José Poeira: “O João Almeida é candidato ao pódio de qualquer Volta e acho que vai ganhar uma Grande Volta”

A biografia de José Poeira, nascido em Odemira (20-05-1959), que entrou no ciclismo em 1977 e é selecionador nacional desde 2001, é apresentada, amanhã, na sede do Comité Olímpico de Portugal. Antigo ciclista, marca uma era no ciclismo de estrada português.Alguma Coisa Boa Há-de Acontecer-me. Porquê?Foi uma frase que criei para mim nos Jogos Olímpicos de Atenas2004. Tínhamos uma quota pequena, era eu e o mecânico e quatro corredores. E as coisas não estavam a correr bem, muitos percalços... Semanas antes até houve um atentado terrorista em Londres, que reteve a bagagem, incluindo as bicicletas . Havia sempre contrariedades e eu dizia: “Calma, alguma coisa boa há-de acontecer-me.” Ia-me sempre alimentando com esta frase, nunca me deixei ir abaixo e sempre tentei ultrapassar as situações. Pensava: “Não posso cair, não posso mostrar que estou fraco.” E a frase pegou, é uma frase que serve para a vida.E alguma coisa boa aconteceu. Alguma coisa muito boa aconteceu. A primeira medalha do ciclismo português em Atenas2004. A prata do Sérgio Paulinho. O Paolo Bettini era um ganhador e apontado como o possível vencedor e na altura que ele atacou o Sérgio estava ao pé dele e seguiu na roda dele. Estava um calor infernal, a rondar os 50 graus, e as condições eram o que eram. Eu e o mecânico tínhamos de nos desdobrar em muitas situações. Eu ia a reuniões, ver o percurso, e o mecânico, o Miguel Caetano, uma pessoa de excelência, tratava das bicicletas e da roupa. Nas primeiras três voltas, como ainda não se podia dar abastecimento, eu conduzi o carro e ele fazia de mecânico e dava assistência. Depois eu fiquei nas boxes, para dar abastecimento - águas e sais - e o mecânico conduziu sozinho. A corrida desenrolou-se bem. O Bettini pediu para o Sérgio colaborar e ele colaborou, depois discutiram o ouro, ao sprint, e o Bettini ganhou. O Sérgio era um desconhecido - no fim, o Bettini até pergunta: “Quem é o tal de Sérgio?” O desconhecido Sérgio Paulinho abriu esses Jogos com uma medalha com todo o mérito.O mérito é dele, mas alguém o escolheu para estar lá. O papel de selecionador na escolha dos corredores, para si, tem de obedecer a que critérios?Primeiro está o país, mas claro que é preciso ter respeito pelos atletas, dirigentes, o mecânico, o staff. O papel do selecionador é sempre um bocado ingrato. Para mim, na hora de escolher são todos iguais. Ninguém está acima do país. No ciclismo, os atletas apuram o país durante o ciclo olímpico definido, conquistando pontos para um Ranking Mundial que define quantos atletas Portugal apura, e depois o selecionador escolhe quem achar que deve... É a parte dura, a parte difícil. O ano passado estávamos em 13.º do Ranking Mundial e levámos dois corredores a Paris2024. Portugal agora tem vários corredores muito bons, fiz uma longa lista com seis e depois escolhi dois [Rui Costa e o Nelson Oliveira].O ciclismo não é apenas subir para a bicicleta e pedalar...O ciclismo exige muita tática, exige muito critério, muita estratégia física, como vimos o João Almeida fazer agora na Volta à Suíça. Começou a perder três minutos e meio e teve de procurar, todos os dias, recuperar algum tempo para, na cronoescalada final, estar em posição de poder ultrapassar o camisola amarela na classificação geral. Quando ele entrou no último dia com 33 segundos de atraso, o adversário sentiu logo que estava derrotado..João Almeida vence a Volta à Suíça de forma espetacular. É a terceira corrida que ganha esta época.Foi a Volta perfeita do melhor João Almeida...O João está na melhor época dele. Teve corridas em que era líder ou estava na discussão da amarela e depois acontecia qualquer coisa... Além da capacidade física tem hoje outra visão do ciclismo, das corridas e está a dizer para ele próprio: “Eu consigo e estou aqui para ganhar.” E o João está a ganhar. Tem 