Telma respira talento e confiança. O judo e o país agradecem-lhe. A conversa com a hexacampeã da Europa de judo, na categoria de -57 kg, andou muito à volta de medalhas, algo incontornável sendo ela recordista de conquistas a nível europeu e a terceira mais medalhada de sempre na história da modalidade. Tem 35 anos, não pensa no fim da carreira e não sabe se tem algum mérito na força mental que a caracteriza: "Já nasci assim, a vida fez-me assim.".Já deu para assimilar que é campeã da Europa de judo aos 35 anos e pela sexta vez? A ainda vão ser precisos mais alguns dias para assimilar este feito, mas de dia para dia vou tendo mais perceção do que aconteceu. Durante os Europeus estava muito concentrada, mais preocupada em vencer e, depois, em apoiar os meu colegas. Foi algo muito especial. Já dá para saborear um pouco, mas ainda estou muito cansada....Vai descansar uns dias como prémio para si mesma? Ainda não consegui voltar a treinar, ainda estou muito cansada. Esta semana descanso e na próxima já vou treinar. Não dá para tirar férias e relaxar, daqui a meses temos Mundial e a seguir Jogos Olímpicos. Agora tenho de recuperar o corpo e psicologicamente, manter o mesmo nível de intensidade para chegar ao Jogos Olímpicos na máxima força..Esse é o lado invisível do ouro? As dores, as lesões... É surreal o esforço e o treino por detrás de uma medalha. O judo exige muito do nosso corpo, é um desporto de impacto, de muita exigência física, com treinos muito intensos. Uma atleta que esteja sempre a exigir mais de si está sempre no limite e isso tem consequências físicas, umas visíveis outras nem tanto. Acabei o Europeu completamente de rastos, com a boca aberta por dentro, o pé negro, o pulso negro, uma unha arrancada e um ombro lesionado... mas com o ouro. Acredito que se as pessoas tiverem conhecimento do que está por detrás de uma medalha irão ter um julgamento mais justo. Treinar sem dor é uma miragem, mas desde que seja uma dor que me permita treinar, vou treinar... Fui operada pela primeira vez aos 18 anos, depois tive algumas lesões mas sem precisar de cirurgia até por volta dos 30. Depois fiz três seguidas..Representar Portugal e levar a bandeira ao pódio atenua isso? Então não? É um orgulho imenso. Eu sou uma portuguesa super fã do meu Portugal. Para mim representar o País é um orgulho, uma honra imensa saber que as pessoas se vão rever nas minhas vitórias se eu for bem sucedida. Ter a oportunidade de ser a pessoa que consegue dar uma alegria e energia positiva aos portugueses é algo indescritível. É um privilégio representar Portugal. Mostrar que somos grandes, mesmo sendo pequenos em tamanho..Nestes Europeus havia um peso extra nos ombros por ser em Lisboa, em ano de pandemia e Jogos Olímpicos... Eu sentia muita vontade de ganhar, mas não sentia essa pressão de ter de ganhar. Queria muito ganhar, por mim, pelo contexto que estamos a viver e por ser um Europeu em casa que não tinha conseguido disputar em 2008 por lesão. Mas não senti pressão. Senti ainda mais vontade de ganhar e motivação para o fazer. Acho que o não haver público tirou alguma carga por jogar em casa, mas queria fazer história... Foi mais querer do que estar obrigada a vencer..Sem medalha, a homenagem e a entrega da Ordem de Mérito - prevista desde 2019 - iria ter um sabor diferente? Sim. Iria estar triste. Quando perdemos, tudo à volta tem um peso diferente e a tristeza prevalece, mas desta vez não foi isso que aconteceu. A homenagem é de carreira e não do momento. E se há coisa que eu sinto é que os portugueses reconhecem tudo o que eu já fiz pelo judo e pelo País. Iriam apoiar-me com ou sem medalha..Dizer "contem comigo para continuar a ganhar medalhas e dar alegrias ao portugueses" perante o Presidente da República e o primeiro-ministro aumenta a responsabilidade? Quem me conhece sabe que eu vou sempre dizer que quero ganhar medalhas. Numa competição, seja ela qual for, o meu objetivo é sempre ganhar medalhas, se possível o ouro. Quando estou a competir penso naquilo que eu tenho de fazer para ganhar e não no que disse ou