Engana-se quem pensa que a realização, neste ano, da Festa do Avante! foi dentro do PCP uma decisão unânime. Os debates sobre se se deveria realizar ou não percorreram toda a estrutura do partido, do topo para a base e depois no sentido inverso, e chegaram mesmo ao Comité Central, o "parlamento" do PCP..As divisões existiram, sim - só não transpareceram para o exterior porque no PCP leva-se muito a sério o princípio segundo o qual o que se passa no partido fica no partido..Além do mais, a certa altura, a estrutura começou mesmo a achar que a realização da Festa estava de facto a ser alvo de uma "campanha reacionária" organizada à direita do PCP. Nessa altura, mesmo os que internamente sentiram (e expuseram) reservas decidiram cerrar fileiras, em nome de um bem maior, o da autoproteção do partido..Há cerca de dez dias, numa reportagem sobre a montagem da festa da Quinta da Atalaia, um dos responsáveis da organização, Paulo Lóia, era questionado pelo DN sobre se o PCP tinha ponderado não realizar a Festa por causa da pandemia. A resposta - sem mais pormenores - foi categórica: "Tudo foi ponderado."."Tudo foi ponderado" significa isso mesmo: tudo. Por outras palavras: no PCP foi de facto discutida a possibilidade de neste ano não se fazer a Festa do Avante!..Ao que o DN apurou, a ponderação fez-se a partir de meados de março, durou todo o mês de abril e foi até meados de maio. Quando a CGTP realiza uma manifestação na Fonte Luminosa de celebração do 1.º de Maio - na verdade, a primeira manifestação política realizada quando já se sabia que o estado de emergência iria terminar -, a decisão dentro do PCP sobre a Festa do Avante! não estava finalizada..O estado de emergência fora pela primeira vez decretado para começar às zero horas de 19 de março e prolongou-se durante um mês e meio, até às 24.00 de 2 maio. Semanas antes, o Comité Central havia-se reunido (nos dias 29 de fevereiro e 1 de março) e o partido desvalorizava os efeitos da covid-19, dizendo que a doença estava a ser retratada de forma "sensacionalista e alarmista"..A Organização Mundial da Saúde ainda não tinha decretado que se estava perante uma pandemia (fê-lo em 11 de março). A notícia da primeira morte em Portugal resultante do vírus só surgiria a 16. Nessa altura, o PCP tratava a Festa como se nada se passasse. O comunicado dessa reunião do Comité Central dizia que a "intervenção" do partido deveria "prosseguir", nomeadamente pela "concretização das medidas necessárias à organização da 44.ª Festa do Avante!, a realizar nos dias 4, 5 e 6 de Setembro de 2020, que exige o empenhamento, desde já, nas tarefas de preparação e calendarização geral, divulgação e venda antecipada da EP [Entradas Permanentes]"..A ponderação começou. E começou pelo Secretariado do Comité Central - o órgão executivo mais restrito na cúpula do partido. É lá que tem assento o responsável máximo pela Festa, Alexandre Araújo, que o PCP apresenta no seu site apenas como "intelectual. 44 anos". E depois o debate foi seguindo pela estrutura abaixo, passando para as organizações regionais, até às bases - e incluindo-se aqui, evidentemente, a comissão interna que trata exclusivamente da organização da Festa..Depois, o processo de auscultação de opiniões fez o percurso inverso, das bases para o topo. E é numa reunião do Comité Central que se realiza a 16 de maio que se dá a decisão..Segundo o DN apurou, a discussão foi tudo menos unânime. Fizeram-se ouvir vozes em todos os sentidos. Uns defenderam que o PCP deveria pura e simplesmente não realizar a Festa neste ano; houve mesmo quem tivesse proposto que se deveria resumir exclusivamente ao comício final de domingo (6 de setembro), sem mais nada. Uma discussão intensa, forte, com várias vozes a defenderem soluções diferentes. E uma decisão final: a Festa seria realizada, mas havendo todos os cuidados sanitários, num trabalho conjunto permanente com a Direção-Geral da Saúde (DGS)..As dissonâncias internas acabariam por ter reflexo na