Provas de que o drama de tribunal está de boa saúde não faltam por aí. De Anatomia de uma Queda (Óscar de Melhor Argumento) a Saint Omer (Grande Prémio do Júri no Festival de Veneza 2023), passando pel’O Processo Goldman e, em certa medida, pelo recente Joker: Loucura a Dois, pode dizer-se que tem havido uma feliz renovação do olhar sobre esse espaço da arena da verdade. Algo também percetível agora em Troca de Acusações, filme alemão acabado de se estrear na Filmin, que oferece uma janela ainda mais rigorosa sobre o que se passa numa audiência de julgamento, sem recorrer a quaisquer rendilhados dramáticos que possam distrair do essencial: os rostos humanos e o modo como eles falam à nossa subjetividade.Assinado por Matti Geschonneck, realizador de A Conferência (2022) - esse filme que recriava a monstruosa reunião de 1942 em Wannsee onde foi planeado o Holocausto - Troca de Acusações é igualmente uma encenação à porta fechada, com dois antigos amantes a apresentarem versões opostas do término da relação. De um lado temos a mulher (maravilhosa Ina Weisse), uma personalidade televisiva, na casa dos 50, que alega ter sido violada; do outro, o homem (silencioso, mas não menos notável Godehard Giese) acusado da agressão sexual, que é também um empresário de renome exposto à opinião pública. A mediar as partes, os advogados têm a sua própria troca de insinuações ardilosas, mas a arte sóbria deste filme não passa pela habitual espetacularidade de argumentação dos profissionais. Está tudo na expressão de quem fala e de quem ouve, naquele detalhe que, aqui e ali, modela a perceção do que estamos a assistir. .O segredo do profissionalismo.Tal afinação primorosa deve-se, em grande parte, à mão de mestre do argumentista Ferdinand von Schirach, advogado e escritor que tem posto a sua experiência ao serviço da ficção - haverá quem o conheça pelo argumento de O Caso Collini (2019), mas a sua obra-prima é a minissérie Glauben/A Acusação (2021), que chegou a estar disponível na Filmin. Sem ceder ao conforto do “caso arrumado”, que fabrica no espectador uma distância segura do julgamento, Schirach quer então implicar-nos no câmbio de olhares e palavras, quer que sejamos nós a explorar os sinais naquela sala e a linguagem corporal dos envolvidos no processo. Que, para além do mais, nos dificultam a tarefa por serem pessoas... adultas, na verdadeira aceção do termo.Quase sempre os dramas de tribunal dependem de um jogo de emoções que transcendem a dimensão forense dos factos, ou estes tendem a ser secundarizados. Não aqui: Troca de Acusações é uma minuciosa narração e análise de supostos factos através de discursos e testemunhos que prendem a nossa atenção no teatro controlado do tribunal, com uma linha de abordagem tão neutra quanto elegante, mas não desprovida de ironia. Isso e a sugestão clara de que o/a juiz/juíza se encontra deste lado do ecrã, exercendo o seu julgamento na observação da sede própria. Como se lê no comunicado da Filmin, citando Schirach: “Num Estado constitucional, a culpa ou a inocência de uma pessoa não é decidida nos jornais, nem na televisão, nem nas redes sociais ou fóruns da Internet”. Uma perspetiva madura que impera no filme de Geschonneck, refletindo-se na inteligência do seu quadro humano e na seriedade dos procedimentos. Nada está a mais e tudo responde a um princípio de discrição dramática que envolve o espectador pelo método “limpo”, consciente de que há um mundo a separar o juízo moral e a lei. Admirável.