Ese, de repente, um casal desconhecido lhe oferecer uma rara coleção de arte e arqueologia da Antiguidade Clássica? O famoso slogan de um desodorizante dos anos 1980 pode bem ser aqui adaptado para ilustrar a reação inicial no Museu D. Diogo de Sousa, em Braga, quando a diretora Isabel Silva se viu surpreendida pela oferta de um casal alemão que ali deixara um singelo cartão após uma visita..Neste caso, o contacto posterior apresentou-lhe Hans-Peter Bühler e Marion Bühler-Brockhaus, colecionadores e mecenas radicados em Portugal (Setúbal) desde 2006, e uma proposta inesperada: doar ao museu toda a coleção pessoal de arqueologia clássica que o casal foi construindo ao longo de décadas. No total, são mais de 300 peças de valor incalculável, todas provenientes do Mediterrâneo, que compreendem várias geografias e cronologias entre o período grego e o romano, destacando-se um busto de mármore de Augusto, fundador do Império Romano. O resultado estará à vista do público, a partir de hoje, em exposição permanente no museu da antiga capital da Galécia, Bracara Augusta..Esta importância histórica da cidade, cujo legado dos tempos romanos ainda está bem preservado num circuito de vestígios arqueológicos distribuídos por vários pontos, desempenhou um papel decisivo na escolha do casal Bühler-Brockhaus, que no início de 2015 decidiu reforçar a compra de objetos arqueológicos para posteriormente doar a um museu português, num gesto que eternizasse a sua ligação ao país..Após visitas a algumas instituições, a escolha recaiu no Museu de Arqueologia D. Diogo de Sousa, em Braga, por se tratar de um museu centenário, que abrange os períodos desde o Paleolítico até à Idade Média, com especial relevo para o espólio proveniente da cidade romana de Bracara Augusta, e a isso juntar um laboratório de restauro, com uma equipa especializada no domínio da arqueologia.."O casal queria legar a sua coleção. Em Setúbal, onde residem, não tinham condições para esse efeito. O Museu Nacional de Arqueologia também não tinha uma coleção permanente, daí que nesta viagem à procura de um lugar tivessem aqui chegado e tivessem identificado essa estratégia de cidade e um discurso, uma narrativa coerente sob o ponto de vista do conhecimento das obras de arte e da própria valorização desse acervo", refere Isabel Silva, que recebeu o DN na sala onde está exposta a coleção..Uma coleção que contempla "algumas obras de arte únicas no contexto europeu" e que reforça o museu como "uma referência de notoriedade internacional no circuito da Arte e Arqueologia do Mundo Clássico". Mas também, sublinha a diretora, "uma coleção de afetos" que serve para contar a história de amor deste casal alemão. Um amor no qual a arte surge como elemento nuclear. "Há um aspeto intangível nesta coleção, que decorre do amor à arte deste casal, de uma vida a colecionar e a vivenciar experiências, a reunir conhecimentos e memórias em torno da arqueologia e da arte. E isso é algo que nos confere também uma responsabilidade diferenciada. Não temos só um conjunto de obras de arte, temos também uma coleção de amor, de afetos, de memórias", descreve Isabel Silva..Hans-Peter e Marion cresceram no seio de famílias ligadas à cultura e ao mundo da arte, com longa tradição de mecenato. Conheceram-se em 1959, em Estugarda, e desde então que "vivem dedicados a enriquecer culturalmente os ambientes onde se movem, com um verdadeiro sentido de partilha e com o objetivo de potenciar a fruição pública de bens patrimoniais". Hans-Peter estudou História de Arte e Arqueologia na Universidade de Munique e desenvolveu carreira profissional na galeria de arte da família, a Kunsthaus Bühler, fundada em 1904, em Estugarda. Marion nasceu no seio da família que fundou a editora F. A. Brockhaus, que viria a ser a maior editora alemã e imprimiu a primeira enciclopédia em língua germânica nos inícios do século XIX..O casal deu continuidade à tradição de mecenato herdada dos antepassados, através de doações de peças e apoios financeiros a museus e instituições. Em 2004, foram responsáveis por uma das mais importantes doações de pinturas de coleções particulares a museus públicos, com a doação de 41 obras de artistas franceses ao Museu de Belas-Artes de Leipzig, destaca o dossiê da coleção Bühler-Brockhaus..Em Setúbal, para onde vieram viver em 2006, a presença de Hans-Peter e Marion também se fez notar em vários espaços da cidade. Das esculturas no corredor central do Mercado do Livramento, de Augusto Cid, às de sardinhas de mármore, de autoria de Luísa Perienes, ou à emblemática escultura dos golfinhos (de Carlos Andrade), entre outros, são várias as marcas do mecenato do casal, a quem o presidente-diretor honorário do Museu do Louvre, Pierre Rosenberg, se referiu um dia como "generosos doadores, com que todos os museus sonham".."Ambos têm uma formação de arqueologia e gosto pela arte, viajaram muito, conheceram muitos projetos e muitos investigadores neste domínio da arte clássica. Esta coleção é também testemunho dessas amizades, dessas viagens... de um percurso de vida", diz a diretora do D. Diogo de Sousa..Entre as peças que a nova coleção permanente do museu tem para mostrar ao público, o busto romano de mármore do imperador Augusto, datado do final do século I a.C., é considerado um dos melhores retratos de Augusto que se conhecem. É uma espécie de cereja sobre o bolo desta coleção. Foi, aliás, "comprada já depois de acordada a doação" do acervo ao museu bracarense, "num leilão" em Maastricht. "O busto estaria à venda por valores muito elevados, mas eles tiveram aquele entusiasmo e determinação de não abrir mão da negociação porque pensaram justamente que teria todo o sentido o busto de Augusto, já que era um elemento evocativo da fundação da cidade", revela Isabel Silva..Mas há muito mais, entre as 300 obras de arte: um cálice etrusco que é "uma raridade do século VII a.C", um mosaico romano datado do final do séc. III d.C., "com a representação da cena mitológica grega do casamento de Pelops e Hipodâmia", um vaso funerário grego produzido em Tarento, na Magna Grécia (sul de Itália) no terceiro quartel do século IV a.C., "que mostra o submundo povoado por figuras mitológicas", esculturas de mármore, mosaicos romanos, vasos cerâmicos gregos e etruscos, unguentários romanos de vidro, utensílios e adornos de bronze e metais nobres, ou ainda a cabeça do imperador Trajano, entre outras raridades.."Peças do período romano provenientes do Mediterrâneo, que fazem um contraponto com a nossa coleção permanente inicial, que tem que ver com o mundo romano da faixa atlântica", salienta Isabel Silva, para quem "a exposição permite também essa reflexão do que nós somos e do que nós fomos, no início do período clássico, aquilo que nos une e que nos diferencia e como nós chegámos ao que somos hoje, estas múltiplas identidades"..Reflexões proporcionadas num museu de cara lavada, já que o casal Bühler-Brockhaus fez questão de financiar também obras de requalificação do imóvel do museu, da pintura e limpeza de todo o exterior, à melhoria da acessibilidade, segurança e iluminação, além da própria montagem da exposição, num montante superior a meio milhão de euros. Em troca, neste auto de doação assinado em 2018, o casal fez apenas um pedido, revela a diretora do Museu D. Diogo de Sousa: "Que mantivéssemos a coleção na íntegra, sem a dispersar.".rui.frias@dn.pt