em provar alguma coisa a alguém. Sei o meu valor e o meu valor é ter capacidade de ganhar medalhas. Há dias em que não é possível, mas esse é o meu objetivo com mais ou menos pressão. Eu não a sinto. A principal pressão vem de mim própria. Qualquer português, seja o Presidente ou o primeiro-ministro sabe qual é o meu objetivo, eu dizê-lo ou não, é só uma afirmação....Tornou-se recordista de medalhas nos Europeus. É pessoa de valorizar os recordes? Sou. Gosto de bater recordes, sinto-me desafiada por essa possibilidade. Neste Europeu sabia que se ganhasse uma medalha ia ser a mais medalhada em Europeus e foi fantástico consegui-lo. Estamos a falar de 15 medalhas em 15 Europeus. Os recordes serão sempre uma motivação. Trabalho para ser o melhor que eu consigo ser e quando bato recordes fico muito feliz, é uma motivação extra, mas primeiro tenho de querer vencer. E, como disse, quem vier a seguir que tente bater os meus recordes. Não sei se alguém vai conseguir, mas sei que ainda vai demorar um bocadinho..Destaquedestaque "Acabei o Europeu de rastos, com o pé e o pulso negros, uma unha arrancada e o ombro lesionado".As medalhas de Rochele Nunes e Bárbara Timo também têm um bocadinho de Telma Monteiro? Nós no judo somos uma família e elas são do Benfica, como eu, e por isso criamos uma boa relação. Na seleção temos a felicidade de termos um grupo muito unido, divertido, competente e todos com muita ambição e isso reflete-se nos resultados. Quando trabalhamos muito, ter um bom ambiente pode fazer a diferença e nós temos muita sorte de poder trabalhar umas com as outras e podermos chamar-nos amigas e isso tem contribuído para os resultados. Estamos felizes de estar ali. Este ano por causa da pandemia passamos ainda passámos mais tempo juntos em estágios..A pandemia atrapalhou a preparação para os Europeus de alguma forma? Olhando para os resultados parece que não... Na primeira quarentena o grupo de judocas do Benfica ficou junto numa casa, em bolha, fechados e fazíamos treinos bidiários, parecia que estávamos em estágio. Depois, os atletas de alta competição tiveram autorização para treinar e tanto o Benfica como a federação criaram bolhas, com um grupo restrito de pessoas, todos testados para conseguir continuar a treinar. Isso foi muito importante. Nunca parei de treinar, mas o treino foi menos competitivo. Os estágios internacionais com atletas de alto nível, que beneficia imenso o nosso treino, não se puderam fazer este ano e no ano passado, mas o empenho fez superar essas adversidades. Os resultados não são uma coincidência, nem sorte, é muito trabalho e muito espírito de equipa. Nada do que está a acontecer no judo é coincidência..Tem 35 anos, 20 de carreira. A idade já pesa? O fim da carreira atormenta-a? Estão sempre a perguntar-me sobre o fim, o fim... mas eu não quero falar do fim. A idade não me atormenta. Eu não quero pensar no fim da carreira porque ainda estou muito focada no presente. Estou a viver tudo a 100%, como se fosse a primeira competição, mas com a experiência de 20 anos. Não penso no fim, penso no agora e no que tenho de fazer para mais uma medalha. Vou sair quando achar que é o momento, mas para mim ainda não é um momento para abordar o final da carreira..Qual é a medalha mais especial? Cada uma tem uma história por detrás que, por vezes, as pessoas nem imaginam... Para mim, a medalha mais importante e mais especial é a do Rio 2016. Uma medalha que eu queria desde os meus primeiros Jogos Olímpicos, em 2004. Demorou 12 anos a ser conquistada e mostra bem a minha determinação, persistência e obstinação. Foi a mais especial por todo o contexto. Espelha todos os valores da minha carreira. Tinha sido operada antes dos Jogos Olímpicos, já tinha 31 anos e já toda a gente duvidava daquilo que eu podia fazer..Essa medalha foi histórica. Tem noção que é a única medalhada olímpica no ativo e apenas a quarta mulher com uma medalha em mais de 70 anos da participação olímpica de Portugal? Sempre tive o sonho de conquistar a medalha olímpica, ser campeã olímpica e fazer história. Queria