26 anos e tem a experiência das grandes voltas e das voltas de 7/10 dias. Este ano ganhou três voltas seguidas, três em sete, é o terceiro atleta da história a consegui-lo. O João está a tornar-se o grande especialista de corridas de uma semana e embora ainda não esteja muito virado para corridas de um dia também as faz. Ele percebeu a capacidade de estar no sítio certo, no momento certo, e pronto... De um ano para o outro cresceu muito fisicamente e interiorizou o 'Eu sou líder'. Tem uma margem de progressão muito boa, é dos corredores que mais lugares no top-10 já está a fazer dentro das grandes voltas. O Agostinho fez, mas o Agostinho era o Agostinho, não vamos comparar pessoas, são épocas diferentes, mas ele vai continuar a ficar nos 10 primeiros de qualquer Volta. E quando digo isto, digo que o top-10 de qualquer volta... vai do décimo ao primeiro lugar.O Joaquim Agostinho ainda está lá em cima ou já se pode questionar se o João Almeida o pode superar?O Agostinho começou a correr tarde, com os 26 anos, a idade que o João tem agora. Uma vez, o Eddy Merckx disse a alguém próximo de nós que, se tivesse a força do Agostinho, ganhava mais. Foi muito bom na Volta à França, ganhou etapas duas vezes. Foi um corredor muito forte, não há palavras para o descrever.Vou fazer a pergunta de forma mais diplomática. O João Almeida está a ganhar o direito de se questionar se vai superar o Joaquim Agostinho como melhor ciclista português de sempre?O João tem 26 anos e uma enorme margem de progressão e se continuar a fazer o que fez agora na Suíça... vamos ver até onde é que pode chegar. Nesta altura podemos apontar o João como um dos atletas que é seguramente candidato ao pódio de qualquer Volta e acho que ele vai ganhar alguma das Grandes Voltas - Tour, Giro e Vuelta - e até podia ter ganhado já no ano passado a Vuelta, mas depois teve covid-19 e teve de abandonar. Já fez duas Voltas a Itália espetaculares (4.º e 3.º) e no ano passado, na Volta a França, foi 4.º.Este ano volta a correr o Tour. A UAE tem a hierarquia bem definida, com Tadej Pogacar como líder. Acredita que, se o João Almeida se mantiver nos lugares de pódio até à última semana, a equipa lhe pode dar liberdade para ir procurar a vitória?É difícil... O João é um corredor e uma pessoa muito séria e muito responsável. Quando alguém da equipa lhe diz que é para trabalhar para o colega, ele faz e não é manhoso. Não há dúvidas de que Pogacar vai tentar ganhar a Volta à França e é o grande favorito, mas não há vencedores antecipados....João Almeida confirmado no apoio a campeão Pogacar na Volta a França.Os portugueses também já sentem que o João Almeida tem de vencer uma Grande Volta... O que o João está a fazer vai para lá das vitórias em etapas e corridas - cada vez há mais adeptos do ciclismo e muito por culpa dele, as pessoas prendem-se muito à televisão, deixam tudo para ir ver a prova onde ele está, é encantador para o mundo inteiro e para nós portugueses. Claro que não é só o João, de há alguns anos a esta parte há alguns bons ciclistas a fazerem a diferença. A medalha do Sérgio Paulinho em Atenas2004 é um marco importante, o título Mundial do Rui Costa, em 2013, é outro marco histórico, e ainda tivemos um pódio mundial do Nelson Oliveira e um pódio que tem muito que se lhe diga e que está no livro.Conte.Ele tinha uma bicicleta com um guiador a que chamamos ‘uma cabra’, fez uma Volta à França do Futuro com aquilo e terminou em 5.º no contrarrelógio com aquela bicicleta e faltava pouco tempo para o Mundial Sub-23. Eu fiz uma chamada para o João Correia, que hoje é empresário de muitos ciclistas nacionais, porque sabia que ele estava ligado às grandes empresas de materiais de ciclismo e conhecia bem o Fausto Pinarello das bicicletas Pinarello, que eram as F1 do ciclismo, e pedi ajuda para arranjar uma bicicleta. Ofereceu a dele. Paguei 500 dólares para a despachar e não sei quanto para a desalfandegar. Modificámos a medida e lá fui eu deixar a bicicleta para o rapaz treinar. Quando cheguei a casa dele, alí na zona da Bairrada, ele não estava. Disse ao pai: “Está aqui a bicicleta para ele treinar para o Mundial e é para começar já a andar amanhã.” E ele responde: “Ah, mas este fim de semana vamos para a vindima.” Disse uma série de coisas ao homem, ele ficou a olhar ... Bom, o Nelson vai para o Mundial, faz 2.