No Museu do Prado, no coração de Madrid, há um tríptico pintado pelo artista Hieronymus Bosch, algures entre 1490 e 1510, que eleva o conceito de criatividade a um nível até então inatingível. Entre deambulações bíblicas e explosões fecundas de engenho, o criador que terá nascido e vivido no que hoje corresponde aos Países Baixos deu um contributo iconográfico sem paralelo ao mundo da música, seja pelo rigor com que detalhou a morfologia de vários instrumentos musicais como pela forma como fixou literalmente uma melodia nas nádegas de alguém que, naquela pintura, está debaixo de um alaúde. E até há alguém que, enquanto fala com uma figura que tanto pode ser um pássaro, um sapo, um monge ou todas estas figuras vertidas numa única, aponta para aquela estranha partitura, como se estivesse a comentá-la (mais pelo local onde está escrita do que certamente pela melodia). E ainda há uma multidão que ouve com curiosidade aquele comentário. Este é O Jardim dos Prazeres Terrenos, numa tradução livre da versão original neerlandesa, que é apenas uma sugestão de estudiosos: De tuin der lusten (ou o Jardim das luxúrias). De qualquer forma, o título original é atualmente desconhecido.Na gravura central do tríptico, há uma miríade de pessoas sem qualquer peça de roupa que interagem com um ambiente que desafia os limites da ciência. Há frutos com morfologia desconhecida, rios, criaturas aladas, plantas alienígenas, forma orgânicas improváveis, muitas aves, peixes ao colo de pessoas, moluscos que parecem abocanhar o torso dum homem incauto, camelos, hipogrifos e outras quimeras, sereias, mulheres com asas de inseto, edifícios que poderiam ser confundidos com flores inexistentes feitas de metal e vidro.Na gravura que fica à esquerda do observador, está uma recriação do momento em que Deus abençoa Eva, enquanto, com a mão esquerda, lhe agarra a mão direita. Adão está sentado na relva. Eva e Deus estão em pé. Deus é o único que está vestido, com uma túnica vermelha já esbatida pelo tempo. À volta, há animais que, naquela altura, só poderiam existir em África, como elefantes e girafas, e criaturas grotescas, talvez répteis indizíveis. Também anda por lá um unicórnio, ebúrneo, ao lado de antílopes e vários animais que desafiam a lógica..Na terceira gravura, a mais obscura, há música por todo o lado. Fica à direita do observador. Para além de uma gaita de fole, que parece estar num ambiente infernal, com terras inflamadas, ainda com chamas ativas, há um par de orelhas que, entre elas, em vez de uma cabeça, têm uma faca. Parece ser uma descrição daquilo que a maioria das pessoas descreveria como um inferno. Mais abaixo, de dentro de um alaúde nasce uma harpa. Qualquer um destes instrumentos é retratado de forma sóbria, com madeira polida, limpa. São tão rigorosos que quase podem ser ouvidos. Porém, debaixo do alaúde, há uma multidão, desproporcionalmente minúscula, tendo em conta o tamanho do instrumento. É lá que está aquela pessoa nua, com uma partitura pintada ou tatuada nas nádegas. A título de curiosidade, há várias interpretações contemporâneas daquela improvável partitura.Do outro lado, há uma sanfona (um cordofone de origem medieval, com cordas friccionadas por uma roda que é acionada com uma manivela; no Brasil, sanfona é um acordeão), tão sóbria como os outros instrumentos, a destoar com o entorno apocalíptico. Há vários pássaros neste inferno, e um deles até engole uma pessoa (só se veem as pernas de fora daquele bico enorme).O aviso deixado por Hieronymus Bosch será uma eternidade cheia de música, mas, de forma aparente, só para aqueles que vão parar ao Inferno. Certamente que haverá várias leituras possíveis para esta descrição que o artista nos deixou, principalmente para os especialistas em Teologia, mas não consigo deixar de notar que, através da insistência, ao longo de séculos, de musicólogos, músicos, luthiers (artesãos especializados na construção e manutenção de instrumentos musicais) e entusiastas em geral, a minha realidade diária é parcialmente um inferno de Bosch.Grande parte dos meus amigos toca vários dos instrumentos que aparecem neste tríptico e, quando estamos juntos, não há revelações apocalípticas. Muitas vezes de forma impensada, até tocamos músicas contemporâneas de Bosch, talvez até mais antigas. Mas, para nós, os que dançam e tocam, está longe de ser o Inferno ou o fim dos tempos. É o princípio de tudo.