Leonardo Mathias, presidente da SDR Portugal
Leonardo Mathias, presidente da SDR Portugal

Leonardo Mathias: “Sistema de depósito e reembolso será das iniciativas mais complexas já feitas em Portugal”

Dois mil milhões de embalagens pagarão um valor extra sujeito a reembolso, para promover a reciclagem. 70% terão de ser recolhidas até 2026. A SDR gere o processo e investirá mais de 100 milhões .
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É um desafio gigante o de conseguir garantir já em 2026 a recolha de 70% das garrafas de plástico e latas para reciclagem. Essa é a meta ambiental portuguesa e cabe à SDR Portugal garantir que será cumprida. Por imposição de Bruxelas, Portugal vai aplicar o sistema de depósito e reembolso já a partir de abril, o que envolverá um investimento de 100 milhões de euros em 2500 máquinas de venda inversa e oito mil pontos de recolha, disse Leonardo Mathias, presidente da SDR – Associação de Embaladores de Portugal, em entrevista ao DN/Dinheiro Vivo. Diretamente envolvidos neste sistema, que já vigora noutros países europeus, estão algumas das maiores empresas nacionais, como Sumol + Compal, Grupo Central de Cervejas, Unilever, Superbok, Coca-Cola, Sonae, Lidl, Pingo Doce ou Auchan.


Estamos a pouco mais de três meses de uma alteração profunda no sistema de reciclagem em Portugal, que vai exigir a adesão de comerciantes e consumidores. A SDR Portugal é a entidade que vai ser responsável pela gestão do processo. Quem é a SDR e qual é a sua missão?

Tudo isto remonta a dezembro de 2018, com a publicação de uma legislação europeia, que impõe a implementação de um sistema de depósito de reembolso de garrafas e latas em todos os estados membros a aplicar até 2028. Logo em 2019 um grupo de empresas juntou-se e criou uma carta de compromisso, que culminaria na criação de uma associação sem fins lucrativos em 2021, para estudar e pensar naquilo que poderia vir a ser em Portugal o sistema de depósito de reembolso. Só em Março de 2024 é que é publicada a legislação nacional e a licença é atribuída, pelo Ministério do Ambiente, a esta entidade, a SDR – Associação de Embaladores de Portugal, em Maio, e confirmada em novembro de 2024. Isto é mais ou menos o enquadramento jurídico e a cronologia.

O sistema já está em funcionamento noutros países…

Este sistema já existe em variadíssimos países do mundo, na esmagadora maioria dos países europeus e, agora, através do regulamento europeu, vai ser obrigatório em todos os países da União Europeia.

Quem são as empresas que constituem a SDR?

São as entidades que produzem bebidas e comercializam. E estas entidades já têm _ao abrigo também de outra peça legislativa chamada 'responsabilidade alargada do produtor'_ a responsabilidade por cada bebida que sai da fábrica. E então constituíram-se – puramente da indústria de embaladores – a Coca-Cola EuroAsian Partners, Sumol Mais Compal, Grupo Superbock, Grupo Central de Cervejas e Unilever. E como embaladores distribuidores – portanto, entidades que também são embaladores através das suas marcas brancas – o Pingo Doce, a Sonae MC, o Lidl, o Intermarché e o Auchan.

O que aconteceu desde então até agora?

Desde 2021 que temos vindo a estudar o sistema, a falar com os vários governos, tanto nos ministérios do Ambiente como da Economia. E, obviamente, também participaram nessa altura nos chamados projectos-piloto que eram financiados pela União Europeia e pelos retalhistas, para ver como é que o sistema poderia funcionar. Por essa altura, também recrutámos consultores internacionais, entidades que já acompanharam e desenvolveram a arquitetura do sistema noutros países da União Europeia, que nos pudessem ajudar a pensar aquilo que poderia ser o modelo em Portugal. O sistema tem variadíssimos desafios. Eu costumo dizer que talvez dependa muito de país para país. Na Noruega, por exemplo, o grande desafio é a temperatura e as distâncias.

E em Portugal?

Em Portugal, o grande desafio é o pequeno comércio, o chamado canal Horeca. Temos muito pequeno comércio, muito granular, no nosso país.

Como se vai operacionalizar o sistema?

Isto é um sistema de recuperação de embalagens de bebidas de uso único (latas e garrafas) para reciclagem, no qual os consumidores pagam um valor de depósito na compra da bebida. O montante é reembolsado quando as embalagens são devolvidas num ponto de recolha para futura reciclagem. Portanto, representa uma mudança estrutural na política ambiental portuguesa.

