Arrancou ontem às mil maravilhas a competição oficial de Veneza. Maria, do chileno Pablo Larraín, coprodução entre a Itália e a Alemanha, com participação chilena e americana, é a história dos últimos anos da vida de Maria Callas e uma transformação monumental de Angelina Jolie. Mas a finta do realizador de Não é engenhosa: nem Jolie está pensada para mimetizar a diva grega nem este é um biopic da ordem, tal como não eram os seus outros olhares de divas trágicas: Jackie Kennedy em Jackie (2016) e a Princesa Diana em Spencer (2021). O guião de Steven Knight, o argumentista de Peaky Blinders e Estranhos de Passagem, vai por uma outra via, experimenta entrarmos dentro da alucinação da cantora.Tudo se passa na última semana da vida de Maria Callas no seu sumptuoso apartamento de Paris, entre muita ressaca de comprimidos que a deixam numa realidade paralela e um revistar da sua vida profissional e amorosa. No plano da ópera, todo o seu sucesso seguido do trauma de Onassis a ter proibido de prosseguir a carreira, no plano amoroso a certeza de que apenas encontrou um amor, o “feio” e bruto milionário Onassis, que a trocou por Jackie Kennedy. Larraín utiliza muita estilização nesse álbum de memórias, mas parece sempre mais focado nos pequenos detalhes: a relação de Maria com o mordomo e a empregada doméstica ou as últimas tentativas de voltar ao canto com um pianista inglês, embora a gravitas da história esteja no filme dentro do filme, ou seja, imagens de um documentário-entrevista feita com um pretendente ou amigo imaginário. Trata-se de uma personagem-ficção, um bafo de morte que charmosamente a seduz com uma adulação tóxica. A preto e branco, surgem ainda imagens de um episódio traumático quando a sua mãe a tentou prostituir com um oficial nazi na Grécia ou o seu encontro com JF Kennedy.Mas o que é assombroso na interpretação de Angelina Jolie não é a capacidade de dar humanidade à diva perante os chorrilhos de tragédia, é sim a sua abertura para uma vulnerabilidade estoica, seja nos momentos em que se transcende a cantar, seja na abstração do mundo que cria por entre uma medicação de anfetaminas. Sabiamente, não há maquilhagem com máscaras para a tornar igual à diva, isso seria errado - Pablo Larraín é demasiado inteligente para querer o rasto de Museu de Cera Madame Tussaud e Jolie uma atriz que não se deixa ir em prostéticos. Parece mais do que certo que a Freemantle, a financiadora do filme, tem mais do que razões para ir preparando uma campanha para os prémios para a atriz, mesmo quando esta vem dizer, ontem na conferência de imprensa, que fez o filme para servir o legado de Callas e agradar aos fãs da cantora. Dê por onde der, Maria é já um dos grandes momentos desta mostra. Cinema elegantemente lírico, escrito com diálogos poderosos e um poder elegíaco tremendo. Pablo Larraín supera-se num objeto sobre o canto do cisne. .Libelo contra Trump.Na seleção oficial dos documentários, Errol Morris filma um dos pecados mortais da administração de Trump em Separated, visão parcial sobre a lei da separação de pais e filhos no controlo dos migrantes nos EUA. Conta-se a história da implementação de uma chocante medida de Donald Trump supostamente para afastar a imigração ilegal, a lei da “tolerância zero” que foi depois eliminada após protestos no interior e no exterior do país. Morris não convence quando, pelo meio da investigação e das estilizadas entrevistas, mistura animação e docuficção através da recriação de uma separação de um menino guatemalteco e da sua mãe. A estridente música constante não ajuda, deceção… .Protesto confirmado.Ontem também, vários jornalistas de cinema acreditados no festival enviaram um comunicado de protesto contra o atual tratamento aos freelancers, sobretudo devido à nova política da recusa das estrelas em darem entrevistas e à nova tendência de citações falsas de críticas favoráveis geradas pela Inteligência Artificial. O grupo de profissionais é extenso e ameaça mesmo boicotar os festivais que apoiarem esse estado de coisas…