Distinguido pela Academia Sueca com o Nobel da Literatura 2025 “pela sua obra marcante e visionária que, no meio do terror apocalíptico, reafirma o poder da arte”, a escolha de László Krasznahorkai não foi propriamente uma surpresa. O escritor húngaro liderava todas as bolsas de apostas, mas para Ernesto Rodrigues, tradutor do seu primeiro livro publicado em português, O Tango de Satanás (Antígona, 2018), “ao mesmo tempo é uma surpresa na medida em que a literatura dele é pouco adaptada a um prémio deste tipo”. O também escritor e crítico diz-se feliz por o Comité Nobel ter visto “vantagem nesta literatura, que retoma os anos do comunismo húngaro, o socialismo real na Hungria e que ao mesmo tempo avisa dos falsos profetas de hoje”.Nascido em 1954, em Gyula, no sudeste da Hungria, não muito longe da fronteira com a Roménia, o filho de um advogado e de uma funcionária pública seguiu as pisadas do pai, tendo estudado Direito, antes de enveredar por Língua e Literatura Húngara. Em 1985, o sucesso chega logo com o romance de estreia, O Tango de Satanás, um retrato sombrio e hipnotizante de uma comunidade rural em colapso. Seria esta a obra que, na tradução para inglês em 2015, lhe valeria o Man Booker. O livro já fora adaptado ao cinema em 1994 pelo seu compatriota Béla Tarr, numa obra monumental de umas impressionantes sete horas e meia.Para João Lopes, “a adaptação para cinema tem qualquer coisa de épico rural, quanto mais não seja porque a sua desencantada visão dos laços humanos está sistematizada ao longo de uma duração invulgar - são mais de sete horas... Aliás, com alguma ironia, podemos dizer que o filme de Tarr antecipa toda uma ‘liberalização’ das durações que, para o melhor ou para o pior, se consumou através de muitas produções (séries, minisséries, etc.) para as plataformas de streaming.” O crítico de cinema destaca a colaboração entre Tarr e Krasznahorkai, como argumentista, que começou em 1988 com Damnation. “A sua condição de realismo social (tendo como ponto de partida uma assombrada relação amorosa) encontra a expressão ideal nas imagens a preto e branco que são, afinal, uma marca inconfundível do cinema de Tarr. Talvez se possa até considerar que a escrita de Krasznahorkai renasce através desse preto e branco que voltaria a estar presente nas suas colaborações em Werckmeister Harmonies (2000), a partir de outro romance de Krasznahorkai (A Melancolia da Resistência, 1989), e ainda no prodigioso O Cavalo de Turim (2011), inspirado num episódio mais ou menos lendário vivido por Friedrich Nietzsche ao observar, em Turim, os maus tratos a que estava a ser sujeito um cavalo que não se queria mover”.Também o escritor e professor universitário José Manuel Mendes ficou “feliz” com a escolha do Comité Nobel. “Trata-se de um dos autores cuja obra, desde os finais dos anos 1980, venho acompanhando com imenso apreço. Por aquilo que nela é novo, disruptor, contagiante, com uma identidade própria que nos implica, seja na travessia de momentos profundamente marcados pela melancolia, seja na incursão histórica ou sociológica que também ocorre, mas, sobretudo, por uma construção formal a todos os títulos fascinante, tanto no plano efabulatório como no desenho das personagens e numa linguagem de grande precisão. László Krasznahorkai é um autor complexo, no exato sentido de alguém para quem a literatura não é um divertimento, nem um modo de estar fagueiramente no comércio.” Se o sucesso, pelo menos no seu país, surgiu logo em 1985, com o primeiro romance, seria o segundo, esse A Melancolia da Resistência, que o consagraria. E levaria a crítica americana Susan Sontag a descrevê-lo como “o mestre húngaro contemporâneo do Apocalipse que inspira comparações com Gogol e Melville”, dois dos seus autores preferidos. Um epíteto que se lhe colou à pele, apesar de a sua obra também ter outras dimensões, sobretudo depois de ter passado temporadas na China e no Japão, que resultaram em obras mais contemplativas como Rombolás és bánat az Ég alatt (algo como Destruição e Tristeza sob os Céus) ou Seiobo járt odalent (ou Seiobo Lá Em Baixo, numa tradução livre). João Lopes destaca que essa classificação como “mestre do Apocalipse” “encontra um eco muito particular e, a meu ver, muito sugestivo, na intransigência formal e na austeridade realista do cinema de Béla Tarr. Sou dos que consideram que a banalização espetacular das imagens, hoje em dia infelizmente dominante nas televisões, tem gerado muitos focos de resistência formal - resistência realista, justamente - nos mais diversos contextos cinematográficos. Talvez possamos dizer que tal resistência, através da sua dimensão apocalíptica, constitui