Depois de ter subvertido as expectativas com o primeiro filme, Todd Phillips volta a tirar o tapete a quem achava que o segundo tomo de Joker ia, por fim, ser a história do vilão de Batman. As reações gélidas que este filme gerou desde que foi apresentado em competição no último Festival de Veneza, oferecem uma espécie de mapa para o funcionamento da lógica “comercial” de uma personagem. A saber, o que é que surpreendera no Joker (2019) original, para além da assombrosa interpretação de Joaquin Phoenix? Numa frase, o modo como o seu realizador tinha transformado uma figura de banda desenhada num motivo para explorar a verve da doença urbana segundo os filmes de Martin Scorsese dos anos 1970/80. O que é que agora tende a provocar frustração? O facto de Joker: Loucura a Dois não ser uma sequela tradicional em relação a esse filme que “apenas” fizera o estudo da personagem titular, negando-se, desta feita de outra maneira, o modelo e lógica dos filmes de super-heróis. O que implica igualmente a recusa de um serviço de fãs (voltaremos a esta questão). Entre os aspetos negativos apontados por alguma crítica internacional está a “falta de história”, ou o seu fraco engenho, além da falta de perigo que a personagem comporta, depois da performance sangrenta que a fez símbolo de uma revolta em Gotham City... Se começo por aqui não é com a intenção de contradizer as críticas - até porque a história não é nem nunca foi, por certo, a prioridade de Phillips e do coargumentista Scott Silver-, mas de tentar oferecer uma visão sobre o valor das escolhas arriscadas e como isso se reflete num filme que não tolera, em nenhum plano, a linguagem trivial das imagens. Desde logo, vale a pena notar que Joker: Loucura a Dois arranca em modo de desenho animado, com um segmento estilo Warner Bros. Cartoons dos Anos 40 (brilhantemente concebido por Sylvain Chomet, o realizador de Belleville Rendez-Vous) que mostra o protagonista a tentar controlar a sua sombra, antes que esta o controle a ele... Talvez uma forma de trocar em miúdos a dualidade do próprio filme, que se divide entre o cinzentismo duro da cadeia e o fôlego da imaginação musical de Joker/Arthur Fleck, funcionando a última, lá está, como a sombra colorida que o controla por breves momentos, enquanto apontamento de liberdade que só a cabeça pode proporcionar, já que o corpo está preso à miséria desde sempre. .Arthur Fleck ou Joker?.Loucura a dois, ou tragédia para um.Esses momentos, em jeito de definitiva proposta musical, são espoletados por uma presença feminina, Lee Quinzel/Harley Quinn (Lady Gaga a assumir também o jogo duplo), que arranja maneira de chegar a Arthur Fleck dentro do estabelecimento prisional, só para acender uma chama de paixão que lhe permita despertar o Joker adormecido. É uma história de amor? No seu arranjo de homenagem à febre musical de Hollywood, sim, sem dúvida. Mas o que continua a constituir o foco de Phillips, em vez da folie à deux do título, é a “tragédia para um”, na expressão quebradiça de um novamente superlativo Phoenix, que aqui, em substituição das ruas, circula entre os corredores do cárcere e a sala de tribunal, onde a dada altura estamos a assistir a um julgamento de identidade. .É também verdade que agora Joker não representa uma ameaça: a sua faceta perigosa canta e dança dentro da bolha de fantasia que o filme criou para deixar o animal à solta, de cara pintada e fato vermelho, a experimentar o cancioneiro americano (ouve-se That’s Entertainment, por exemplo) e obviamente a realçar o elemento capital Lady Gaga. A “história sem história” fixa-se então nestes dois corpos que ensaiam uma possibilidade de compreensão mútua, enquanto se deixam levar pela música cá dentro. E no consumar da evasão momentânea, que não estabelece propriamente correspondência com a mais profunda sombra da personagem, Joker: Loucura a Dois manda às urtigas a expectativa dos fãs. Aliás, como prova dessa postura deliberada, ouvimos um comentário provocador de Phoenix a meio de um dos números musicais: “Acho que não estamos a dar às pessoas o que elas querem”. Com efeito, este será um filme, maravilhosamente performativo, que corta relações com o anterior. Ou melhor, que se distancia do fenómeno gerado pelo anterior, ao resistir à tentação de edificar o carisma do vilão, afirmando antes a sua frágil condição humana, o seu desamparo infinito. O tempo de Joker: Folie à Deux é, por isso, o tempo do devaneio pela música, em que a marca registada de Gaga se faz sentir como um gesto autoral no interior daquela orgânica de insanidade que Joaquin Phoenix encarna com o poder de um constante arrepio. E mesmo quando a música acaba, permanece no “anonimato” do seu corpo a infelicidade suprema de todas as canções do mundo. Queriam mais Joker? Neste estaminé fílmico serve-se Arthur Fleck, com voz rouca, à procura de uma nota de amor, para acabar de vez com o romance patológico dos admiradores. Por outras palavras: That’s cinema.