Reflexos e olhares: um filme povoado de solidões.
Reflexos e olhares: um filme povoado de solidões.

Um filme de muitos espelhos

Juraj Lerotic estreou-se nas longas-metragens com Um Lugar Seguro, viagem dramática entre a vida e a morte - venceu o IndieLisboa de 2023, representou a Croácia na corrida aos Óscares e chega agora ao circuito comercial.
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A poucas semanas de um novo IndieLisboa (23 maio/2 junho), a distribuidora No Comboio lança nas salas quatro títulos que estiveram no mesmo festival, na edição de 2023. Um Lugar Seguro é um destaque inevitável: além das muitas subtilezas narrativas desta longa-metragem de estreia de Juraj Lerotic, cineasta nascido na Alemanha, de ascendência croata, o filme conquistou o Grande Prémio do IndieLisboa; foi também o título apresentado pela Croácia como candidato ao Óscar de melhor filme internacional de 2022, mas não chegou às nomeações.

Segundo as notas de produção, trata-se de uma história com assumidas ressonâncias pessoais, a ponto de o realizador (também argumentista) surgir como intérprete de uma das personagens centrais. Chama-se Bruno e, logo na cena de abertura, descobrimo-lo num estranho e perturbante plano fixo: na banalidade do amanhecer de um recanto urbano, Bruno corre, desesperado, em direcção a uma porta que ninguém abre… Decide arrombá-la, deparando com o seu irmão Damir (Goran Markovic) no chão, ensanguentado, depois de uma tentativa de suicídio.
Nenhum filme realmente interessante (é o caso) se reduz à sua sinopse, seja qual for o respetivo grau de pormenores. Neste caso, além de haver uma linha narrativa essencial - como salvar Damir? -, importa ser ainda mais prudente do que é habitual, evitando entrar no domínio daquilo que é suposto cada espectador descobrir. Acrescentemos apenas que Um Lugar Seguro elabora uma dramaturgia entre a vida e a morte, literalmente, num pudico ziguezague de interrogações, capaz de transfigurar todos os olhares, incluindo o do espectador.



Daí a importância da personagem da mãe (Snjezana Sinovcic), reforçando os laços familiares através de uma componente de pragmatismo que, aparentemente, a crueza dos factos vai desmentindo. Daí também a impossibilidade de reduzir Um Lugar Seguro a uma crítica bem intencionada do sistema hospitalar. Claro que são vários os momentos em que podemos reconhecer os sinais de alguma desumanização desse sistema, mas seria simplista tratar o filme de Juraj Lerotic como mais um desses sermões “sociais” que pululam no espaço mediático.
À beira de uma rutura emocional que afeta todos à sua volta (a começar, claro, por Bruno), Damir revela-se como alguém capaz de pôr em causa as próprias certezas com que cada um observa o mundo. Aliás, todo o tratamento da luz e da cor - da responsabilidade do diretor de fotografia Marko Brdar - obedece a uma envolvente dialética de exposição e ocultação. Por vezes, são mesmo criadas zonas de sombra que, à beira do invisível, afetam de forma insólita o que se apresenta claramente visível.

Nesta perspetiva, o tratamento obsessivo das superfícies espelhadas - incluindo os vidros, por exemplo no hospital, que também funcionam como espelhos - ajuda a criar uma ambiguidade em que a verdade material dos corpos não exclui algo como uma metafísica do imponderável. No limite, Um Lugar Seguro debruça-se sobre a vulnerabilidade de qualquer existência e a solidão insuperável que a acompanha.

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