Com a pandemia e os adiamentos dos filmes da Marvel (Black Widow poderá ser de novo adiado...) , WandaVision, série para a Disney + com a vida íntima da Feiticeira Escarlate e Visão, acaba por ser a retoma da personagens da Marvel Cinematic Universe do recordista de bilheteiras Vingadores: Endgame, dos manos Russo. Só que após os dois primeiros episódios já disponíveis no novo gigante do streaming, pode-se falar em "e agora para algo completamente diferente!". Sem meias medidas, é uma linguagem televisiva verdadeiramente nova e audaz, usando um preto & branco cristalino para um pastiche às sitcoms dos anos 1950, 60 e 70 da televisão americana. Um humor que reconfigura uma certa subversão dos códigos narrativos da ficção americana, ruminando, confundindo e divertindo-nos numa cerimónia que mais parece saído de um filme de culto radical..A ousadia desta série onde cada episódio tem a duração das sitcoms tradicionais, os familiares 30 minutos, começa por nos apresentar os super-heróis como um casal clássico que se muda para os subúrbios, neste caso um "paraíso" do sonho americano chamado Westview, onde se ouvem gargalhadas enlatadas e há intervalos com anúncios "vintage" a meio das peripécias..Wanda, o nome civil da Feiticeira, apenas quer mostrar à vizinhança que é uma dona-de-casa pouco desesperada e perfeita, enquanto o sofisticado robô Visão quer também ser um chefe de família exemplar e um vizinho "à maneira"..No arranque da série, a preocupação do casal é tentar encaixar nesse estilo de vida americano tão anos 1950, sendo que o grande desafio é que tudo corra bem no jantar com o patrão de Visão. Wanda tem de caprichar na cozinha sem ninguém dar com os seus poderes de mover objetos, enquanto ao seu homem-máquina cabe-lhe fazer sala e marcar pontos para a promoção..No segundo episódio, cujo genérico inclui uma animação em tom de gozo, vamos conhecendo melhor a vizinhança, desde a vizinha petulante e líder das senhoras do bairro ao clube de vigilantes que se reúne na biblioteca. Ainda assim, a grande tarefa do novo casal na zona é preparar um número de magia para uma cerimónia de apoio às crianças de uma escola. Tudo parece correr bem à Feiticeira e a Visão exceto uma pastilha elástica que provoca uma espécie de embriaguez em Visão....Pelo meio, muitos "ovos da Páscoa" com pistas para outras entradas do universo Marvel, em especial Dr. Stranger e a Homem de Ferro. Pistas e pequenos solavancos com cor que podem indiciar que algo não faz sentido nesta idílica vida de um casal de super-herói. E é aí que suavemente a fórmula de comédia começa a prenunciar algo mais..Estes dois primeiros episódios acordaram os "fan boys" de todo o mundo e criaram um falatório ao nível de Mandalorian, a série Star Wars que era o tesouro forte da Disney +. Entre os indefetíveis da Marvel há quem esteja rendido mas também quem acuse efeitos de estranheza. A dose surrealista desta criação da argumentista Jac Schaeffer é óbvio que arroga uma singularidade que será polarizadora, ainda que nesta altura o melhor é esperar: a série pode ir para muitos caminhos e tons, mesmo que os primeiros balanços deixem muito atordoados. A boa notícia é que quem não é fã da generalidade dos filmes com o logo Marvel é bem capaz de se sentir atraído por este objeto televisivo. Em boa verdade, quem tem boas recordações de obras como Truman Show, de Peter Weir ou esse algo esquecido Pleasantville- A Viagem ao Passado, de Gary Ross, talvez se sinta mais identificado..WandaVision é também um cocktail de referências televisivas e uma homenagem velada ao espírito mais clássico da sitcom americana. Vai da citação de I Love Lucy, com Lucy Ball ao espírito familiar de The Brady Bunch, de Sherwood Schwartz e de The Dick Van Dyke Show, de Carl Reiner, passando pela vénia explícita a Casei com uma Feiticeira, a interminável série com Elizabeth Montgomery. Os atores Elizabeth Olsen e Paul Bettany são insuperáveis na maneira de recriar os trejeitos do "acting"dos atores dessas sitcoms....Em tempos de confinamento, fugir para esta terra do faz-de-conta é uma das joias desta série, no qual o tema principal parece ser uma crítica à obsessão americana de todos sermos normais. Se o espetador não for tão cínico, é um mergulho revivalista (mas sempre "hipster") na ideia do esplendor da inocência da América perdida. Se isto não é ser subversivo em plena casa da Disney...