a SIC, o diretor-geral de Entretenimento Daniel Oliveira explicou que este já anunciado reforço ao fim de semana, e que já começou ontem [sábado], não é resposta à concorrência. "Não creio. Já tínhamos pensado nestas propostas. Este ano, 2020, foi muito exigente a vários níveis e foi decidido guardarmos estas novidades para o arranque de ano e para este novo começo", explicou o responsável em conferência de imprensa. Daniel Oliveira fala antes de o canal entrar de "cara limpa" no novo ano. "Estamos focados na nossa proposta de programação. São apenas as nossas apostas, coerentes com o que tem vindo a ser feito", insiste.
José Fragoso, diretor de programas da RTP, lembra que o mercado televisivo quebrou até menos que outras indústrias culturais como a música ou o cinema. Considera que as televisões "tiveram uma capacidade de adaptação muito grande com a chegada da pandemia e com grandes benefícios para o público", ainda que todos os canais tenham vivido "uma situação difícil".
Recorde-se que a estação de Balsemão fecha as contas anuais a liderar, com 20,2%, face a 15,2% da TVI e 12% da RTP1. Dados médios distribuídos pela Comissão de Análise de Estudos de Meios. Em conferência de imprensa, Daniel Oliveira vinca que "a SIC é a única televisão a crescer em relação a 2019". "É o nosso melhor resultado desde 2013, é a maior diferença entre o primeiro e o segundo lugar desde 2009 e isso é muito relevante", referiu.
Os últimos dois meses do ano ficaram marcados por um encurtamento de distâncias entre as duas estações comerciais, com a SIC a subir uma décima entre novembro e dezembro, para os 18,9% e com a TVI a ascender dos 16,8% para os 17,2% em dezembro (dados consolidados até 22 de dezembro).
Mesmo com os canais a recusarem as palavras "guerra" ou "batalha", janeiro é agora o palco central de uma disputa televisiva cuja vitória, por imperativos de conquista de investimento, tem de ser clara. Esforços que os colocam já a apontar baterias para fevereiro, com a chegada de, entre outras propostas, do recém-galardoado chef Ljubomir Stanisic à SIC com Pesadelo na Cozinha e com o concurso de talentos All Together Now, na TVI, conduzido por Cristina Ferreira.
Os números anuais ainda não estão fechados, mas a diminuição de publicidade televisiva em 2020 pode estar "na ordem dos 17%". Quem o diz é Alberto Rui Pereira, presidente da Associação Portuguesa de Agências de Meios, que fala em valores a rondar os "500 milhões de euros líquidos em 2019", que se distribuem, em média, "nos 40% para a televisão generalista e 10% para os canais são Cabo".
Milhões que provam o poder que ainda está nas mãos das televisões em sinal aberto e que, somadas, valem metade do mercado de quem vê televisão. "Os canais free-to-air (RTP, SIC, TVI) são muito abertos, chegam a muitos consumidores, têm públicos muito alargados e, por isso, são particularmente interessantes. A outra grande vantagem que ainda têm é que são imprescindíveis na comunicação das marcas pela cobertura que geram e pela velocidade com que constroem essa cobertura", sublinha o responsável da APAME, entidade que reúne agências de meios, que comercializam os espaços publicitários. "Qualquer um dos três canais abertos tem mais audiência do que qualquer temático individualmente. A CMTV, por exemplo, tem quatro pontos de share (quota de mercado), mas, por exemplo, a RTP1, que é o que tem menos em aberto, tem à volta de 12 a 13%", compara.
"2020 foi um ano de queda do investimento publicitário que decorreu da pandemia. Houve uma queda abrupta em março e abril e, apesar de tudo, bons sinais de recuperação no último quadrimestre e perspetiva relativamente otimistas, em linha com a economia para 2021/2022", antecipa o diretor-geral da TVI, Nuno Santos.
Sobre as "guerras" de audiência e de programação, as marcas - mesmo em recessão devido à pandemia - não desistem de comunicar. "Elas olham com agrado porque é um sinal de vitalidade e dinamismo. Mesmo que estejam em guerras televisivas, tal representa mais investimento em conteúdos, mais esforço, mais foco em ter boas grelhas e bons programas", refere Alberto Rui Pereira.
E com muitas marcas a perder "entre 50 e 70%" das suas vendas, fruto da pandemia, elas mantêm o esforço porque, refere o presidente da APAME, "têm de continuar a comunicar, a existir". E avisa: "Todos os estudos indicam que as marcas que continuam a comunicar em ciclos de crise são as que ficam mais fortes nos períodos seguintes. Foi sempre assim, quem mais investe e inova é quem mais resiste no pós-crise."