"Tal como todos os homens da Biblioteca, viajei na minha juventude; peregrinei em busca de um livro, se calhar do catálogo dos catálogos; agora que os meus olhos quase não conseguem decifrar o que escrevo, preparo-me para morrer a poucas léguas do hexágono em que nasci”. Edward Wilson-Lee resgata um excerto da obra do argentino Jorge Luis Borges, A Biblioteca de Babel, para o seu mais recente livro publicado em Portugal, O Memorial dos Livros Naufragados. Palavras oportunas a ilustrarem o prefácio de uma obra que o autor, docente de literatura renascentista em Cambridge, dedica ao construtor da casa de todos os livros. No século XVI, Fernando Colombo, nascido em 1488 em Córdova, segundo filho de Cristóvão Colombo, lançou-se numa empresa utópica. Face à disseminação então recente do livro impresso, o homem que traçou a biografia do pai, pretendeu erigir uma biblioteca universal. Uma vasta exploração organizada por resumos e catálogos, “o primeiro motor de busca para a diversidade explosiva de matéria escrita à medida que a imprensa proliferava por toda a Europa”, relata Edward Wilson-Lee no resumo ao seu livro. Ao longo de três décadas, Fernando acumulou inquieta e obsessivamente a sua coleção de “todos os livros, em todas as línguas e sobre todos os assuntos”. Uma coleção que sofreu perdas, inovou na abordagem aos livros, olhou para a matéria-prima efémera do quotidiano dos homens. Da biblioteca com 15.000 volumes que procurou trazer ordem ao mundo sobra atualmente uma ínfima parte. Nascido nos Estados Unidos, criado desde tenra idade no Quénia, numa família de cineastas e conservacionistas da vida-selvagem, Edward Wilson-Lee fez o seu percurso escolar na Suíça, Inglaterra e Estados Unidos. O autor publicou anteriormente no nosso país o livro A Torre dos Segredos. .O título do seu livro inspira-se num catálogo que revela o espírito obsessivo de Fernando Colombo na intenção de compilar uma biblioteca universal. De que catálogo falamos? De facto, o título refere-se a um catálogo que Fernando coligiu durante uma de suas épicas viagens de compra de livros. Nesse catálogo, o filho de Colombo lista os 1.637 livros que adquiriu em Veneza entre maio e outubro de 1521 e que se perderam num naufrágio durante a viagem de regresso a Espanha. Fernando manteve a lista desses livros e nomeou-a como Memorial de los Libros Naufragados, com a intenção declarada de readquirir todos os títulos. Julgo que é um símbolo da sua obsessão face ao grande projeto que empreendeu, nomeadamente o de construir uma biblioteca que incluísse todos os livros, em todas as línguas e sobre todos os assuntos, dentro e fora da cristandade. É também uma metáfora, num certo sentido, para a natureza condenada de tal projeto que, embora heroico, estava destinado ao fracasso, dada a explosão de títulos provenientes da nova tecnologia de impressão. O seu livro também nos remete para uma obra quase mítica, o Libro de los Epítomes que, em si, nos oferece uma boa história. Sim, o Libro de los Epitomes representa a parte mais ambiciosa do projeto de Fernando, o de não apenas reunir todos os livros do mundo, mas empregar uma equipa de pessoas para lê-los e resumir o seu conteúdo, tornando assim todo o conhecimento do mundo potencialmente ao alcance de uma pessoa. É também um livro com uma história dramática e fascinante: desapareceu após a morte de Fernando e o seu paradeiro permaneceu desconhecido durante quase 500 anos, até ser redescoberto em 2019 numa biblioteca de Copenhaga. O estudo do livro tem revelado muito sobre o extraordinário projeto de Fernando. Sim, inclusivamente dá-nos uma ideia de como as pessoas liam e interpretavam há 500 anos. O que sabemos hoje? O projeto de resumir todos os livros desta biblioteca universal foi fascinante, e por mais idiossincráticos que fossem todos os projetos de Fernando, ele determinou regras muito específicas sobre o recrutamento dos leitores, como deveriam ser pagos para ler, pelo menos duas horas por dia e, no máximo, seis horas. Estabeleceu que ninguém conseguiria concentrar-se adequadamente mais horas do que as estipuladas. Deu, inclusivamente, instruções sobre como os quartos dos leitores deveriam ser mobiliados, os lençóis a usar, assim como as cadeiras e as mesas. No entanto, no que respeita ao que liam, tinham liberdade para seguir os seus próprios interesses. Os Epítomes são um registo fascinante de como estes andarilhos da biblioteca reagiram aos livros que chegavam de toda a Europa: de repente, foram confrontados com todas os modas e gostos, crenças e ideias provenientes de todo o continente. Os seus resumos registam, frequentemente, o choque e a surpresa, por exemplo, com os hábitos de consumo de bebidas dos estudantes alemães ou com o comportamento sexual dos italianos. O