É uma transição daquilo que se chama o modelo linear – que é produzir, consumir e deitar fora – para um modelo verdadeiramente circular, em que cada embalagem passa a ser tratada mais como um recurso com valor económico e ambiental. O sistema também articula toda a recolha automática manual, o transporte, a triagem industrial, a validação digital e depois a sua reciclagem. Portanto, no momento da venda de embalagens de bebidas é cobrado um valor de depósito que é fixo. Esse valor é independente do preço do produto.

Qual vai ser o valor do depósito? No mercado fala-se em 10 cêntimos...

Nós estamos à espera de saber o valor. Propusemos um valor à Direção-Geral de Atividades Económicas e à APA – Agência Portuguesa do Ambiente, e são estas entidades que têm que validar. Estamos, a todo o momento, à espera que seja validado. Mas já agora, digo-lhe que para encontrar um valor do depósito utilizámos três análises para suportar a nossa recomendação. Em primeiro lugar, realizámos uma comparação dos custos de depósito. Envolveu a comparação do custo de um cabaz de bebidas em Portugal e de outros dez países europeus. Incluíram inclusivamente países com sistema de depósito, como a Croácia, Estónia, a Lituânia, a Eslováquia. E a lógica desta abordagem foi compreender o custo relativo das mesmas bebidas em diferentes mercados e fornecer uma referência para o outro. Em segundo lugar, teve-se consideração o salário médio nestes países. E em terceiro, comparou-se o valor de depósito possível com os valores actuais do depósito e taxas de devolução noutros países.

Mas qual o valor proposto, tendo em conta todas essas ponderações?

Os valores variam entre os 0,10 € e em certos países vão até aos 0,25 € e portanto será mais ou menos neste intervalo.

E vai entrar em vigor a 10 de abril, como anunciado? Quando contam conhecer o valor?

Será a 10 de abril e contamos conhecer antes de entrar em vigor, naturalmente. Mas mais importante que o valor é a dimensão de tudo isto. Só para lhe dar um enquadramento, são consumidas em Portugal 2,1 mil milhões de garrafas de plástico (PET ) até três litros. E as latas de aço e de alumínio, portanto, são 2,1 mil milhões de unidades por ano. Agora imagine do ponto de vista logístico, a gestão desta matriz. Somos 10 milhões de habitantes, 2,1 mil milhões de garrafinhas e teremos de fazer a cobertura universal no país inteiro. E não podemos esquecer os 29 milhões de turistas que entram e saem do nosso país todos os anos. Portanto, do ponto de vista de organização, de gestão, logística, de gestão industrial, isto é, talvez das iniciativas de maior complexidade que alguma vez existiram em Portugal. Toda esta operação é tão estimulante como complexa.

Tendo em conta a complexidade que está aqui em causa, desde a indústria à distribuição e logística, sem esquecer o comportamento do consumidor, quais são os maiores desafios para Portugal na implementação deste projeto? E o maior risco?

Os desafios são de duas ordens. Um é a componente logística industrial: como é que se recolhem estas garrafas? Vão ser colocadas ou neste momento já estão a ser colocadas nos supermercados 2500 máquinas de venda inversa, onde as pessoas vão colocar as suas garrafas e receber o depósito. Neste momento, nalguns supermercados já se vêem, noutros ainda estão tapadas. E nós achamos que esse processo vai levar à recolha de cerca de 85% do valor do valor total ao abrigo do nosso modelo. Depois haverá mais cerca de oito mil pontos de recolha manual, onde as pessoas podem podem ir também largar as suas garrafas e, portanto, a componente industrial e das máquinas está em andamento. O software já está a ser desenvolvido e finalizado para termos dia 10 de abril a cobertura do país todo.

Quem é que está a fazer o software?

Somos nós. Fizémos um concurso internacional com variadíssimas entidades e ganhou um consórcio que em conjunto connosco, está a desenvolver o software e toda a componente informática que é diferente. Vamos ter informação digitalizada e transparente em tempo real. Vamos poder saber quanto é que foi feita a recolha. Se foi no Norte, no Sul, se foi mais em supermercados ou em pontos manuais. Tudo com absoluta transparência. Isto é muito diferenciador deste mercado de resíduos, onde muitas vezes não há informação fidedigna ou só existe no ano subsequente ao ano de atividade.