um laço vital entre o cineasta e o escritor.Tradutor de 15 livros de autores húngaros, Ernesto Rodrigues lembra como em O Tango de Satanás “temos primeiro uma mancha como texto, que não facilita a leitura de entrada, mas a pouco e pouco vamos percebendo a circularidade do texto e até a autoironia, a par disso temos o desamparo das figuras, que são figuras marginais. Portanto, por um lado a massa do texto, o desamparo de figuras marginais, que se tem depois de debater com o discurso oficial e falsos profetas, tudo isso cria uma atmosfera pura, negra.”Mais do que o “mestre do Apocalipse”, Ernesto Rodrigues vê em Krasznahorkai um “um quadro até pós-apocalíptico”. E admite que “temos que ler lentamente, ir absorvendo o texto, sabendo que o húngaro, por um lado, tem palavras enormes que, nessa massa compacta, maiores parecem”. E admite que essa é uma dificuldade acrescida para o tradutor. E dá um exemplo: “Há uma parte de sonho em que ele cola as próprias palavras e no português tive também de colar os vocábulos.”Destacando O Tango de Satanás, Háború és háború (em português, Guerra e Guerra) ou A Melancolia da Resistência de entre os livros de Krasznahorkai, José Manuel Mendes descreve uma “obra, a muitos níveis, inclassificável do ponto de vista dos roteiros literários e das topologias e topografias literárias”. Para o também presidente da Associação Portuguesa de Escritores, o novo Nobel é “muito autónomo, muito singular, com uma escrita que não é catalogável, mas que a muitos níveis se pode entender como contra a corrente de uma tendência para a trivialização de tudo.”Segundo Nobel húngaroDepois de Imre Kertész, em 2002, Krasznahorkai é o segundo húngaro a vencer o Nobel da Literatura. Língua fino-úgrica, o húngaro não integra a grande família das línguas indo-europeias. Quem o conhece bem é Ernesto Rodrigues, que foi leitor de português na Universidade de Budapeste, entre 1981 e 1986 e tradutor dos cinco livros de Kertész hoje disponíveis em português. Para ele, “sobretudo, o segundo, A Recusa, tem muito a ver com este tipo de literatura de Krasznahorkai”, porque “ambos têm a ver com um país que lhes foi avesso”. E lembra que Krasznahorkai “é contra a extrema-direita húngara, tem feito declarações nesse sentido, e quando eu falava dos falsos profetas e do discurso superficial é para alertar para esse risco”. Apesar das suas posições políticas, a vitória de Krasznahorkai foi saudada tanto pelo primeiro-ministro Viktor Orbán como pelo seu mais feroz opositor, Peter Magyar. O primeiro escreveu no X: “László Krasznahorkai, vencedor do Prémio Nobel de Literatura da Hungria, é motivo de orgulho para a nossa nação. Parabéns!”, enquanto o segundo usou a mesma rede social para parabenizar o escritor, lembrando que os seus “melhores romances retratam o mundo da vida rural húngara esquecida e das pessoas oprimidas pelo poder.”A embaixadora da Hungria em Portugal, Emilia Fábian, também se mostrou, em declarações ao DN, “muito feliz com esta notícia”, lembrando que depois de Imre Kertész, este prémio para Krasznahorkai “é um importante reconhecimento da criatividade e do talento húngaros.”Um livro a chegar às livrarias e outro para o anoEste mês a editora Cavalo de Ferro lançou o quinto romance de Krasznahorkai, Herscht 07769, que chega às livrarias nacionais a 13 de outubro. Descrito pela editora como uma “sátira devastadora e profética sobre a desintegração social e o colapso ecológico, o nacionalismo e o globalismo, e a linha ténue que separa a civilização da barbárie, Herscht 07769 é o grande romance sobre a Europa do século XXI”.Para Diogo Madre Deus, sócio-fundador da Cavalo de Ferro, a decisão do Comité Nobel foi “muito justa” por premiar “a arte do romance e a arte da literatura”. Para o editor, Krasznahorkai “não é um autor que faça muitas concessões à leitura, não está preocupado com a leitura, num tempo em que há muita dispersão, muita distração, acho que é importante que o prémio Nobel seja no sentido contrário, no sentido de premiar a concentração e uma distância mais longa entre o texto e o leitor, que tem que se esforçar”. Perante o prémio a Krasznahorkai, a Cavalo de Ferro, que edita também Jon Fosse, vencedor em 2023, antecipou a chegada de Herscht 07769 às livrarias e reforçou a tiragem, antecipando a curiosidade dos leitores pelo novo Nobel. E tem já em produção um outro romance do autor húngaro, Guerra e Guerra, previsto para o primeiro semestre do próximo ano. O próprio Krasznahorkai é um dos convidados do Folio - Festival Literário Internacional de Óbidos -, onde deverá estar no dia 19..Vargas Llosa. Do 'boom' latino-americano ao 'big-bang' do escritor total