Libro de los Epítomes é enorme e a equipa internacional que o estuda, da qual tenho a sorte de fazer parte, ainda está a desvendar os seus segredos. Numa entrevista anterior referiu que este seu livro seria difícil de escrever há 30 anos e que, provavelmente, não seria entendido. O que tornou possível ser aceite presentemente? Julgo que se tivesse dito há 30 anos a um editor que queria escrever um livro sobre catálogos de bibliotecas, ele teria rido. Contudo, ninguém que tenha vivido as últimas décadas pode negar o poder das tecnologias de organização do conhecimento para mudar rápida e profundamente as nossas vidas. Os algoritmos de pesquisa e a análise do big data tiveram efeitos profundos e dramáticos em todos os aspetos do mundo e, na realidade, os projetos de Fernando foram uma resposta semelhante à revolução da informação provocada pelo nascimento da imprensa. Ele percebeu que quem conseguisse organizar e utilizar toda esta informação teria uma ferramenta de imenso poder, e as nossas próprias vidas têm demonstrado de forma dramática esta verdade. Podemos ver na ambição de Fernando Colombo em construir a sua biblioteca universal o desejo de concluir a vontade do seu pai, de circum-navegar o mundo conhecido? Um aspeto central para a compreensão de Fernando é o facto de ser o filho ilegítimo de Cristóvão Colombo, o almirante do mar-oceano. Como tal, tinha um desejo premente de provar que era o verdadeiro filho de Colombo, mesmo não sendo o herdeiro legítimo. Fernando concebeu o seu projeto num paralelismo à ambição do seu pai, a de circum-navegar o mundo. Colombo acreditava que se pudesse navegar à volta do globo teria um efeito cataclísmico na história, alcançando um império espanhol global e o início do “fim dos tempos”. Fernando acreditava que estava destinado a desempenhar um grande papel na história através da construção da sua biblioteca. O filho de Colombo foi também o principal guardião da lenda em torno do seu pai, ao escrever a sua biografia. A esta devemos a maior parte do nosso conhecimento sobre a vida do navegador. Biografia que serviu de base ao mito romântico e heroico de Colombo que a Europa contou durante séculos. Em muitos aspetos, o esquecimento sobre a vida de Colombo, a eliminação do seu pensamento apocalíptico e da sua crescente loucura na velhice, bem como grande parte da sua brutalidade, resultou de um ato de um filho que tentava preservar a memória do seu amado pai..De que forma os livros que adquiriu para a biblioteca nos traçam um mapa da vida de Fernando Colombo? Um dos aspetos extraordinárias sobre Fernando prende-se com a sua obsessão em criar listas sobre o mundo que o rodeava e registar informações de tudo quanto possamos imaginar. Além dos seus catálogos de biblioteca, também criou um dicionário e uma enciclopédia geográfica de Espanha, bem como listas dos seus quadros e até um inventário de tudo que havia no seu quarto durante uma visita a Hispaniola [Ilha de São Domingos] em 1509. Mesmo que esses itens fossem bolas de cera e bocados de cordel. Devido a esse impulso, também escreveu em cada livro que adquiriu a data, o local e o custo exato, o que nos permite acompanhá-lo pela Europa nas suas compras e perceber o que havia nas prateleiras das livrarias do século XVI. Imaginemo-nos a entrar nesta biblioteca. O que ali encontraríamos? O que tinha de inovador numa época em que se disseminava o livro impresso? Talvez o aspeto mais extraordinário na biblioteca de Fernando fosse o facto de existirem livros impressos. A maioria dos grandes colecionadores da época procurava manuscritos raros de textos clássicos e considerava inútil o tipo de livros impressos baratos que Fernando procurava. Este homem estava praticamente sozinho na forma como percebeu que a imprensa mudaria o mundo, também ao colecionar, por exemplo, material efémero, como as primeiras notícias e as baladas populares. O Renascimento estava obcecado com o desaparecimento do mundo Clássico. Percebeu-se quão pouco da cultura grega e romana sobrevivera e aterrorizava a possibilidade de o mesmo acontecer novamente. Mas, apenas Fernando pensou em colecionar e preservar os materiais provenientes da imprensa. A sua biblioteca era uma construção bizarra, povoada de gaiolas para os leitores, como forma de evitar que roubassem os livros. Mas, o que mais teria surpreendido os seus contemporâneos é, na verdade, o que nos pareceria mais familiar: a estante moderna, que Fernando inventou para guardar a sua coleção. Antes desse momento, a maioria das bibliotecas empilhava livros em mesas ou mantinha-os em baús. Para tornar acessíveis os mais de 15.000 livros da sua biblioteca, Fernando inventou uma forma de arrumá-los verticalmente, com lombadas para fora e etiquetados, em estantes encostadas