Para além da parte industrial, as garrafas depois irão para centros de contagem e triagem, naquilo que é uma dupla confirmação do que já foi recebido pelas máquinas e depois serão entregues para venda a recicladores. E aqui também há outro aspeto diferenciador, porque estas garrafas vão respeitar a segurança alimentar, não vão sofrer contaminação antes de regressarem ao mercado. Portanto, não há leites, azeites e óleos que possam contaminar. E nessa medida, o valor do reciclado é extremamente relevante. O objetivo é a circularidade do material, ou seja que uma vez reciclado, o material possa servir para a constituição de novas garrafas, criando assim um ciclo fechado, o chamado bottle to bottle, ou como dizem ou o ‘plástico infinito’. Não produzimos mais plástico, reutilizamos o que já existe. O outro grande desafio é o da comunicação para se poder mudar comportamentos. Se nos últimos 30 anos fomos ensinados a tirar a rolha, esmigalhar a garrafa e colocá-la no ecoponto amarelo, agora nós vamos dizer às pessoas o contrário: a tampa tem que ficar na garrafa, que tem de ficar intacta e não é para colocar no ecoponto amarelo, mas sim nos nas nossas máquinas de venda inversa. Portanto, o esforço comunicacional de explicar o que é o sistema e o que fazer com as garrafas para poder receber o seu depósito também é um desafio hercúleo.

É desaprender e voltar a aprender, mas quem já recicla estará aberto para isso. Ou não?

Nós achamos que sim, até porque há exigências europeias muito claras. Não só para o material reciclado como para a recolha. Neste momento, a recolha em Portugal anda à volta dos 40% e o objetivo é chegar aos 90% destas 2 mil milhões de garrafas. Está a ver a diferença que isto faz. Quanto à utilização do plástico reciclado, pelo menos neste momento, já é 25% desde 2025, mas pretende-se aumentar para 30% em 2030 e 65% em 2040. Portanto, vamos alcançar estes resultados porque, na medida em que vamos garantir um fluxo estável de materiais recicláveis, vamos reduzir a dependência de recursos virgens e reforçar bastante o modelo de economia circular e o modelo de consumo em Portugal. Muito, mais, muito mais sustentável.

Quem é que vai fazer a reciclagem? Já existe em Portugal um mercado suficientemente robusto para esta nova avalanche de garrafas e latas?

Já existem algumas, mas o mercado do chamado PET é um mercado livre a nível europeu. Portanto, provavelmente nós vamos fazer leilões com total transparência do material que vamos recebendo e vamos vendendo esse material aos recicladores que nos compram este material, reciclam e depois vendem outra vez à indústria de embalagem.

Julga que serão empresas já constituídas em Portugal ou estrangeiras?

Há em Portugal, mas como lhe digo, o mercado é livre. Nós vamos dizendo ao mercado quando temos mil ou dez mil toneladas e vamos leiloando. O montante total, se não me engano, são 30 a 40 mil toneladas de peso por ano, equivalentes às tais 2,1 mil milhões de unidades.

Este é um mercado que vai expandir bastante, não é? E dá um claro sinal para quem queira investir...

Eu tenho dito isso em variadíssimos fóruns e acho que tem toda a razão. Eu acho que sim. Vai haver aqui produto de segurança alimentar de grande qualidade para ser reciclado e, portanto, abre-se aqui uma perspectiva nova de negócio para certas entidades, sem dúvida nenhuma.

Este mercado em Portugal ainda não está muito desenvolvido ou está?

Não tem sido essa a nossa preocupação, porque, como digo, o mercado é aberto e competitivo. O importante é que

temos a certeza que estas garrafas não vão para aterro e vão voltrar ao mercado. E vão voltar ao mercado.

Num projeto tão ambicioso também existem riscos. Quais são, tendo em conta que estamos a falar de materiais usados também em pequenos cafés e restaurantes das zonas mais rurais?

