Ser selecionador nacional “é como uma segunda vida enquanto treinador”, segundo Mário Gomes, o técnico que conseguiu a primeira vitória de Portugal sobre a Espanha (76-74) em mais de 100 anos e levou a seleção até aos oitavos de final do Europeu de basquetebol. Nunca foi um estratega curricular e diz que, se calhar, até prejudicou a carreira por não ter o hábito de fazer grandes planos - “preocupei-me sempre mais em fazer bem o trabalho que tinha entre mãos e em gozar esse mesmo trabalho” - mas confessa que, aos 68 anos, está “perto de sair de cena”. Que é como quem diz, deixar de ser selecionador, depois da janela de fevereiro de 2026. Assumiu o comando dos Linces em 2017. Depois de regressar de uma experiência como adjunto na seleção da Jordânia foi confrontado com a dura realidade de muitos técnicos, a falta de opções. Só teve um convite para treinar em Portugal e decidiu não aceitar por questões financeiras, assumindo o papel de diretor técnico nacional. Tinha como missão prioritária definir um perfil para o futuro selecionador depois de Mário Palma anunciar a saída. Era preciso que fosse um treinador que se ocupasse não só da equipa sénior, mas também da coordenação das outras seleções, “quando, do nada”, o presidente da Federação Portuguesa de Basquetebol, Manuel Fernandes, “numa reunião, em dezembro de 2016, se saiu com esta: ‘E se fosses tu, Mário?’”.Quis logo aceitar pois, afinal, “ser selecionador nacional não é propriamente uma coisa que acontece a todos os dias”. Mas ainda pediu para pensar, “porque na altura, parecia mais uma armadilha do que outra coisa”. E “depois de pensar 80% com a cabeça e 20% com o coração”, assumiu “a tarefa sem grande sentimentalismo”.O primeiro jogo correu muito mal e perdeu, mas devagar, devagarinho, com passos bem sustentados, fez o caminho até ao EuroBasket2025. O momento determinante, na opinião do técnico, foi mesmo “quando se definiu claramente o objetivo de chegar a este Europeu”. Porque, a partir daí, preocupou-se “não só em ter uma equipa para o momento, como em fazer crescer essa equipa e torná-la competitiva, para não para ir ao Europeu fazer turismo desportivo”.Logo em 2017, Portugal ficou a um cesto para as fases de apuramento para o Campeonato do Mundo. Em fevereiro de 2021, num jogo em Chipre, percebeu que a equipa estava a dar o salto na direção do objetivo e, depois, em fevereiro de 2023, quando ganhou “uma batalha” na Bulgária teve a certeza que iria ser bem sucedido. O apuramento chegou em fevereiro de 2025, com Portugal a regressar às fases finais, 14 anos depois da última presença.Jogadores com poucos minutos, um problema estruturalLiderar pelo exemplo sempre foi o seu lema. Mário Gomes confessa-se “um treinador que acredita que o caminho para chegar a algum lado é o de exigência permanente”. E diz muitas vezes aos jogadores que, enquanto essa exigência não se transformar em auto-exigência de cada um deles, não vão chegar onde poderiam: “Todas as intervenções, mesmo aquelas que são mais desagradáveis, têm sempre como intenção levar o jogador a fazer aquilo que é bom para a equipa. E nunca é pessoal, porque no dia em que as coisas se tornarem pessoais, deixo de ser o líder que a equipa precisa. Claro que não foi tudo um mar de rosas, mas as divergências foram resolvidas”. O bom desempenho português no EuroBasket2025 teve muito a ver com a sua forma de encarar o jogo. “A seleção joga segundo a minha filosofia, atendendo ao grupo de jogadores que temos, e a defesa é a minha imagem de marca... digamos assim. O meu maior mérito é ter sempre acreditado neste grupo de jogadores, numa altura em que muitos tinham tempo residual de jogo nos clubes”.A partida em que a campeã mundial Alemanha faz menos pontos foi frente a Portugal (85). “No fim do jogo, o treinador alemão disse-me que tínhamos sido a primeira equipa, até aquele momento, que lhes tinha causado dificuldades reais”. Portugal perdeu (85-58), mas discutiu o jogo até à paragem do terceiro período. “Aí foi como um esvaziar das reservas... porque levei ao limite alguns jogadores no jogo anterior, com a Estónia”. Foi o primeiro jogo em oito anos em que Portugal não marcou um único ponto de contra-ataque e sofreu 20, quase todos no último quarto, “quando se acabou a gasolina” aos jogadores portugueses, segundo o técnico, que não “podia estar mais orgulhoso” da sua equipa, após “seis jogos de elevadíssimo nível em 10 dias”. Mesmo tendo em conta que a maioria dos jogadores da seleção passaram a maior parte do ano a jogar uma vez por semana. “Esse é um problema estrutural do basquetebol português”, que Mário Gomes, espera ver atenuado agora. Segundo ele, falta criar uma competição, idêntica à Liga Revelação, no futebol, que permita aos jovens entre os 18 e os 22 anos chegarem ao alto rendimento. “Um basquetebolista com potencial, aos 18 anos, chega a um plantel de um clube da Pro Liga e joga um, dois