forma como o partido comunicou a decisão para o exterior..No comunicado então emitido, o Comité Central é categórico a dizer que a Festa avança. Porque "independentemente das medidas de prevenção e proteção necessárias, este é o momento de emergência para a ação do Partido inerente à sua identidade comunista", implicando isso, por exemplo, "a preparação da Festa do Avante!", embora ressalvando-se que tendo de ocorrer "nas circunstâncias atuais, designadamente no plano das medidas de proteção sanitária"..Jerónimo de Sousa, porém, ao apresentar as conclusões da reunião, não seria tão taxativo, mantendo a porta aberta para a necessidade de um eventual recuo: "Nestes próximos meses iremos tendo em conta a realidade social, sanitária, tendo em conta o desenvolvimento deste processo. Aquilo que garantimos é que faremos a festa se estiverem reunidas as condições para o fazer - disso não abdicamos.".E o líder comunista manter-se-ia fiel a esse registo de prudência por várias semanas. Mais de um mês depois, a 25 de junho, numa entrevista Público/Renascença, continuava a manter margem para o partido dar o dito por não dito.."Há uma festa com novas condições que resultam da situação. Vão ser usados mais dez hectares, ou seja, trinta hectares no total, trinta campos de futebol para a realização da Festa. Nós dizemos com franqueza: naturalmente queremos fazer a nossa festa do Avante! Faltam dois meses e tal... veremos.".O processo foi avançando até que surgiu o parecer final da DGS. Mesmo antes desse parecer, já o PCP tinha adotado várias medidas de proteção sanitária, a principal das quais foi reduzir a lotação máxima do espaço de cem mil pessoas em simultâneo no recinto para 33 mil..A JCP até se deu ao trabalho de fazer para o Twitter um vídeo a explicar como se dança a A Carvalhesa em tempos de pandemia..Foi por isso que o partido ficou com uma espinha entalada na garganta quando viu a DGS reduzir a lotação de 33 mil para 16 563 - recordando os comunistas que até já tinham alargado o espaço geral do recinto em dez mil metros quadrados. O partido vai obedecer às imposições da DGS, mas os seus dirigentes não deixam, pelo meio, de recordar que as medidas impostas para os espetáculos ao ar livre na Festa - lugares sentados obrigatórios, por exemplo - são mais restritivas do que as que já existem como regra geral (os lugares sentados não são obrigatórios)..No Facebook, o deputado comunista António Filipe brincou com o assunto: "Assim se comprova que não há Festa como esta (nem há parecer como este).".Politicamente, o PCP está debaixo de fogo da direita - o que em si não é nada de novo - e vê dedo partidário nos protestos dos comerciantes da Amora. O PS - estando agora empenhando em reconstruir com o PCP uma geringonça 2 - não hostiliza, bem pelo contrário, até elogia o empenho dos comunistas, como o fez Fernando Medina, ao comentar o caso na TVI..O que enfurece mesmo os comunistas é, como sempre, o Bloco de Esquerda. Nada os irrita mais do que ouvir a líder bloquista Catarina Martins explorar politicamente toda a controvérsia em torno da realização da Festa ao dizer que "espera" que "o PCP e a DGS façam tudo o que seja necessário fazer para preservar a saúde de todos os participantes.".A última Festa de Jerónimo?.Os dados estão lançados. Sexta-feira às 17.00 os portões da Quinta da Atalaia (Amora, Seixal) abrirão. No domingo, o discurso político que Jerónimo de Sousa fará para encerrar o evento tenderá a ser um pouco aquilo que foram os principais discursos da (igualmente controversa) sessão solene parlamentar de comemoração do 25 de Abril: autojustificativo..Isto a não ser que Jerónimo de Sousa decida aproveitar o momento para criar um de dois factos políticos (ou os dois ao mesmo tempo): lançar o nome do candidato presidencial do partido e/ou esclarecer definitivamente se no congresso de novembro do partido estará ou não disponível para ser reeleito de novo secretário-geral. Aí a Festa passará de vez à penumbra mediática.