º, é Vice-campeão do Mundo, e só a 18 segundos do australiano. Liguei para o João Correia e disse-lhe: “O menino a quem emprestou a bicicleta acaba de ser Vice-campeão do Mundo.” Ele ficou tão contente que pediu para lhe dizer que a bicicleta era uma oferta, mas eu disse-lhe que merecia ser ele a dizer-lhe. Meteu-se no avião e foi diretamente à Suíça para lhe dar um abraço e oferecer a bicicleta ao Nelson.Emocionou-se a lembrar esta história.Porque um homem acreditou em mim e eu acreditei num atleta. São coisas que marcam.E como estamos de novas gerações?Temos um corredor que é o António Morgado, Vice-campeão do Mundo, Júnior, que já é corredor da UAE e também fez a Volta à Suíça. E temos alguns que estão nas equipas internacionais de formação, em Israel e nos EUA. O Rúben Guerreiro, que teve uma lesão grave no ano passado e que é um corredor de excelência, e temos os mais jovens, que estão a aparecer. Temos um lote de 6, 7, 8 corredores. Entre portas, o ciclismo tem passado mal, após o escândalo da W52 FC Porto - a equipa foi extinta e os dirigentes e alguns ciclistas acusados de ter um esquema de doping reiterado.É um processo em curso em tribunal e não me vou alongar ou apontar o dedo a culpados. É mau para todos: para o ciclismo, para o Desporto nacional e para a imagem do país. É uma mancha e temos de nos desviar rapidamente dessas situações e procurar soluções. Quem suja, quando suja, suja tudo, suja a modalidade. As pessoas que fazem mal ao ciclismo têm de ser eliminadas do ciclismo. Mas custa-lhe saber que um atleta entra num esquema de doping? Custa, custa muito. Um miúdo, às vezes, pode cair numa situação dessas sem intenção, por falta de conhecimento na composição de medicamentos e tal.. Um ciclista com um problema de saúde não pode fazer o mesmo que um cidadão qualquer, mas temos reforçado os cursos de formação sobre a matéria do doping para as pessoas das equipas ouvirem o médico explicar como funciona, como podem consultar a plataforma na AdoP. O doping é uma linha vermelha que o ciclismo normalizou com o Lance Armstrong?Foi um abalo muito grande, porque ele também era muito grande. Já diz o povo que quanto maior é a nau, maior a tormenta. Os tempos eram outros. Hoje os atletas são supercontrolados e muito penalizados, e não há grandes hipóteses de fazer batota. Na seleção têm que fazer umas análises específicas antes de ir às provas, além dos controlos da AdoP e WaDA. Eles são instruídos sobre as regras antidoping e o passaporte biológico é cada vez mais essencial na luta contra o doping, mas esta nova geração nem quer ouvir falar em doping. Qual é o capítulo que ainda falta escrever na vida profissional?Mudar de vida. Já tenho uma certa idade, ainda consigo fazer as coisas mas, pronto, há um tempo para tudo e penso que, se calhar um dia, tenho de deixar isto.Mas já pensou nesse dia? Não pensei, mas está para breve.Breve? Vamos começar o ciclo olímpico Los Angeles2028...Já fiz sete Jogos Olímpicos. Em Atlanta não era eu o responsável, mas depois fiz Atenas2004, Pequim2008, Londres2012, Rio2016, Tóquio2020 e Paris2024. A vida é um ciclo e isto acaba por ser duro. Sacrifiquei a minha vida pessoal pelo ciclismo... é uma opção de vida e não estou arrependido daquilo que fiz, daquilo que consegui, como consegui e por que consegui.Portanto, deixa a resposta em aberto.Isso...isaura.almeida@dn.pt

José Poeira: “O João Almeida é candidato ao pódio de qualquer Volta e acho que vai ganhar uma Grande Volta”

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