conseguir primeiro por mim e para abrir essa porta no judo português. É sempre mais fácil entrar quando alguém nos abre a porta e agora a porta está aberta. Mais atletas terão oportunidade de fazer história e será sempre um orgulho para mim ser a primeira mulher judoca a conquistar uma medalha nos Jogos Olímpicos. O bronze no Rio 2016 serve de inspiração para mim e para as futuras atletas mulheres..Segue-se Tóquio 2021. Estes Jogos Olímpicos terão uma grande carga emocional para si, por ter uma relação muito especial com o Japão? Sim. Eu aprendi que tenho de ser fria quando vou abordar objetivos. Não quero ser nada emocional em Tóquio, quero ser racional. Quando acabar posso ser emocional e desfrutar. É muito especial ir ao Jogos Olímpicos na cidade onde começou o judo. São dos melhores do mundo, têm milhões de atletas e quem quer evoluir vai lá treinar com eles. Eu já fui mais de 20 vezes ao Japão e para mim serão uns Jogos familiares, não vou estranhar nada e posso tirar benefício disso. Vai ser lindo. Gosto das tradições, das pessoas e da cultura japonesa que serve muito os valores do judo, o respeito pelo adversário, a saudação e honra. Acho que todos os judocas são um bocadinho japoneses por isso..Segundo dados da federação de judo, desde que a Telma é profissional a modalidade no feminino cresceu 30%... Não sabia. Deixa-me orgulhosa e mostra o que é possível alcançar com muito trabalho. O meu exemplo não é só ganhar medalhas, mas a forma como as ganho. Não fiquei agarrada ao meu talento, mas trabalhei bastante para ultrapassar todos os meus limites. Se eu ganhar medalhas, mais se fala no judo e mais interesse desperta nos mais jovens. É bom ter esse impacto nos mais jovens e fico muito contente com isso..Destaquedestaque"O meu exemplo não é só ganhar medalhas, mas a forma como as ganho".Ao fim de 20 anos, o que ainda sente quando entra no tatami? Sinto uma vontade enorme de ganhar. Sinto-me capaz de ganhar. Sinto-me confiante e penso na estratégia para ganhar. Há dias em que sinto que não estou bem, que o corpo não reage, que a concentração foge, afinal somos seres humanos e não máquinas. Mas tenho uma grande capacidade mental para dar a volta a isso e penso: "não estou bem, mas consigo"..Essa força mental é algo inato ou é trabalhado? Em 20 anos de carreira trabalhei com uma psicóloga durante dois anos e meio, mas de um modo geral acho que é inato. Sou muito confiante, determinada, resiliente. Psicologicamente, sou anormal (risos), sou diferenciada em termos mentais, tenho uma cabeça muito forte e muito bem estruturada para ser bem conseguida. Nisso, sou a melhor ou se não for a melhor haverá poucas iguais a mim. Não sei explicar porque existe em mim esta vontade enorme de vencer. Não sei até que ponto tenho mérito nisso... nasci assim, a vida fez-me assim..Ter morado e começado no judo num bairro social moldou-a como pessoa? Não sei. Acho que não. O importante não é de onde vens, mas a forma como fazes o caminho para seres a melhor versão de ti própria. Nunca tive intenção de abordar isso só para mostrar o quanto consegui, não tendo nada. O ser bem sucedida tem a ver com a minha personalidade, o meu talento e não de onde eu vim..E o ar sério e compenetrado a cada combate? Estou lá para competir não para sorrir, tenho de estar concentrada. O judo é um desporto muito complexo e num segundo podes ganhar ou perder. Eu sorrio nos bastidores, depois de ganhar. As pessoas têm uma ideia muito séria de mim, mas sou uma pessoa super relaxada, sou aquela pessoa que prega partidas às colegas e que se esquece do passaporte..E a mulher Telma Monteiro. Quem é? A Telma mulher a e Telma atleta misturam-se. Sou uma mulher muito determinada, muito confiante, muito independente e acho que sou isso tudo como atleta também. Como pessoa sou mais discreta, mas mais extrovertida com os amigos. Sou vaidosa q.b., gosto de me sentir bonita, não sou de me maquilhar porque gosto muito de mim como eu sou. Gosto de um look casual e descontraído, mas gosto de me arranjar para eventos mais especiais..isaura.almeida@dn.pt