minutos, três minutos”, lamentou, desabafando que “Portugal não tem basquetebol para ter o número de estrangeiros que tem”, porque, nem todos têm qualidade e, além de roubarem oportunidades para os jogadores nessa faixa etária se desenvolverem, esgotam orçamentos que os podiam manter na modalidade ao nível profissional.Por isso, “para bem das seleções”, é preciso entender que “uma coisa é formar até aos juniores e outra é apostar nos jogadores que aos 18 anos têm potencial para chegar ao alto rendimento”. “Neste momento temos um núcleo de 20 jogadores que podem participar na seleção mantendo o nível de seleção, mas seguimos mais potencialmente selecionáveis. Não fazemos a coisa tão organizada e tão sistematizada como seria desejável, mas conheço, vi jogar e falei com alguns desde os sub-14”. E o que diz o selecionador a um sub-14? “Digo-lhe que ninguém sabe se vai chegar às seleções, mas que é possível e que não faz sentido andar metido nisso se não tiver esse objetivo.”Resumindo: “O basquetebol português está num momento bastante bom” e “os recentes resultados das seleções seniores, são muito importantes”, mas “o futuro depende do trabalho que for feito daqui para a frente”. A grande dificuldade é gerar um compromisso à volta de 3/4 pontos essenciais que permitam definir um rumo para aproveitar este momento, assim como o aumento de praticantes no pós-pandemia.E claro, “o bom” de ter um Neemias Queta - único português a entrar e ser campeão da NBA, nos Boston Celtics - é ter mais jovens a querer seguir os seus passos. “Ele tem objetivos claros, sabe onde é que quer chegar, sabe qual é o caminho que tem que fazer, mas nunca se esquece de onde veio, e isso é fundamental para um atleta ser, também, um exemplo como ser humano.”Quem tem Neemias... adapta-se e fica mais forte Para Mário Gomes, “uma equipa tem que valer mais do que a soma das individualidades e essa é a grande força desta seleção, os jogadores vão à seleção com paixão e isso gera uma química que, depois, em termos coletivos, leva a ultrapassar situações que sem essa união não era possível ultrapassar”. A frase -“com o Neemias a seleção acredita um bocadinho mais” - dita pelo técnico ainda no estágio de preparação para o europeu foi o mantra da equipa, até quando teve de jogar sem ele em plena competição. O selecionador também acredita um bocadinho mais quando tem o poste dos Boston Celtics da NBA à disposição, porque integrado ele sempre esteve. “O Neemias nunca deixou de fazer parte do grupo. Ele tem uma ligação muito forte, especialmente aos jogadores, mas também aos treinadores. É um ser humano com quem dá gosto privar e partilhar coisas. O Neemias aumenta a segurança da equipa para fazer coisas que, sem ele, são mais difíceis de fazer e, com isso, aumenta também os níveis de confiança. Agora, tal só é possível porque ele nunca foi um corpo estranho no grupo”.O jogo com a Estónia é o melhor exemplo disso mesmo, segundo o selecionador. Nessa partida, em que Portugal garantiu o apuramento para os oitavos de final, com um triunfo (68-65), depois de estar quase sempre a perder e ficar sem Neemias a partir do terceiro período, “foi uma questão de caráter, não foi uma vitória tática”. E disse-lhes isso no balneário, num reconhecimento personificado no abraço que deu Miguel Queiroz, “um capitão na verdadeira acessão da palavra.”A cara fechada de Mário Gomes, com aquele ar zangado sempre que aparecia na imagem, nas transmissões dos jogos, é apenas “empenho na missão” e não podia contrastar mais com o tipo de pessoa que diz ser: “Extrovertido e falador, sempre a aproveitar as deixas para fazer piadas de ocasião.”Mário considera-se “uma pessoa de convicções fortes, mas suficientemente tolerante” para aceitar opiniões contrárias e entristece-o a falta de humanidade da sociedade: “Gosto de discutir política, mas cada vez mais em círculos reduzidos, porque não tenho paciência para algumas falsas argumentações, que mais parecem certezas de nada.”Apaixonam-no muitos assuntos e o basquetebol é um deles, mas confessa ter “jeito” para poucas coisas. “Sou bom à mesa, cozinho bem dois pratos, um é o ovo estrelado e o outro são dois ovos estrelados (risos). Gosto muito de música, mas tenho um ouvido de pedra e um pé de chumbo. Também gosto de ir ao teatro, mas, como não gosto de ir sozinho, não é fácil ter companhia para ir por causa dos horários de treinos e jogos”, revela o avô de dois netos, a sua mais recente perdição.Treinador desde 1971, ano em que assumiu os iniciados do Algés, após uma bem sucedida carreira de jogador, preza-se de ser “uma pessoa grata” e sair agora, à beira do fim do mandato do presidente que apostou nele, “não era correto”. Mas, depois das eleições, que irão eleger um novo presidente em maio, colocará o lugar à disposição. isaura.almeida@dn.pt.Histórico. Portugal vence Estónia e qualifica-se pela primeira vez para os oitavos de final do Eurobasket