Exatamente, o grande desafio para Portugal é justamente o pequeno comércio. E é o garantir que temos a cobertura nacional. Nós não interpretamos isto como riscos e, portanto, isto como uma realidade. Temos tido o apoio do Instituto Superior Técnico e do INE na identificação do número de pontos de recolha ou de pequeno comércio em Portugal. Estimamos que sejam 90 mil, que constituem o canal Horeca. Temos que assegurar a cobertura eficiente de todo o território nacional, com o objectivo de garantir não só a acessibilidade a todos os consumidores como a operacionalidade do sistema. Portanto, nós temos pontos de recolha onde os consumidores entregam as embalagens. Unidades de suporte e processamento são responsáveis pela gestão, triagem, separação das embalagens. Tudo isto e todo este fluxo logístico é de uma de uma dimensão bastante ambiciosa. Portanto, temos 2800 lojas do retalho alimentar, 12.000 lojas tradicionais e 80.000 pontos Canal Horeca. Como é que que vamos abranger este panorama? Através das máquinas. Portanto, são 2500 equipamentos automáticos de recolha que estão instalados. Como eu lhe disse, em estabelecimentos comerciais com sistemas de registo digital. Os chamados pontos de recolha manual são locais disponíveis para aceitação e verificação das embalagens abrangidas. E depois haverá também o que nós chamamos os quiosques SDR, que serão 48 pontos automatizados que estão estrategicamente distribuídos para reforçar a recolha em zonas de elevada afluência, por exemplo. E, portanto, é de facto um desafio, digamos assim.

Qual o investimento previsto?

Só em maquinaria são cerca de 100 milhões de euros, fora o resto.

E depois há a operacionalidade, que também envolve transporte e logística, que exige mão de obra. Quantos postos de trabalho contam criar?

Estamos a falar de estimativas de 1500 empregos, sobretudo no sistema de logística, transporte, e sistemas de contagem e triagem. As máquinas já estão sobredimensionadas para recolher um volume superior ao que o supermercado tem,de modo a poderem recolher as embalagens das pessoas que só lá vão entregar.

Como é que o sistema se financia? Há fundos europeus?

Não. Adorávamos, mas é financiado exclusivamente pelas entidades que compõem a SDR Portugal. O sistema de reembolso é financiado integralmente pelos operadores económicos. Nem pelo Estado nem pelos contribuintes.

O sistema é composto por três capítulos, digamos assim. Um é a prestação financeira que os embaladores já pagam por cada embalagem colocada no mercado. Dois é a receita da venda deste material reciclado, que terá uma qualidade superior devido a recolha seletiva que nós fazemos. E o terceiro capítulo vem dos montantes de depósitos não reclamados quando na embalagem não é devolvida. É, portanto, um sistema que tem de zerar, porque não é lucrativo. É um sistema caro, mas não só os embaladores têm esta responsabilidade alargada, que já existe, como o país tem metas claras de recolha até 31 de dezembro de 2026, de 70% das embalagens colocadas. E só teremos oito meses de operação para atingir aquela meta, pois só começaremos em abril.

E vai haver um período de transição no início da entrada em vigor do sistema?

Haverá um período de transição de 120 dias, que são quatro meses para escoamento do estoque de embalagens e garrafas. Portanto até ao dia 9 de agosto de 2026 vão coexistir no mercado garrafas e latas antigas e novas, com preços distintos. Mas nós julgamos que a maior parte dos embaladores já terão todos os stocks em um mês. Os meses de abril e maio vão ser os mais críticos, também do ponto de vista da comunicação para a população em geral. Vão haver pessoas a dizer “mas a minha garrafa não entra aqui”, e terá de ser explicado que “não, a sua garrafa ainda não é a do sistema e por isso, o senhor pagou um valor diferente por essa garrafa”. Mas vai ser um desafio grande.

As embalagens vão ter símbolos e códigos novos…

Os novos códigos vão permitir distinguir as embalagens com depósito das antigas embalagens. E é também uma forma de evitar duplicações ou falsos reembolsos. Estes códigos que têm cada embalagem devolvida e registada eletronicamente. A criação da chamada pegada digital permite também ao SDR ter um sistema de auditoria às quantidades declaradas, aos movimentos de material, às operações das máquinas e distribuidores. Vamos inserir algoritmos antifraude. Ou seja, a detecção automática de padrões anómalos e devoluções repetitivas, como embalagens ilegítimas, duplicações, irregularidades.

Sem a adesão das pessoas o sistema não funciona de todo.

Absolutamente, absolutamente. É claro que a esmagadora maioria da população está em centros urbanos e no litoral. Mas não fazemos nenhuma divisão sócio-geográfica, porque isto abrange a população toda, mais o turismo. Portanto, é este o desafio comunitário também para estas entidades todas.

Os operadores estão a adaptar-se bem?

Sim, tem havido muita colaboração. Estamos confiantes que os portugueses vai aderir em massa a este projeto.

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