às paredes, exatamente como faríamos hoje. Tratava-se de uma biblioteca fora do cânone do seu tempo. Nela encontrávamos, por exemplo, Hypnerotomachia Poliphili, um livro tido como incompreensível. Até onde foi Fernando Colombo para completar a sua biblioteca? Fernando viajou pela Europa para adquirir livros para a biblioteca. Deixou instruções extremamente detalhadas sobre como deveria prosseguir essa tarefa após a sua morte, criando uma rede para atrair os materiais do mundo impresso para a sua biblioteca em Sevilha. O mais surpreendente é que instruiu aqueles que comprariam livros após a sua morte a se concentrarem, primeiro, nas impressões baratas e, depois, em grandes volumes mais caros e, se sobrasse dinheiro, investir na compra de manuscritos. Fernando gastou uma fortuna a adquirir esses livros. Uma fortuna que ele não tinha. O seu pai deixou-lhe uma herança, embora esta dependesse da manutenção dos direitos da família Colombo sobre as riquezas do Novo Mundo, e esses direitos eram constantemente alterados. A biblioteca de Fernando é uma utopia, impossível de realizar. Contudo, esse sonho iluminou outros espíritos posteriormente. Quer citar alguns deles? Fernando Colombo foi o último a tentar construir a biblioteca universal na sua forma física. Pouco depois da sua morte, Conrad Gessner [naturalista suíço do século XVI] também manteve um projeto de biblioteca universal, embora fosse apenas um catálogo e não uma tentativa de reunir volumes num espaço físico. Acresce que tratava apenas de livros em grego, latim e hebraico. Mesmo durante a vida de Fernando, a escala do desafio estava a tornar-se não concretizável e a próxima geração de grandes projetos de bibliotecas tendia a ter um âmbito limitado. Por exemplo, as coleções nacionais que reuniam livros de e para uma única nação. De certa forma, ninguém tentou o que Fernando ambicionou até ao projeto Google Books, nos primeiros anos deste milénio, e mesmo este falhou, embora por razões de direitos autorais e não por quaisquer outras. Referiu o projeto Google Books. Hoje, mantemos a vontade de criar uma biblioteca universal. A World Wide Web concretizará o sonho de Fernando Colombo? A Internet apresenta-nos uma promessa extraordinária: a de nos dar acesso a uma quantidade inimaginável de informações. Mas, como Fernando sabia, uma infinidade de informações é inútil, a menos que tenhamos as ferramentas certas para aí navegar. O perigo da Internet é que as nossas ferramentas de pesquisa, o equivalente aos catálogos de Fernando, confirmam-nos muitas vezes aquilo que já pensamos, em vez de abrir novas perspetivas para explorarmos. De certa forma, ficamos presos em câmaras de eco, bolhas de informação, onde apenas interagimos com pessoas que concordam connosco e onde somos mantidos sob a pressão do fascínio da gratificação instantânea. É como se só pudéssemos vislumbrar a biblioteca universal através do buraco da fechadura. Fernando parecia sentir que os humanos são seres muito físicos e precisam de ser capazes de passear pela biblioteca e folhear as prateleiras. Espero que um dia a Internet seja um dispositivo que encoraje a nossa curiosidade e admiração, em vez de nos deixar irritados e facilmente distraídos. O seu livro é também uma história de perda. Esta maravilhosa biblioteca iria definhar após a morte de Fernando. Quer contar-nos brevemente este destino? Sim, é. Em certo sentido é uma tragédia inevitável. Fernando legou a biblioteca ao sobrinho, Luís Colombo, herdeiro legítimo da linhagem. Mas, o sobrinho era um perdulário e, como a maioria dos demais na época, não entendia o sentido da biblioteca. A morte de Fernando também foi seguida por um período sombrio na Europa. A Inquisição olhou desfavoravelmente para as coleções da Reforma e dos livros hebraicos e árabes existentes na biblioteca. Os livros foram trancados num sótão da Catedral de Sevilha e muitos perderam-se por roubo e deterioração. Somente no final do século XIX começou a ser redescoberta. Atualmente, o que dela resta, aliás um imenso tesouro para a compreensão daquele período, está à guarda da Institución Colombina, em Sevilha. Voltemos ao naufrágio. Terá Fernando Colombo, a partir de determinado momento, sido um náufrago dentro da sua biblioteca em crescimento imparável e incontrolável? Sim, acho que é uma boa forma de colocar as coisas. Embora apenas uma pequena parte dos livros naufragasse na década de 1520, de certa forma Fernando e seu projeto foram abandonados nas margens da História, deixados para trás, porque mais ninguém entendeu como a imprensa mudaria o mundo. Fernando percebeu isso e, na verdade, gostou bastante. Ele, tal como o seu pai, cada vez mais desequilibrado, acreditava que o facto de só ele perceber a questão provava ser um visionário.